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Impacto da privatização da água e do esgoto nas tarifas e no acesso aos serviços no Brasil* * Este artigo se baseia, em parte, na dissertação apresentada pela primeira autora ao curso de Mestrado em Administração Pública da Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, da Fundação João Pinheiro, em 2022.

The impact of water and sewer privatization on tariffs and access in Brazil

El impacto de la privatización del agua y del alcantarillado en las tarifas y en el acceso a los servicios en Brasil

Resumo

Este trabalho se propõe a verificar o impacto das concessões à iniciativa privada dos serviços de saneamento sobre o acesso à água e ao esgoto tratados, bem como sobre as tarifas cobradas por esses serviços. O presente estudo se faz relevante à luz das recentes alterações legislativas no setor, à guisa da Lei n. 14.026/2020, e da necessidade de universalização do saneamento. Como método, foi utilizado o modelo diferenças em diferenças, para dados de 3.536 municípios brasileiros retirados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), abrangendo o período de 1998 a 2019. Os resultados mostram impacto positivo e estatisticamente significativo dos prestadores privados (em relação aos públicos) sobre o acesso aos serviços de água, esgoto e tratamento de esgoto. Ademais, foi observado impacto positivo e estatisticamente significativo na tarifa praticada quando da concessão à iniciativa privada dos serviços, em comparação aos preços cobrados por prestadores públicos.

Palavras-chave:
Saneamento básico; Água; Esgoto; Transição epidemiológica; Tarifas; Privatização

Abstract

This paper aims to verify the impact of water and sewer services privatization on access and the tariffs charged for them. This paper is relevant mainly due to the sector’s recent legal changes that resulted in Law n. 14.026/2020 and the need to universalize sanitation services in Brazil. The differences-in-differences method was employed to estimate the impact, using data from 3.536 Brazilian municipalities extracted from SNIS, the Brazilian National Sanitation Information System, for the years 1998-2019. The results show private sector operators’ positive and statistically significant impact (compared to their public peers) on water and sewage services - including sewer treatment. Also, it detected a positive and statistically significant effect on the tariffs charged for those services once privatization occurs, compared to the prices charged by public sector operators.

Keywords:
Sanitation; Water; Sewer; Epidemiological transition; Tariffs; Privatization

Resumen

Este trabajo se propone evaluar el impacto de las concesiones a la iniciativa privada de los servicios de saneamiento en el acceso al agua y al alcantarillado y su tratamiento, así como en las tarifas que se cobren por estos servicios. El trabajo se hace relevante a la luz de los recientes cambios legislativos en el sector, como la Ley n.o 14.026 de 2020 y de la necesidad de universalizar el saneamiento. Para el análisis se utilizó el modelo de diferencias con datos de 3536 municipios brasileños extraídos del Sistema Nacional de Información sobre Saneamiento (SNIS) que cubren el período 1998-2019. Los resultados indicaron un impacto positivo y estadísticamente significativo de los proveedores privados (en relación con los públicos) en el acceso a los servicios de agua, alcantarillado y tratamiento del alcantarillado. Además, se observó un impacto positivo y estadísticamente significativo en la tarifa cuando los servicios se concesionaron a la iniciativa privada en comparación con los precios que cobraban los proveedores públicos.

Palabras clave:
Saneamiento básico; Agua; Alcantarillado; Transición epidemiológica; Tarifas; Privatización

Introdução

Desde meados do século passado, o Brasil vem passando por uma transição epidemiológica, caracterizada pela progressiva transformação de um perfil de alta morbimortalidade devido a doenças infecciosas e parasitárias para outro no qual predominam as doenças crônico-degenerativas, neoplasias, doenças cardiovasculares e causas externas (PRATA, 1992PRATA, P. R. A transição epidemiológica no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 8, n. 2, p. 168-175, abr./jun. 1992.). As doenças infecciosas e parasitárias, que em 1980 representavam 9,3% dos óbitos no Brasil, diminuíram sua participação para 4,2% em 2019, conforme os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde. Já o percentual de mortes por neoplasias aumentou de 8,2% para 17,4%, nesse mesmo período (BRASIL, 2023).

A redução da prevalência de doenças infecciosas e parasitárias, que incidem principalmente nas crianças menores de cinco anos, pode ser atribuída a uma série de fatores, incluindo melhorias nas condições de vida da população, aprimoramentos no sistema de saúde e maior acesso aos serviços de saneamento básico (VASCONCELOS; GOMES, 2012VASCONCELOS A. M. N.; GOMES, M. M. F. Transição demográfica: a experiência brasileira. Epidemiologia e Serviços de Saúde, v. 21, n. 4, p. 539-548, 2012.; RIOS-NETO; MARTINE; ALVES, 2015RIOS-NETO, E.; MARTINE, G.; ALVES, J. E. D. Marco conceitual: população e políticas públicas. In: RIOS-NETO, E.; MARTINE, G.; ALVES, J. E. D. Oportunidades perdidas e desafios críticos: a dinâmica demográfica brasileira e as políticas públicas. Belo Horizonte: Abep, UNFPA, CNPD, 2015. p. 19-49 (Demografia em Debate, v. 3).; BORGES, 2017BORGES, G. M. Health transition in Brazil: regional variations and divergence/convergence in mortality. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, n. 8, e00080316, 2017.).

Especificamente em relação ao saneamento básico, a implementação de medidas eficazes desempenha um papel fundamental na redução da exposição da população a agentes infecciosos e contaminantes ambientais, resultando em uma diminuição na incidência de doenças de veiculação hídrica, como doenças diarreicas, dengue, malária, leptospirose, esquistossomose, cólera, entre outras (ITB, 2021).

Rosella (2013) ilustra essa relação ao avaliar o impacto do Programa Água para Todos na Bahia. Seus resultados indicam uma redução de 14% na taxa de mortalidade de crianças menores de cinco anos e uma queda de 16% nas internações devido ao aumento da cobertura de saneamento. Além disso, Paiva e Souza (2018PAIVA, R. F. P.; SOUZA, M. F. P. Associação entre condições socioeconômicas, sanitárias e de atenção básica e a morbidade hospitalar por doenças de veiculação hídrica no Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 34, n. 1, e00017316, 2018.) verificaram que, em 2013, 16,3% das internações por doenças de veiculação hídrica poderiam ter sido evitadas no Brasil se as condições de saneamento fossem adequadas. Em consonância com esses resultados, evidências relacionadas à pandemia de Covid-19 também apontam que localidades com melhor acesso ao saneamento básico apresentaram taxas mais baixas de incidência e mortalidade pela doença (FERREIRA; SILVA; FIGUEIREDO FILHO, 2021FERREIRA, D.; SILVA, L.; FIGUEIREDO FILHO, D. B. Saneamento importa? Uma análise da relação entre condições sanitárias e COVID-19 nas capitais brasileiras. Engenharia Sanitária e Ambiental, v. 26, n. 6, p. 1079-1084, 2021.; GUEDES; SUGAHARA; FERREIRA, 2023GUEDES, W. P.; SUGAHARA, C. R.; FERREIRA, D. H. L. Índice de saneamento ambiental e Covid-19: uma análise nas capitais brasileiras. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, v. 19, n. 3, p. 174-196, 2023.).

Embora a morbimortalidade devido a doenças infecciosas e parasitárias tenha diminuído consideravelmente no Brasil, ainda persistem desafios relacionados a doenças associadas às condições precárias de saneamento, particularmente entre as populações mais vulneráveis (IBGE, 2021; GUEDES; SUGAHARA; FERREIRA, 2023GUEDES, W. P.; SUGAHARA, C. R.; FERREIRA, D. H. L. Índice de saneamento ambiental e Covid-19: uma análise nas capitais brasileiras. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, v. 19, n. 3, p. 174-196, 2023.).

De acordo com dados do Instituto Trata Brasil, em 2019, o país registrou 273.403 internações e 2.734 óbitos decorrentes de doenças de veiculação hídrica. As internações por diarreia, febre amarela, dengue, esquistossomose, malária e leptospirose foram mais frequentes na região Norte, onde o acesso ao saneamento básico é mais limitado (ITB, 2021). Além disso, estudos como o de Bühler et al. (2014BÜHLER, H. F. et al. Análise espacial de indicadores integrados determinantes da mortalidade por diarreia aguda em crianças menores de 1 ano em regiões geográficas. Ciência & Saúde Coletiva, v. 19, n. 10, p. 4131-4140, 2014.) destacam uma forte associação entre as taxas de mortalidade por doenças diarreicas agudas em crianças menores de um ano e as condições de saneamento básico nas regiões Norte e Nordeste.

Em suma, o acesso adequado aos serviços de água e esgoto é essencial para prevenir a disseminação de várias doenças infecciosas (WHO, 2020). Entretanto, o Brasil ainda está longe da universalização dos serviços de água e esgoto. Em 2019, dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) indicavam que o atendimento da população total com água estava em 83,7%, avançando apenas dois pontos percentuais em uma década, e o atendimento com coleta de esgotos era de apenas 54,1%, com um avanço de dez pontos percentuais na última década (SNIS, 2020).

Essas desigualdades são ainda mais acentuadas em nível regional, com disparidades significativas entre as regiões do país. Em 2017, enquanto no Sudeste 99,1% dos domicílios urbanos e rurais eram abastecidos com água por rede de distribuição ou por poço ou nascente, no Norte esse percentual era de 84,1% e no Nordeste correspondia a 87,5%. No que diz respeito aos domicílios urbanos e rurais servidos por rede coletora ou fossa séptica para os excretas ou esgotos sanitários, a diferença é ainda maior: 90,6% no Sudeste, 54,3% no Nordeste e apenas 35,9% no Norte (MDR, 2019).

A busca pela universalização do saneamento básico iniciou com a promulgação da Lei Federal n. 11.445/2007, considerada um marco no setor ao estabelecer princípios fundamentais, esclarecer condições de eficácia dos contratos, exigir a elaboração de Planos Municipais de Saneamento Básico (PMSB), além de definir o papel do titular dos serviços nos contratos e instituir a necessidade de agências reguladoras (CASEY, 2019CASEY, P. M. Avaliação da efetividade de operadores privados nos índices de cobertura de água e esgoto no Brasil e recomendações para a estruturação da participação privada no setor de saneamento. Dissertação (Mestrado em Economia Empresarial e Finanças) - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.).

Essa Lei, porém, não foi capaz de atrair o investimento privado de forma relevante no país, já que os contratos de programa de longo prazo e a dispersão regulatória entre várias agências infranacionais ainda impediam investimentos. Ao mesmo tempo, a baixa capacidade de investimento público não foi capaz de expandir o sistema de forma satisfatória (PAULINO, 2021PAULINO, A. A trajetória da regionalização dos serviços públicos de água e esgoto: do PLANASA ao novo marco regulatório. In: FROTA, L.; AIETA, V. Marco regulatório do saneamento básico: Lei nº 14.026/2020. Brasília: OAB Editora, 2021.).

Como exemplo, até 2020, a maior parte dos serviços estava nas mãos do setor público, com apenas 6,7% dos prestadores de serviços sendo empresas privadas em 2019 (SNIS, 2020). A concentração dos contratos nas mãos de prestadores públicos e a necessidade de altos investimentos financeiros para a expansão e universalização dos serviços foram as principais justificativas para a reformulação do marco regulatório do saneamento básico (KPMG, 2020).

Com o intuito de superar essas fragilidades, a Lei Federal n. 14.026/2020 estabeleceu o novo marco regulatório do saneamento no país, desdobrando-se em várias alterações em relação ao marco anterior, com novas competências atribuídas à Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), definição das condições e dos prazos para disposição final ambientalmente correta dos rejeitos, dentre outras (GONÇALVES; GRILO, 2021GONÇALVES, B.; GRILO, R. C. G. O novo marco legal do saneamento básico: as inovações trazidas pela Lei 14.026/2020. In: FROTA, L.; AIETA, V. Marco regulatório do saneamento básico: Lei n. 14.026/2020. Brasília: OAB Editora, 2021.).

Vale destacar a inclusão de mecanismo de estímulo à concorrência entre os setores público e privado. Na lei anterior, as concessionárias estaduais podiam ser contratadas diretamente pelos municípios, sem a necessidade de um processo licitatório. Com a nova lei, essa possibilidade foi eliminada, visando ampliar a participação do setor privado e potencialmente expandir o acesso aos serviços de saneamento. Além disso, a nova lei atribuiu à ANA a responsabilidade pela definição das normas de referência para a regulação do saneamento básico e promoveu a criação de blocos de municípios para viabilizar concessões em larga escala (GONÇALVES; GRILO, 2021GONÇALVES, B.; GRILO, R. C. G. O novo marco legal do saneamento básico: as inovações trazidas pela Lei 14.026/2020. In: FROTA, L.; AIETA, V. Marco regulatório do saneamento básico: Lei n. 14.026/2020. Brasília: OAB Editora, 2021.).

Nesse contexto, o novo marco regulatório do saneamento parte da premissa de que uma maior participação do setor privado pode contribuir para a superação dos desafios de acesso aos serviços. Embora existam estudos no Brasil abordando o impacto da privatização nos serviços de água e esgoto, estes ainda são em número limitado e abarcam períodos anteriores ao primeiro e ao segundo marcos do saneamento básico (Lei Federal n. 11.445/2007 e sua atualização pela Lei Federal n. 14.026/2020). Alguns trabalhos identificaram uma relação positiva entre a participação do setor privado e a melhoria dos serviços (CÁS, 2009CÁS, F. R. da. Determinantes da cobertura de esgotamento sanitário no Brasil. 2009. 79f. Dissertação (Mestrado em Ciências Econômicas) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.; SCRIPTORE, 2010SCRIPTORE, J. S. A parceria público-privada no saneamento básico brasileiro: uma proposta para o desenvolvimento do setor. Dissertação (Mestrado em Economia) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2010.; OLIVEIRA, 2011OLIVEIRA, A. R. de. Impact of private sector participation in the provision of water services in Brazil: empirical analysis and policy recommendations. The Journal of Business Inquiry, v. 10, n. 1, p. 95-119, 2011.; SAIANI, 2012SAIANI, C. C. S. Competição política faz bem à saúde? Evidências dos determinantes e dos efeitos da privatização dos serviços de saneamento básico no Brasil. Tese (Doutorado em Economia) - Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2012.; CASEY, 2019CASEY, P. M. Avaliação da efetividade de operadores privados nos índices de cobertura de água e esgoto no Brasil e recomendações para a estruturação da participação privada no setor de saneamento. Dissertação (Mestrado em Economia Empresarial e Finanças) - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.), outros encontraram uma relação negativa ou nula (FUJIWARA, 2005FUJIWARA, T. A privatização beneficia os pobres? Os efeitos da desestatização do saneamento básico na mortalidade infantil. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 33. Anais [...]. Natal: Anpec, 2005.; FARIA; FARIA; MOREIRA, 2005FARIA, R. C.; FARIA, S. A.; MOREIRA, T. B. S. A privatização no setor de saneamento tem melhorado a performance dos serviços? Planejamento e Políticas Públicas, n. 28, p. 7-21, 2005.; FERREIRA; HENRIQUE, 2018FERREIRA, D. R. F.; HENRIQUE, A. O mapa das parcerias público-privadas em saneamento no Brasil: uma análise comparada (2006-2017). Polis, v. 17, n. 50, p. 275-293, 2018.).

De forma a contribuir com a literatura empírica e o debate, o presente artigo objetiva estimar o impacto da concessão dos serviços ao segmento privado, no que tange ao acesso aos serviços de água tratada, de coleta e tratamento de esgoto, bem como sobre os valores das tarifas cobradas por esses serviços no país.

O artigo está organizado em seis seções, além desta introdução. A seguir apresenta-se uma revisão da literatura que procurou investigar os impactos das concessões dos serviços de saneamento básico ao segmento privado no Brasil. Posteriormente são descritas a metodologia utilizada, a base de dados e suas limitações, bem como o tratamento dos dados. São discutidos os resultados e, finalmente, apresentadas as conclusões do estudo.

Estudo sobre os efeitos da concessão dos serviços de saneamento básico ao setor privado

A Lei Federal n. 14.026/2020 marca um período em que se espera o aumento do número de prestadores privados no setor do saneamento básico no Brasil, tendência que já vinha sendo verificada antes mesmo deste mais recente marco legal (NOHARA; POSTAL JÚNIOR, 2018NOHARA, I. P.; POSTAL JÚNIOR, J. Perspectiva da gestão do saneamento básico no Brasil: prestação indireta e deficiências setoriais. Revista de Direito Econômico e Socioambiental, v. 9, n. 1, p. 380-398, 2018.). Nesse sentido, começaram a surgir estudos empíricos dedicados a avaliar se o setor privado tem apresentado maior efetividade que o segmento público, no que tange aos mais variados indicadores de desempenho.

O Quadro 1 apresenta a relação cronológica dos principais estudos empíricos aplicados ao Brasil, revelando que a quantidade é ainda relativamente limitada, o que pode ser explicado, em parte, pelo fato de que apenas nos anos mais recentes tornou-se possível a composição amostral de prestadores privados minimamente suficiente para permitir estudos quantitativos mais robustos em termos estatísticos.

De forma geral, é possível perceber que, no seu conjunto, esses estudos apontam para um impacto positivo da privatização do setor de saneamento, no que tange aos mais variados indicadores de desempenho. Os casos em que os efeitos foram considerados estatisticamente negativos ou nulo provêm de estudos que utilizaram técnicas estatísticas menos robustas ou que não puderam contar com uma amostra de observações em tamanho minimamente razoável, conforme será visto mais adiante.

Fujiwara (2005FUJIWARA, T. A privatização beneficia os pobres? Os efeitos da desestatização do saneamento básico na mortalidade infantil. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 33. Anais [...]. Natal: Anpec, 2005.), mediante adoção de estimadores de diferenças em diferenças, pelo método de mínimos quadrados ordinários (MQO), procurou mensurar o efeito da privatização dos serviços de água e esgoto na cobertura e na qualidade desses serviços, bem como nas taxas de mortalidade infantil. O estudo constatou que a privatização impactou positivamente a qualidade desses serviços e reduziu as taxas de mortalidade, porém, teria impactado negativamente a cobertura de água, enquanto teve efeito estatisticamente nulo sobre a cobertura de serviços de esgoto. O trabalho contou com dados de 436 municípios dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, para os anos de 1991 (pré-privatização) e 2000 (pós-privatização), sendo que apenas 22 municípios contavam com serviços privatizados em 2000. A limitação na composição da amostra, combinada com possíveis limitações nas normativas do marco temporal da época, pode ter contribuído para os resultados ambíguos.

QUADRO 1
Literatura empírica sobre impacto do segmento privado no setor de saneamento no Brasil

Faria, Faria e Moreira (2005FARIA, R. C.; FARIA, S. A.; MOREIRA, T. B. S. A privatização no setor de saneamento tem melhorado a performance dos serviços? Planejamento e Políticas Públicas, n. 28, p. 7-21, 2005.) analisaram o desempenho dos serviços de água e de esgoto nos municípios brasileiros em 2002. Os autores utilizaram um modelo baseado em teste de igualdades de amostras independentes para verificar se há diferença estatisticamente significante em indicadores de produtividade, de cobertura e de performance financeira retirados de uma amostra de municípios com gestão privada (25 operações de água e 20 de esgoto) contra outra amostra com administração pública (954 operações de água e 387 de esgoto). Os resultados indicam que os prestadores privados apresentam melhores coberturas de água, mas não de esgoto. Porém, a utilização de dados para apenas um ano, no qual as operadoras privadas ainda estavam incipientes, e a abordagem estatística adotada podem, no seu conjunto, ter limitado os resultados do estudo.

Cás (2009CÁS, F. R. da. Determinantes da cobertura de esgotamento sanitário no Brasil. 2009. 79f. Dissertação (Mestrado em Ciências Econômicas) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.) analisou os determinantes para a cobertura de esgotamento sanitário nos 5.507 municípios brasileiros em 2002, utilizando um modelo econométrico denominado double-hurdle, uma forma generalizada do modelo Tobit no qual os valores dos estimadores são obtidos por máxima verossimilhança. O estudo constatou impacto positivo e estatisticamente significativo na cobertura de esgoto pelas operadoras privadas. Assim, como no estudo de Faria, Faria e Moreira (2005FARIA, R. C.; FARIA, S. A.; MOREIRA, T. B. S. A privatização no setor de saneamento tem melhorado a performance dos serviços? Planejamento e Políticas Públicas, n. 28, p. 7-21, 2005.), Cás (2009) considera apenas um ano, mas adota uma amostra expressivamente maior de municípios e emprega modelagem estatística mais robusta, o que pode ter contribuído para constatação de impacto estatisticamente positivo, enquanto no estudo de Faria, Faria e Moreira (2005) não se obteve significância estatística.

Scriptore (2010SCRIPTORE, J. S. A parceria público-privada no saneamento básico brasileiro: uma proposta para o desenvolvimento do setor. Dissertação (Mestrado em Economia) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2010.) aplicou modelagens de MQO numa amostra de 4.547 municípios brasileiros em 2007 para estimar o efeito das privatizações sobre 24 indicadores de desempenho dos serviços de água e de esgoto, dentre estes, a cobertura e a qualidade dos serviços prestados. Os resultados indicam impactos positivos das operadoras privadas, na medida que apresentaram maior cobertura e qualidade nos serviços de água e de esgoto, bem como menores perdas de distribuição e de faturamento, além de maiores índices de produtividade e de investimento. Apesar de utilizar apenas um ano, o estudo se beneficiou de uma amostra expressiva e com dados mais recentes, o que pode ter contribuído para abarcar maior número de prestadoras privadas, melhorando a qualidade estatística dos resultados.

Oliveira (2011OLIVEIRA, A. R. de. Impact of private sector participation in the provision of water services in Brazil: empirical analysis and policy recommendations. The Journal of Business Inquiry, v. 10, n. 1, p. 95-119, 2011.) analisou os serviços de água prestados em 1.554 municípios brasileiros, de 2001 a 2008, empregando estimadores de diferenças em diferenças, pelo método de mínimos quadrados ordinários (MQO). Os resultados mostram impactos positivos no indicador de cobertura para operadores privados versus públicos. A adoção de uma modelagem robusta combinada com a adoção de dados em painel com horizonte temporal de sete anos contribui para uma maior confiabilidade estatística dos resultados.

Saiani (2012SAIANI, C. C. S. Competição política faz bem à saúde? Evidências dos determinantes e dos efeitos da privatização dos serviços de saneamento básico no Brasil. Tese (Doutorado em Economia) - Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2012.) adotou modelagem semelhante à de Oliveira (2011OLIVEIRA, A. R. de. Impact of private sector participation in the provision of water services in Brazil: empirical analysis and policy recommendations. The Journal of Business Inquiry, v. 10, n. 1, p. 95-119, 2011.) para analisar o impacto das privatizações dos serviços de água e de esgoto nos municípios brasileiros, porém, utilizando horizonte temporal de 1995 a 2008, para indicadores de mortalidade e morbidade, e os anos de 1991, 2000 e 2010, para os indicadores de cobertura. Para todos os indicadores, os resultados apontam impacto positivo das privatizações.

O estudo de Ferreira e Henrique (2018FERREIRA, D. R. F.; HENRIQUE, A. O mapa das parcerias público-privadas em saneamento no Brasil: uma análise comparada (2006-2017). Polis, v. 17, n. 50, p. 275-293, 2018.) focou a análise na cobertura dos serviços de coleta e tratamento de esgoto em municípios do estado de São Paulo, em 2015. A partir de testes de igualdades de médias para amostras independentes (30 municípios com prestadores privados e outros 30 com prestadores públicos), os autores não detectaram diferenças estatisticamente significativas entre os dois segmentos. De forma semelhante ao estudo de Faria, Faria e Moreira (2005FARIA, R. C.; FARIA, S. A.; MOREIRA, T. B. S. A privatização no setor de saneamento tem melhorado a performance dos serviços? Planejamento e Políticas Públicas, n. 28, p. 7-21, 2005.), é possível que o tamanho da amostra e a abordagem estatística adotada tenham sido determinantes para a ausência de diferenças estatísticas entre os dois grupos.

Casey (2019CASEY, P. M. Avaliação da efetividade de operadores privados nos índices de cobertura de água e esgoto no Brasil e recomendações para a estruturação da participação privada no setor de saneamento. Dissertação (Mestrado em Economia Empresarial e Finanças) - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.) analisou o impacto das privatizações sobre a cobertura dos serviços de água e de esgoto, por meio de funções econométricas ajustadas com base em modelos probit. A amostra de municípios foi estruturada em painel para o período de 2006 a 2016, contemplando 4.064 municípios com abastecimento de água (sendo 82 deles cobertos por operadoras privadas) e 1.109 municípios com serviços de esgoto (sendo 31 deles cobertos por operadoras privadas). Os resultados indicam maior efetividade da iniciativa privada na ampliação de índices de cobertura em relação aos operadores públicos.

No que tange à dimensão tarifária, o número de estudos dedicados a comparar as prestadoras públicas e privadas no Brasil é ainda menor, principalmente se considerados os períodos correspondentes à Lei Federal n. 11.445/2007 e sua atualização pela Lei Federal n. 14.026/2020, que define o novo marco do saneamento básico no país.

Anteriormente a essa fase temporal, o estudo de Justo (2004JUSTO, M. C. D. M. Financiamento do saneamento básico no Brasil - Uma análise comparativa da gestão pública e privada. Dissertação (Mestrado em Economia Regional e Urbana) - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2004.) analisou três experiências de gestão no setor de saneamento do estado de São Paulo, além de outras três internacionais. Utilizando informações financeiras para o período de 1996 a 2001, o autor constatou combinação tendencial entre altos valores de tarifas e expressiva redução dos custos, os lucros sendo distribuídos aos acionistas, enquanto os investimentos tendiam a ser financiados com recursos públicos.

Por sua vez, o estudo de Nozaki (2007NOZAKI, V. T. Análise do setor de saneamento básico no Brasil. Dissertação (Mestrado em Economia Aplicada) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2007.) analisou a evolução institucional e estrutural da provisão dos serviços de saneamento básico no Brasil, concluindo que o aumento tarifário foi um fator necessário à viabilização dos investimentos no setor de saneamento, tanto para os prestadores públicos quanto para os privados, o que é um problema em relação ao acesso da população carente.

Apesar de relativamente remotos, esses dois estudos apontam para a importância de se manter o processo gradual de aprimoramento do aparato regulatório do setor de saneamento no Brasil, de modo a garantir a segurança jurídica e a viabilidade econômico-financeira da atividade às prestadoras do setor, ao mesmo tempo que permita impedir cobrança de tarifas para além dos custos econômicos envolvidos.

Em certa medida, brechas normativas no aparato regulatório explicam os casos de remunicipalização dos serviços de água e esgoto no país. A título de ilustração, recorda-se a experiência de privatização da concessionária tocantinense, Saneatins, na década de 1990. Após anos de serviços insatisfatórios, 79 municípios encerraram tais concessões e a empresa pública Agência Tocantinense de Saneamento foi criada para prover os serviços novamente de forma pública (YAMAMOTO; PEREIRA; ALCÂNTARA, 2020YAMAMOTO, E. A. F. S.; PEREIRA, J. R.; ALCÂNTARA, V. C. Remunicipalização e coprodução do bem público: perspectivas de gestão dos serviços de água e saneamento. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, v. 25, n. 81, p. 1-20, 2020.).

Outro caso mais recente de reestatização do saneamento no país foi verificado no município de Itu, no estado de São Paulo, onde, em 2017, o controle dos serviços de água e esgoto foi devolvido ao setor público após seguidos problemas de infraestrutura, atrasos de investimentos, aumento tarifário, falta de transparência e racionamento de água por parte do parceiro privado (YAMAMOTO, PEREIRA, ALCÂNTARA, 2020YAMAMOTO, E. A. F. S.; PEREIRA, J. R.; ALCÂNTARA, V. C. Remunicipalização e coprodução do bem público: perspectivas de gestão dos serviços de água e saneamento. Cadernos Gestão Pública e Cidadania, v. 25, n. 81, p. 1-20, 2020.).

Em resumo, a configuração do setor de saneamento básico no Brasil, envolvendo a coparticipação dos segmentos público e privado, é uma questão complexa e multifacetada, com contextos e desafios regionais e locais distintos, o que requer e justifica a realização de estudos que permitam contribuir com o processo de gradual aprimoramento do aparato normativo, com o propósito de alcançar o melhor resultado social.

Metodologia

Método de estimação

Para identificar o impacto que a forma de prestação de serviços (privada ou pública) exerce sobre as tarifas praticadas e o acesso aos serviços de saneamento, o ideal seria observar o mesmo município nas situações com e sem a concessão ao segmento privado. Como não é possível observar esses dados, devem-se utilizar métodos que compensem tal inexistência.

O modelo econométrico proposto para análise dos dados neste estudo é o método das diferenças em diferenças, como utilizado por Fujiwara (2005FUJIWARA, T. A privatização beneficia os pobres? Os efeitos da desestatização do saneamento básico na mortalidade infantil. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 33. Anais [...]. Natal: Anpec, 2005.) e Saiani (2012SAIANI, C. C. S. Competição política faz bem à saúde? Evidências dos determinantes e dos efeitos da privatização dos serviços de saneamento básico no Brasil. Tese (Doutorado em Economia) - Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2012.). Segundo Gertler et al. (2018GERTLER, P. J. et al. Avaliação de impacto na prática. 2. ed. Washington: Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento/Banco Mundial, 2018.), esse método compara as mudanças nos resultados ao longo do tempo, entre um grupo de elementos que estão inscritos em um determinado programa (o grupo de tratamento) e outro grupo composto por elementos que não estão inscritos no programa (o grupo de controle, que servirá para comparação).

Segundo Angrist e Pischke (2009ANGRIST, J. D.; PISCHKE, J. S. Mostly harmless econometrics: an empiricist’s companion. Massachusettts Institute of Technology and The London school of Economics, 2009.), a principal hipótese do modelo é que a trajetória temporal da variável de resultado para o grupo de controle represente o que ocorreria com o grupo tratado caso não houvesse a intervenção, sendo que é o tratamento que induz a mudança de trajetória. No presente estudo, o termo “tratamento” refere-se aos casos em que os serviços de saneamento básico foram concedidos ao segmento privado, enquanto o termo “controle” corresponde aos casos em que os serviços se mantiveram no segmento público.

No que diz respeito à formalização do modelo, a sua representação por meio de regressões lineares oferece uma forma conveniente de construir os estimadores e erros padrões, além de tornar fácil a adição de períodos e de estados, cujas características internas podem influenciar na estimativa (ANGRIST; PISCHKE, 2009ANGRIST, J. D.; PISCHKE, J. S. Mostly harmless econometrics: an empiricist’s companion. Massachusettts Institute of Technology and The London school of Economics, 2009.). A equação básica do modelo pode ser especificada como:

Y i t = X i t α + γ T i + ρ t t + β ( T i t t ) + ε i t (1)

Na equação (1), Yit representa a variável de resultado para o município i no período de tempo t. O vetor X refere-se às características observadas desse município. A variável T é uma variável binária que assume o valor 1 para os municípios que foram submetidos ao tratamento em algum momento do período do estudo, ou seja, a privatização dos serviços de água e esgoto. Ela assume o valor 0 para os municípios do grupo de controle, ou seja, aqueles que nunca foram atendidos por prestadores privados de serviços de água e esgoto ao longo do período da análise.

A variável t é uma variável binária indicativa dos anos em que os municípios do grupo de tratamento estavam cobertos por serviços de saneamento na modalidade privatizada. Ela assume o valor 1 nos anos em que esses municípios estavam cobertos por prestadores privados e o valor 0 para os demais municípios e anos.

O termo de erro ε na equação representa as variações não explicadas pelo modelo. Sob a hipótese de que a expectativa condicional do erro dado X, T e t seja igual a zero (E [ε | X,T,t] = 0), o parâmetro β mede o efeito causal do tratamento, considerando as características observadas do município.

Na equação (1), as variáveis T e t aparecem isoladamente e também em interação. Quando usadas isoladamente, os parâmetros associados a elas, ү e ρ, captam, respectivamente, as diferenças médias da variável Y entre os grupos de tratamento e de controle, bem como as diferenças médias entre os períodos com e sem o programa, considerando as características observadas do município. No entanto, a presença da interação entre as variáveis T e t na equação visa especificamente avaliar o impacto do tratamento no grupo de tratamento durante o período do programa. Em outras palavras, determina se a média da variável de resultado para esse grupo se tornou diferente com a implementação do tratamento, ou seja, com a privatização dos serviços de água e esgoto. Portanto, o papel do termo de interação entre as variáveis T e t é medir o impacto do tratamento, sendo que a magnitude desse impacto é capturada pelo parâmetro β.

Base de dados, tratamento dos dados e seleção das variáveis

Como base de dados principal, foi escolhido o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), principal fonte de informações sobre saneamento no Brasil. A base possui abrangência nacional, reunindo dados de caráter institucional, administrativo, operacional, gerencial, econômico-financeiro, contábil e de qualidade da prestação de serviços de saneamento básico em seus quatro componentes: abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo de resíduos sólidos e drenagem de águas pluviais.

Ressalta-se que as informações disponibilizadas no SNIS são fornecidas pelos próprios prestadores de serviços, sendo, portanto, autodeclaradas. Ademais, o SNIS não coleta indicadores, mas sim informações primárias - a partir das quais o sistema calcula os indicadores. No total, existem 113 informações obrigatórias no SNIS (SNIS, 2020).

A coleta de dados é realizada por meio do sistema SNISWeb, que possui dispositivo de análise de consistência de dados, emitindo avisos quando ocorrem desvios na comparação com parâmetros de referência ou com o histórico do próprio prestador e alertas de erros evidentes, sendo que, nesse último caso, a finalização do processo não é permitida até que a inconsistência seja corrigida (SNIS, 2020).

Porém, destaca-se que ainda está em implementação uma metodologia para auditoria e certificação das informações do SNIS por parte das agências reguladoras, o denominado Projeto Acertar, de forma que, até o momento, existe incerteza envolvida nas informações apresentadas pelo sistema (SNSA, 2018).

No que tange à seleção das variáveis a serem utilizadas no modelo, foi realizado um levantamento daquelas que foram exploradas em estudos que investigaram o impacto da concessão dos serviços de saneamento básico ao segmento privado. Nessa avaliação, compararam-se apenas as variáveis que foram retiradas pelos autores de dados públicos, como aquelas disponibilizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pelo SNIS. O resultado da comparação dos estudos indicou que foram utilizadas 83 variáveis diferentes, sendo que aquelas selecionadas para o presente trabalho estão listadas no Quadro 2.

QUADRO 2
Variáveis selecionadas para o estudo

Como o estudo se propõe a avaliar serviços de água e esgoto, o passo inicial foi a seleção dos municípios que apresentavam, para quaisquer anos do período da análise, os dois serviços, conjuntamente ou separadamente, no item “Tipo de serviço” do SNIS, o que resultou em uma amostra que incluiu dados de 3.536 municípios, sendo que 118 deles apresentaram serviços ofertados por prestadores privados por algum período.

Em seguida, os prestadores foram reclassificados de acordo com a sua natureza jurídica. O SNIS apresentava a seguinte classificação inicial: administração pública direta; autarquia; empresa privada; empresa pública; sociedade de economia mista com administração pública; sociedade de economia mista com administração privada; e organização social. Como o trabalho busca avaliar o impacto da concessão dos serviços ao segmento privado, a classificação da natureza jurídica foi resumida em empresa privada (de acordo com a classificação inicial do SNIS) e empresa pública (que compreende as demais categorias).

Além disso, procurou-se trabalhar com o maior período de anos disponibilizado pelo SNIS, que registrava dados desde 1995. Porém, foram excluídas da amostra as informações de 1995 a 1997, já que poucos municípios eram contemplados pelo sistema. Portanto, a amostra deste trabalho contempla informações compreendidas entre 1998 e 2019, último ano com dados disponíveis quando da realização da pesquisa. Em seguida, os dados referentes ao PIB foram inseridos na base de dados, mas, como eles retratavam os preços correntes da economia, aplicou-se um deflator que refletia o valor real correspondente a dezembro de 2020. Uma vez descritas a metodologia adotada no estudo e a forma como os dados foram tratados, a próxima seção apresenta os resultados da análise dos efeitos da privatização dos serviços de água e esgoto no acesso a esses serviços e nas tarifas praticadas.

Resultados

A análise econométrica foi precedida de uma análise exploratória dos dados, mediante indicadores e estatísticas que procuraram observar previamente alguma tendência de resposta para os questionamentos elaborados.

O primeiro passo foi verificar o ponto de partida das concessionárias privadas, buscando compreender se os serviços de água e esgoto que foram desestatizados eram estatisticamente diferentes da média dos prestadores públicos no ano da privatização. Para tanto, foi considerado ano da desestatização o primeiro ano que o município apresentou a classificação “Empresa privada” no SNIS.

Foram investigadas as seguintes variáveis: IN055 - Índice de atendimento total de água; IN046 - Índice de esgoto tratado referido à água consumida; IN056 - Índice de atendimento total de esgoto referido aos municípios atendidos com água; PIB per capita; e população urbana. Ressalta-se que a variável “IN004 - Tarifa média praticada” não foi analisada em função de sua possibilidade de mutação no momento da licitação, já que em muitos casos segue-se o critério de “menor tarifa” para escolha do vencedor. Assim, pode haver ruptura dessa variável no momento de troca do prestador, o que não ocorre com as demais variáveis analisadas.

Ainda quanto a esse aspecto, esclarece-se que o número de privatizações anuais era baixo no país no período analisado, sendo que o ano com menos concessões do período foi 2009, com apenas uma concessão, ao passo que 2002, 2017 e 2018 contaram, cada um, com oito privatizações realizadas, o maior número em um mesmo ano.

Para efeitos de comparação entre as médias dos grupos, foram realizados tanto o teste T quanto o teste de Mann-Whitney (Teste U), pois a amostra anual de prestadores privatizados é pequena para a maior parte dos anos e, assim, realizou-se um teste não paramétrico de forma complementar ao teste T. Adicionalmente, foram feitos testes de normalidade para as variáveis selecionadas, especificamente o teste Anderson-Darling, em que foi possível rejeitar a hipótese nula de que os valores seguem uma distribuição normal.

Verificou-se que, na maior parte dos anos, não foram identificadas diferenças significativas entre prestadores públicos e privados quando avaliados os municípios desestatizados no ano em que a privatização ocorreu. Dessa forma, pode-se observar o impacto da desestatização partindo do pressuposto de que, na média, prestadores públicos e privados partem de um ponto semelhante quanto ao acesso aos serviços de água e esgoto.

Para complementar a análise, antes de aplicar o método diferenças em diferenças, foi feita uma análise exploratória das variáveis selecionadas, tanto para respaldar a modelagem escolhida quanto para verificar o comportamento dos dados e as próprias características dos municípios atendidos por prestadores públicos e privados.

A análise possibilitou observar que, para o período completo analisado, existem diferenças estatísticas significativas entre todas as variáveis comparadas entre prestadores públicos e privados, com exceção dos indicadores IN004 - Tarifa média praticada e IN013 - Índice de perdas de faturamento.

Constatou-se que os prestadores privados apresentam, quando comparados aos públicos, maior índice de atendimento total de água e esgoto, maior índice de tratamento de esgoto, menor incidência de coliformes nas amostras, menor índice de despesa de exploração e maior volume de investimentos, mostrando resultados melhores no que diz respeito aos serviços de água e esgoto prestados à população a um preço não estatisticamente diferente daqueles praticados pelos prestadores públicos.

Por outro lado, foi significativa também a diferença no que diz respeito ao perfil dos municípios atendidos pelos prestadores privados, que, na média, atuam em municípios com maiores PIB per capita e população urbana do que aqueles atendidos por prestadores públicos, apresentando indícios de que as concessões tenderam a se concentrar em municípios com maior escala populacional e renda.

Uma vez verificadas as características principais das variáveis de interesse do estudo, passou-se a examinar a evolução das variáveis de acesso aos serviços de água e esgoto, bem como de suas respectivas tarifas, de forma a avaliar a tendência das médias das variáveis dependentes entre 1998 e 2019, quando havia dados disponíveis. Os resultados são apresentados no Gráfico 1.

GRÁFICO 1
Evolução de atendimento de água e esgoto e tarifa média Brasil - 1998-2019

Analisando os dados referentes às tarifas dos serviços, percebe-se que os preços praticados por prestadores públicos e privados apresentavam trajetórias similares do início do período (1998) até 2010. A partir de 2011, as tarifas dos prestadores privados passaram a apresentar média superior às praticadas pelos públicos, mantendo essa tendência até 2018, quando as médias tarifárias foram praticamente coincidentes, o que foi mantido em 2019.

No que diz respeito aos dados de atendimento de água, verifica-se que, em 2001, as médias de cobertura eram praticamente idênticas para prestadores públicos e privados. Porém, a partir do ano seguinte, os prestadores privados passaram a registrar resultados melhores do que os públicos, tendência que se manteve por toda a série.

No que tange ao atendimento de esgoto, é possível observar um cruzamento das linhas de tendência de forma aparentemente mais clara: de 2001 a 2007, os prestadores privados apresentavam índices de atendimento de esgoto inferiores aos prestadores públicos, sendo que, a partir de 2008, as linhas de tendência se cruzaram e, desde então, as empresas privadas passaram a alcançar índices superiores.

Tendência semelhante é verificada para o tratamento de esgoto: até 2001, as trajetórias de prestadores privados e públicos eram semelhantes; de 2002 a 2004, prestadores públicos mostraram desempenho melhor; e de 2005 a 2007, as trajetórias voltaram a ser semelhantes. Porém, a partir de 2008, os prestadores privados atingiram índices maiores de tratamento de esgoto, tendência que se manteve até o fim da série analisada.

Feitas essas análises exploratórias das variáveis de interesse do presente estudo, passa-se à análise dos resultados dos modelos de diferenças em diferenças, de forma a verificar o impacto estatístico da concessão dos serviços de saneamento ao segmento privado.

Impacto da concessão ao setor privado sobre o atendimento de água

Para avaliar o impacto das concessões dos serviços de tratamento e fornecimento de água ao segmento privado, foram estimados sete modelos diferenças em diferenças, sendo que em cada um deles foram adicionadas covariáveis de maneira progressiva. Conforme especificação do modelo, as variáveis dummies para cada ano foram inseridas em todos os modelos.

A Tabela 1 traz os resultados dos modelos para acesso aos serviços de água, cuja variável dependente é “IN055 - Atendimento total de água” e a variável de principal interesse é “impacto” (termo de interação entre as variáveis T e t da equação (1)), que indica o impacto nos anos de concessão dos serviços à iniciativa privada. As variáveis independentes inseridas como controle em cada modelo são sinalizadas por “sim” na tabela ou pelo valor de seus estimadores parciais, enquanto as não incluídas são indicadas por “não”.

TABELA 1
Impacto da privatização sobre o acesso aos serviços de água Brasil - 1998-2019

Os resultados mostram que a concessão teve impacto estatisticamente significativo a 1% de probabilidade em todos os modelos desenvolvidos, demonstrando que, independentemente das variáveis de controle utilizadas, a privatização dos serviços teve impacto positivo no acesso aos serviços de água, captado pelo indicador IN055 - Índice de atendimento total de água.

Impacto da concessão ao setor privado sobre o atendimento e o tratamento de esgoto

No que diz respeito ao impacto da concessão dos serviços de esgoto ao segmento privado, foram estimados 12 modelos diferenças em diferenças de forma semelhante à análise de impacto no acesso aos serviços de água, sendo que gradativamente foram adicionadas as covariáveis. Os resultados dos modelos para acesso aos serviços de esgoto são apresentados na Tabela 2, cujas variáveis dependentes são: IN056 - Índice de atendimento total de esgoto referido aos municípios atendidos com água (modelos 1 a 6); e IN046 - Índice de tratamento referido à água consumida (modelos 7 a 12). A variável principal de interesse é “impacto”.

TABELA 2
Impacto da privatização sobre o acesso aos serviços de esgoto Brasil - 1998-2019

Percebe-se que, quando analisada isoladamente no modelo 1, a concessão dos serviços ao segmento privado (a variável impacto) não teve efeito estatisticamente significativo sobre o acesso aos serviços de esgoto. Porém, a partir do modelo 2, quando covariáveis foram inseridas gradativamente, houve indicativo de que a concessão dos serviços de esgoto teve impacto positivo no acesso a esse serviço.

Já os resultados para os modelos que medem o impacto sobre o tratamento de esgoto indicam que a concessão dos serviços teve impacto estatisticamente significativo a 1% de probabilidade em todos os modelos desenvolvidos, demonstrando que, independentemente das variáveis de controle utilizadas, a privatização dos serviços teve impacto positivo no tratamento dos esgotos (em relação à água consumida no município), medido por meio do indicador IN046 - Índice de esgoto tratado referido à água consumida.

Impacto da concessão ao setor privado sobre as tarifas praticadas

Finalmente, apresentam-se os resultados dos modelos que objetivam avaliar o impacto da concessão a parceiros privados nas tarifas praticadas. Para tanto, foram estimados nove modelos diferenças em diferenças, com adição de variáveis dummies para cada ano, além do acréscimo gradual das covariáveis pertinentes. A Tabela 4 apresenta os resultados dos modelos de tarifa média, cuja variável dependente é IN004 - Tarifa média praticada e a variável principal de interesse é “impacto”.

Deve ser esclarecido que o indicador tarifa média praticada (IN004) é calculado como a proporção entre a receita obtida e o volume faturado, não sendo a tarifa efetivamente cobrada pelo prestador de serviço (SNIS, 2020). Em segundo lugar, ressalta-se que outras variáveis foram inseridas na modelagem tarifária em função das especificidades das definições dos preços de água e esgoto no país, que buscam cobrir as despesas dos prestadores e variam de acordo com os serviços prestados.

Por esses motivos, a variável que exprime as despesas de exploração e a que representa os investimentos realizados foram inseridas na modelagem, além daquelas que indicam os serviços prestados, a saber: IN055 - Índice de atendimento total de água e IN046 - Índice de esgoto tratado referido à água consumida, que foram variáveis dependentes nos modelos anteriores.

Reforça-se que a variável IN056 - Índice de atendimento total de esgoto referido aos municípios atendidos com água não foi incluída por ser altamente correlacionada com as variáveis IN055 e IN046, podendo gerar distorções na modelagem e por ter seu impacto indiretamente medido pela variável IN046, pois somente a população que é atendida por serviços de esgoto pode ter seus esgotos tratados. A variável “população urbana” também foi suprimida, já que o índice de atendimento total de água busca captar o mercado atendido pelos prestadores.

TABELA 3
Impacto da privatização sobre o valor da tarifa média praticada Brasil - 1998-2019

Os resultados sugerem que a concessão dos serviços teve impacto estatisticamente significativo a 1% de probabilidade em todos os modelos desenvolvidos, exceto para o modelo 1, que teve significância a 5%, demonstrando que, independentemente das variáveis de controle utilizadas, a concessão dos serviços teve impacto positivo na tarifa média praticada nos municípios, medido nos modelos por meio do indicador IN004 - Tarifa média praticada.

Ademais, percebe-se que a inserção da variável IN046 a partir do modelo 7 impactou o ajuste dos modelos e a magnitude do impacto da concessão ao segmento privado sobre o valor das tarifas, o que indica que o tratamento dos esgotos aparenta possuir impacto significativo nas tarifas praticadas pelas concessionárias, embora, destaca-se também, houve redução considerável no número de observações dos modelos após a inserção dessa variável.

Discussão

O déficit do acesso aos serviços de saneamento básico no Brasil tem sido tema de crescentes debates na população e no governo brasileiro nos últimos anos, o que culminou na alteração do marco legal do setor na figura da Lei n. 14.026/2020. Uma das soluções propostas à universalização do acesso pela norma é o incentivo ao aumento da participação privada na prestação dos serviços, uma importante alteração da configuração do setor, já que a maior parte da população brasileira é, atualmente, atendida por prestadores públicos, seja por meio das concessionárias estaduais, seja por estruturas oferecidas pelos próprios municípios.

Nesse cenário, o presente estudo se propôs a verificar o impacto que a desestatização do saneamento, especificamente da prestação de água e esgoto, teve tanto no acesso a esses serviços quanto nas tarifas por eles cobradas, avaliando o período compreendido entre 1998 e 2019, por meio da aplicação de modelos diferenças em diferenças a dados municipais retirados majoritariamente do SNIS e do IBGE.

Com relação à concessão ao setor privado dos serviços de água, verificou-se que a privatização teve impacto positivo. Esses resultados são condizentes com os de Faria, Faria e Moreira (2005FARIA, R. C.; FARIA, S. A.; MOREIRA, T. B. S. A privatização no setor de saneamento tem melhorado a performance dos serviços? Planejamento e Políticas Públicas, n. 28, p. 7-21, 2005.), Saiani (2012SAIANI, C. C. S. Competição política faz bem à saúde? Evidências dos determinantes e dos efeitos da privatização dos serviços de saneamento básico no Brasil. Tese (Doutorado em Economia) - Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, 2012.) e Casey (2019CASEY, P. M. Avaliação da efetividade de operadores privados nos índices de cobertura de água e esgoto no Brasil e recomendações para a estruturação da participação privada no setor de saneamento. Dissertação (Mestrado em Economia Empresarial e Finanças) - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.), mas divergem daqueles encontrados por Fujiwara (2005FUJIWARA, T. A privatização beneficia os pobres? Os efeitos da desestatização do saneamento básico na mortalidade infantil. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 33. Anais [...]. Natal: Anpec, 2005.), que observou evidências de que a privatização teria impactos nulos ou negativos sobre o acesso à água tratada.

Quanto a esse aspecto, destaca-se que os resultados do presente trabalho e os encontrados por Fujiwara (2005FUJIWARA, T. A privatização beneficia os pobres? Os efeitos da desestatização do saneamento básico na mortalidade infantil. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 33. Anais [...]. Natal: Anpec, 2005.) devem ser comparados com parcimônia, afinal, apesar de ambos usarem o modelo diferenças em diferenças, tanto a base de dados quanto a temporalidade e a abrangência dos estudos são diferentes.

Da mesma forma, quando se analisa o acesso aos serviços de esgoto, a concessão desses serviços ao segmento privado também apresentou resultado positivo na maioria dos modelos estimados.

Novamente, os resultados foram condizentes com aqueles apresentados por Casey (2019CASEY, P. M. Avaliação da efetividade de operadores privados nos índices de cobertura de água e esgoto no Brasil e recomendações para a estruturação da participação privada no setor de saneamento. Dissertação (Mestrado em Economia Empresarial e Finanças) - Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.), que observou impacto positivo e estatisticamente significativo de operadores privados em relação aos seus pares públicos nos índices de cobertura de esgoto. O autor também usou como base de dados o SNIS, mas para o período de 2006 a 2016.

Por outro lado, os resultados foram diferentes daqueles apresentados por Fujiwara (2005FUJIWARA, T. A privatização beneficia os pobres? Os efeitos da desestatização do saneamento básico na mortalidade infantil. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 33. Anais [...]. Natal: Anpec, 2005.), que identificou que a privatização teve impactos nulos ou negativos sobre o acesso a esgoto, e por Faria, Faria e Monteiro (2005FARIA, R. C.; FARIA, S. A.; MOREIRA, T. B. S. A privatização no setor de saneamento tem melhorado a performance dos serviços? Planejamento e Políticas Públicas, n. 28, p. 7-21, 2005.), que argumentam que as concessionárias não possuíam um nível de atendimento dos serviços de esgoto significativamente melhor do que o das instituições públicas.

Ao contrário de Fujiwara (2005FUJIWARA, T. A privatização beneficia os pobres? Os efeitos da desestatização do saneamento básico na mortalidade infantil. In: ENCONTRO NACIONAL DE ECONOMIA, 33. Anais [...]. Natal: Anpec, 2005.), que utilizou dados dos censos demográficos para 1991 e 2000, Faria, Faria e Monteiro (2005FARIA, R. C.; FARIA, S. A.; MOREIRA, T. B. S. A privatização no setor de saneamento tem melhorado a performance dos serviços? Planejamento e Políticas Públicas, n. 28, p. 7-21, 2005.) empregaram dados do SNIS, porém focando apenas nas informações de 2002. Ressalta-se que os autores alegaram que os resultados encontrados poderiam estar associados a fatores como a ausência de um marco regulatório adequado (que passou por mudanças desde então), o desenho dos contratos de concessão e o tempo de maturação dos contratos, já que muitas concessões eram recentes na época do estudo.

Também foi analisado o impacto da privatização no índice de esgoto tratado referido à água consumida (IN046) e os resultados indicam que a concessão dos serviços teve impacto estatisticamente significativo em todos os modelos estimados.

Como nem toda a água consumida gera esgotos, o cálculo do índice de tratamento de esgotos gerados (IN046) dificilmente alcançará índices acima de 90%, podendo superar 100% em casos de infiltrações de águas pluviais nas redes de esgoto, superestimando o indicador (SNIS, 2020).

Feitas essas considerações, o Diagnóstico dos serviços de água e esgoto, do SNIS, destacava que, em 2019, o índice de tratamento no país chegava a 49,1% no que diz respeito a esgotos gerados e a 78,5% para os esgotos que são coletados (SNIS, 2020), representando um dos grandes desafios quando se aborda a universalização do acesso aos serviços de saneamento básico no país, questão mencionada no PL 4.162/2019, que culminou na atualização do marco do saneamento. Logo, reforça-se a importância do tema, que ainda apresenta lacuna na literatura que versa especificamente sobre o impacto da privatização dos serviços de tratamento de esgoto no país, esforço proposto por este trabalho.

Por fim, foi investigado o efeito da privatização dos serviços de saneamento na tarifa média desses serviços. Os resultados permitem inferir que municípios que apresentem características comuns de Estado, PIB per capita, perdas de faturamento, qualidade dos serviços, despesas de exploração, investimentos, atendimento de água e tratamento de esgoto, para um mesmo ano e se trata de capital ou não, aparentam ter tarifas médias superiores aos seus pares que tenham prestações públicas desses serviços.

Os resultados encontrados são condizentes com aqueles de Justo (2004JUSTO, M. C. D. M. Financiamento do saneamento básico no Brasil - Uma análise comparativa da gestão pública e privada. Dissertação (Mestrado em Economia Regional e Urbana) - Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Campinas, 2004.) e Nozaki (2007NOZAKI, V. T. Análise do setor de saneamento básico no Brasil. Dissertação (Mestrado em Economia Aplicada) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2007.), que, após comparação da performance entre prestadores públicos e privados, verificaram que, com a participação do setor privado, o aumento da tarifa é um fato comum.

No entanto, é importante destacar uma observação quanto às tendências identificadas, que indicaram que as tarifas de prestadores privados e públicos foram praticamente coincidentes nos últimos dois anos da amostra (2018 e 2019), o que pode indicar uma mudança no padrão identificado neste estudo.

Em suma, os resultados da avaliação de impacto sugerem que a privatização dos serviços de água e esgoto tem impacto positivo sobre o acesso aos serviços de água e esgoto, o índice de tratamento de esgoto e a tarifa média praticada por esses serviços.

Entretanto, os resultados encontrados devem ser interpretados conjuntamente às limitações dos modelos, em função tanto da restrição de variáveis disponíveis, como da generalização feita ao agrupar todos os prestadores públicos em uma única categoria, já que envolvem os municípios atendidos tanto por concessionárias estaduais quanto por prestadores municipais, duas categorias bastante distintas entre si.

Outra limitação a ser considerada é a ausência de variáveis que captem o respeito ao direito humano ao saneamento básico na modelagem. Embora os indicadores de atendimento de água e esgoto busquem captar a inclusão das pessoas nos serviços, eles não conseguem mensurar a qualidade do serviço recebido, nem a equidade dentro dos municípios em relação a esse acesso. O controle da qualidade dos serviços de saneamento é essencial tanto para a saúde humana quanto para o meio ambiente.

Quanto aos resultados que avaliam o impacto da privatização sobre as tarifas praticadas dos serviços de saneamento, uma limitação importante é a falta de informações sobre as tarifas efetivamente praticadas pelos prestadores, bem como a escassez de informações sobre os mecanismos que garantam o respeito à capacidade de pagamento da população, como aqueles que instituem a tarifa social, e sobre a regulação desses serviços.

Conclusões

Os resultados dos modelos apresentaram indícios de que a privatização teve efeito positivo no acesso aos serviços de água e esgoto e no índice de tratamento de esgoto, mas, em contrapartida, a concessão aparentou resultar em aumento nas tarifas praticadas nesses municípios.

A partir desses resultados, o presente estudo conclui que o segmento privado pode representar um aliado do setor público na promoção da universalização do acesso aos serviços de água e esgoto tratados, desde que condicionado a um marco normativo sólido. Nas situações em que o valor ideal da tarifa venha a atingir níveis considerados muito elevados para remunerar adequadamente os serviços, uma possibilidade eventual é a adoção de subsídios públicos que garantam cobrir a diferença entre o valor recebido pela prestadora e o valor considerado justo a ser cobrado da população-alvo.

Em suma, a segurança jurídica envolve o aprimoramento do aparato normativo e regulatório, conciliando interesses conflitantes entre os segmentos público e privado, de modo a evitar o subfinanciamento e a interrupção dos serviços, bem como a redução da qualidade desses serviços, e evitar a exclusão de parte da população na cobertura universal almejada.

Finalmente, destaca-se que, no que tange ao controle de doenças transmissíveis, os maiores ganhos potenciais estão na ampliação dos serviços de saneamento nas regiões Norte e Nordeste do Brasil. Porém, apenas 29,7% dos municípios que passaram por experiências de concessão desses serviços no período se encontram nessas regiões. Assim, os resultados deste estudo devem ser interpretados com cautela quando aplicados ao possível impacto da privatização na universalização dos serviços nessas regiões e, por conseguinte, na redução de doenças transmissíveis.

Assim, como sugestões de estudos futuros relacionados a esta temática, estão: a inclusão das variáveis de regulação, tarifa social, qualidade do tratamento de esgoto, taxa de alfabetização e índice de urbanização na avaliação do impacto da desestatização; a avaliação do impacto da regulação dos serviços no acesso e nas tarifas praticadas no setor; a avaliação do impacto da desestatização após a entrada em vigência da Lei n. 14.026/2020; a avaliação do impacto do novo marco do saneamento na configuração do setor e nas metas estabelecidas na própria lei; a replicação do presente estudo considerando os municípios atendidos pelos prestadores públicos de acordo com a sua natureza jurídica, separando prestadores municipais das concessionárias estaduais; e a realização desse estudo focando em resultados nas regiões Norte e Nordeste, onde há o maior gargalo de universalização dos serviços no país, com maior potencial de impacto na saúde pública.

Referências

  • ANGRIST, J. D.; PISCHKE, J. S. Mostly harmless econometrics: an empiricist’s companion. Massachusettts Institute of Technology and The London school of Economics, 2009.
  • BORGES, G. M. Health transition in Brazil: regional variations and divergence/convergence in mortality. Cadernos de Saúde Pública, v. 33, n. 8, e00080316, 2017.
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  • *
    Este artigo se baseia, em parte, na dissertação apresentada pela primeira autora ao curso de Mestrado em Administração Pública da Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, da Fundação João Pinheiro, em 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    02 Mar 2023
  • Aceito
    01 Nov 2023
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