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Inefetividade e ineficiência: reflexões sobre a epidemiologia e os serviços de saúde de um estado de mal-estar social

Resumos

Apresenta-se uma discussão da efetividade da prática epidemiológica nos Serviços de Saúde Coletiva no Brasil. Além disso, são abordados os quadros de referência teóricos no que se refere ao objeto da epidemiologia em suas vertentes "clássica" e "social". Por fim, é destacada a importância da dimensão ideológica na configuração do "sujeito da ciência epidemiológica" e suas relações com a efetividade dos Serviços de Saúde Coletiva.


A discussion about effectiveness of epidemiological practice im Public Health Services in Brazil is presented. In addition, an approach towards theoretical frames concerning epidemiology's object is developed regarding ''social" and "classical" trends. Finally, it is emphasized the importance of ideological dimensions in devising the "subject of epidemiology" and its relationship with Public Health Services effectiveness.


ARTIGO/ARTICLE

Inefetividade e ineficiência: reflexões sobre a epidemiologia e os serviços de saúde de um estado de mal-estar social* * O presente trabalho fez parte da Comunicação Coordenada "Epidemiologia e Saúde Coletiva'', do 2°. Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva — (Abrasco) e 3°. Congresso Paulista de Saúde Pública, julho de 1989.

Luís David Castiel

Professor-assistente do Dept°. de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública — Fiocruz

RESUMO

Apresenta-se uma discussão da efetividade da prática epidemiológica nos Serviços de Saúde Coletiva no Brasil. Além disso, são abordados os quadros de referência teóricos no que se refere ao objeto da epidemiologia em suas vertentes "clássica" e "social". Por fim, é destacada a importância da dimensão ideológica na configuração do "sujeito da ciência epidemiológica" e suas relações com a efetividade dos Serviços de Saúde Coletiva.

ABSTRACT

A discussion about effectiveness of epidemiological practice im Public Health Services in Brazil is presented. In addition, an approach towards theoretical frames concerning epidemiology's object is developed regarding ''social" and "classical" trends. Finally, it is emphasized the importance of ideological dimensions in devising the "subject of epidemiology" and its relationship with Public Health Services effectiveness.

INTRODUÇÃO

O título deste trabalho está intencionalmente calcado na obra de Andrew Cochrane: "Effectiveness and Efficiency" (1972), cujo subtítulo é (traduzido) "Reflexões ao acaso sobre os Serviços de Saúde". Este texto se constitui numa das referências básicas para aqueles que lidam com a área de Epidemiologia nos Serviços de Saúde. Cochrane aborda o grau de eficácia de terapêuticas e procedimentos médicos na resolução de determinados problemas de saúde. Ao comparar evidências obtidas em diversos estudos epidemiológicos (incluindo ensaios clínicos), este autor dimensionou a importância desta disciplina para discriminar práticas consagradas, tanto cirúrgicas como clínicas, que não dispunham de evidências que as sustentassem como eficazes, mas que eram amplamente utilizadas. (7)

No entanto, é preciso salientar que isto ocorria no contexto do "National Health Service" inglês, sob a égide do "Welfare State" — Estado de Bem-Estar Social — dentro do modelo de Previdência Social das chamadas "democracias avançadas" dos países capitalistas ocidentais. Além disso, numa época pré-Thatcher que, no seu longo período de governo, reduziu consideravelmente o orçamento do Serviço Nacional de Saúde inglês com sua política desestatizante, em função da crise econômica das democracias capitalistas européias, a partir de 1974.

Mas, é claro que essa realidade está muito longe de corresponder ao que se passa abaixo do Equador. Atualmente, existe uma séria crise econômica, com inevitáveis desdobramentos nas esferas política, social e cultural. Sumariamente: instabilidade econômico-financeira (com raízes no déficit público do governo e na forma de administração da dívida externa), ameaça de um quadro hiperinflacionário, severo arrocho salarial, inépcia e incuria administrativa e gerencial do setor público, cortes orçamentários e uso inapropriado dos recursos destinados à área da Saúde, sinais de insolvência da Previdência Social. Ao mesmo tempo, não parece haver propostas políticas viáveis de reversão do presente quadro. É possível, caricaturalmente, dizer-se que se trata de efeitos de um projeto de governo. Nestas condições, não é fora de propósito conceber que a política social de tal governo pode ser encarada como da ordem do "Diswelfare State" — um Estado de Mal-Estar Social. Isto permitiria duas leituras não-excludentes — um Estado que: 1) não responde às necessidades e demandas sociais da grande maioria de sua população: basta notar o montante do PIB dirigido a gastos sociais; 2) através de sua inépcia, ajuda a promover este "mal-estar", ao aprofundar as crises que geram mais necessidades e demandas.

Esta aparentemente despropositada introdução tem o intuito de fornecer um cenário obrigatório para a discussão dos tópicos a serem desenvolvidos, quais sejam:

— Aspectos cruciais para a orientação das intervenções médico-sanitárias nos Serviços (eficácia, efetividade, eficiência) costumam ser desconsiderados. Então, cabe perguntar: quais seriam as razões que fazem com que intervenções prescindam de avaliações de resultados (e, inclusive, dispensem um diagnóstico acurado da situação de saúde)? Em suma, como se dá a prática epidemiológica nos Serviços de Saúde de um Estado de Mal-Estar Social?

— A epidemiologia, enquanto disciplina científica, tem sido alvo, a partir da segunda metade da década de setenta, de uma revisão crítica de suas bases conceituais e teóricas. Em especial no que se refere à redefinição de seu objeto de estudo. Foram produzidas muitas discussões a respeito de um outro modelo teórico que superasse as limitações e tendenciosidades do paradigma da História Natural das Doenças — positivista e escamoteador da determinação histórico-social do processo saúde-doença (2, 4, 9, 12, 14). Entretanto, o alcance daquele modelo, ao longo destes anos, parece ter ficado aquém das expectativas Haveria limitações ao nível do construto teórico? São necessários aperfeiçoamentos técnico-metodológicos? Em suma, em que medida as questões que cercam a problemática teórica da epidemiologia podem restringir sua capacidade de responder às demandas sanitárias das populações que necessitam de maior efetividade dos Serviços de Saúde via de regra, inefetivos.

A PRÁTICA EPIDEMIOLÓGICA NOS SERVIÇOS DE SAÚDE1 1 Parte do desenvolvimento deste tópico foi abordada em "O epidemiologista e os Serviços de Saúde Coletiva no Brasil", publicado nos Cadernos de Saúde Pública, PEC/ENSP, 4(4), out/ dez, 1988.

Antes de se entrar no tema propriamente dito, é importante esclarecer o conceito de "efetividade" que está sendo empregado. Segundo Tugwell et al, a efetividade de uma intervenção sanitária é mensurada em cinco dimensões: eficácia x precisão diagnóstica x aderência do responsável pela ação ("compliance") x aderência do recipiente da ação x cobertura.

A eficácia é definida como o grau em que a intervenção resolve, com mínimos efeitos danosos, a "questão de saúde" trazida pelos indivíduos, que são diagnosticados e tratados corretamente e que seguem à risca as recomendações e/ou terapêuticas.

A precisão diagnóstica implica a detecção de pacientes com necessidades em saúde "remediáveis". Vai depender da validade das avaliações clínicas e paraclínicas (sensibilidade, especificidade).

A aderência do responsável pela ação diz respeito à capacidade do profissional de saúde fazer o diagnóstico correto e proporcionar ao paciente as ações pertinentes ao caso (processo clínico).

A aderência do recipiente da ação refere-se ao grau com que os pacientes cumprem as recomendações e tratamento.

A cobertura relaciona-se com a magnitude em que uma ação eficaz está sendo utilizada apropriadamente por todos os indivíduos que podem ser beneficiados por ela.

A cobertura corresponde ao somatório de: detecção dos indivíduos com a condição de interesse; acessibilidade dos serviços de saúde que dispõem da ação eficaz; aceitabilidade dos serviços de saúde e da ação eficaz (16)

A inefetividade dos Serviços de Saúde Coletiva, na nossa realidade, pode ser delineada pelo grau com que estes elementos não são atingidos de modo satisfatório na maioria das doenças tansmissíveis-alvo da Vigilância Epidemiológica. A guisa de ilustração, é sugestivo pensar na forma como uma doença como a meningite é abordada em relação a cada um dos quesitos constituintes da noção de EFETIVIDADE.

Mencionou-se acima a Vigilância Epidemiológica, pois, de um modo geral, é a forma como os conteúdos epidemiológicos costumam ser utilizados na prática dos serviços (Secretarias Municipais e Estaduais de Saúde)2 2 Apesar da proposta do SUDS, os serviços de assistência médica da Previdência Social (ainda) não podem ser incluídos no rol de instituições de saúde coletiva que empregam conteúdos epidemiológicos na sua prática rotineira. . Isto é, na coleta, registro, consolidação, análise e divulgação de dados sobre a ocorrência de doenças transmissíveis, assim como na organização e consecução de campanhas de vacinação (por sinal, a situação onde, em função de características bem definidas, é possível determinar a efetividade da ação com razoável precisão). De um modo geral, os dados costumam ser precários. É considerável o grau de sub-registro, e, além disso, não se dispõe da medida da confiabilidade das notificações, uma vez que as atividades de investigação são irregulares. Talvez por isso, não se constituem em prática corrente análises estatísticas mais elaboradas. A "rotina" costuma consistir em acompanhar, de modo precário, o quadro de morbi-mortalidade por doenças transmissíveis para, na medida do possível, evitar situações epidêmicas incontroláveis. Isto ocorre dentro de um panorama epidemiológico desalentador: taxa de mortalide infantil acima de 60 óbitos por 1.000 nascidos vivos, altos níveis de desnutrição, ocorrência significativa de moléstias infecto-contagiosas agudas e crônicas e recrudescimento de doenças consideradas endêmicas.

Enfim, o instrumental epidemiológico não é utilizado em determinações mais apuradas que sirvam ao planejamento conseqüente de ações de saúde. É raro o emprego de técnicas de avaliação da efetividade de serviços e programas. De acordo com Holland, as razões para as avaliações não serem realizadas podem dizer respeito ao fato dos programas não apresentarem seus objetivos enunciados de forma precisa. Ou, ainda, seus participantes podem se sentir ameaçados, pois a avaliação talvez demonstre sua pouca efetividade. Vale acrescentar que um estudo avaliativo requer um rigor metodológico que, via de regra, os recursos humanos e financeiros dos Serviços não têm condições de assumir (10).

Por outro lado, há situações em que a continuidade do programa já está assegurada, seja por pressão de grupos de interesse, ou, menos freqüentemente, quando sua efetividade é inquestionável. Muitas vezes, pode ocorrer o fato do programa não dispor de uma orientação bem demarcada, de modo que seus integrantes improvisam constantemente, sem a necessidade de atingir metas preestabelecidas (17),

É preciso enfatizar a existência de um "ciclo vicioso": a atual configuração dos serviços propicia e sofre os efeitos da existência de quadros técnicos deficientes. A "rotina" não requer (e, ao mesmo tempo, desestimula) a preparação mais elaborada de seu quadro técnico. Não é necessário dominar conhecimentos envolvendo estudos analíticos, inquéritos, investigações avaliativas e procedimentos estatísticos que ultrapassem construção de tabelas e gráficos e medidas de dispersão e de posição, pois a "rotina" prescinde de tais "sofisticações".

Além disso, o fato do epidemiologista nos Serviços pertencer aos quadros do funcionalismo público estabelece uma série de vicissitudes: baixíssimos níveis de remuneração e de desempenho, num quadro de excesso de pessoal, via de regra, desmotivado e sem comprometimento com a obtenção de resultados. Sabe-se que o setor público sofre, há muito tempo, os efeitos da postura clientelista dos seus dirigentes, de modo que os Serviços tendem a funcionar como sinecuras e terreno fértil para o nepotismo.

É nos serviços públicos que repercutem as contingências geradas pelo modus operandi da chamada "máquina administrativa". São freqüentes as interferências em virtude dos eventuais confrontos político-partidarios, ou mesmo de ávidas disputas por pequenas fatias de "poder" na tecnoburocracia pública. Tais circunstâncias provocam sérios emperramentos gerenciais, técnicos e administrativos, com grande potencial inviabilizador de propostas que exijam graus mínimos de organização e articulação das distintas instâncias dos Serviços. Vale enfatizar a fragilidade institucional a ponto da continuidade dos programas ficar à mercê das mudanças de governo com as inevitáveis alterações dos quadros dirigentes.

Tem-se a impressão que os grupos que ocupam as posições de poder na estrutura do Setor Público procuram sustentar suas posições e cargos diante das constantes atribulações das configurações políticas dos estados. Isto pode fazer com que o atendimento das necessidades e demandas em saúde das populações seja negligenciado. Há uma tendência a se evitarem enfrentamentos que provoquem contrariedade de interesses de modo a determinar desgastes políticos. É evidente que todos estes fatores têm flagrante responsabilidade para a inefetividade e a ineficiência da escassa prática, dita epidemiológica, dentro dos Serviços. Diante deste panorama, é temerário construir expectativas desmedidas quanto às possibilidades da proposta do Sistema Único Descentralizado de Saúde reverter este quadro a curto prazo. Trata-se de um projeto que dependerá das lutas políticas no interior da atual conjuntura.

Mas, cabe indagar se não haveria questões vinculadas à própria Epidemiologia no dimensionamento do quadro descrito. E o que será desenvolvido a seguir.

A "DINÂMICA DA PESQUISA" EM EPIDEMIOLOGIA

As discussões sobre o marco referencial da Epidemiologia têm sido profusas no Brasil, especialmente nos diversos Encontros, Reuniões e Seminários sobre Ensino, Pesquisa e Prática Epidemiológica. (6) Mas, para se discutir esta questão, é preciso delimitá-la cuidadosamente. Para isto, vamos recorrer à abordagem de Bruyne et al em relação à dinâmica da pesquisa em Ciências Sociais (3).Estes autores distinguem "um espaço metodológico quadripolar", para a prática das ciências sociais, assim discriminado, resumidamente:

— polo epistemológico: no qual se decidem "as regras de produção e de explicação dos fatos, da compreensão e da validade das teorias" (3).No nível epistemológico

— ou seja, onde se procura a relação entre pensamento e realidade — podemos considerar quatro "processos discursivos": a dialética, a fenomenologia, a lógica hipotético-dedutiva, a quantificação. (3) Estas se constituem em modos de raciocínio que orientam a pesquisa e procuram expor, com rigor, os resultados obtidos.

— pólo teórico: onde se dá a construção de hipóteses e o desenvolvimento dos conceitos. E o "lugar da formulação sistemática dos objetos científicos" (3). Está vinculado aos "quadros de referência", que desempenham uma função paradigmática. Tais quadros referenciais são: o positivista, o compreensivo, o funcionalista e o estruturalista (3),

— pólo morfológico: é o nível onde se procura colocar um espaço de enunciação das regras de recorte do objeto científico, procurando alcançar algum grau de ordenação. E aqui que são incluídos os quadros de análise: a tipologia, o tipo ideal, o sistema, os modelos estruturais. A questão da causalidade é abordada, de modo específico, em cada um dos quadros de análise (3).

— pólo técnico: diz respeito ao processo de coleta de dados de modo a permitir que sua obtenção viabilize a confrontação com a teoria que os suscitou. É neste nível que se articulam os métodos de investigação: estudos de caso, estudos comparativos, experimentações, simulações (3).

Não é intenção deste trabalho detalhar estas concepções. O que importa, no caso, é situar como a epidemiologia, na condição de ciência social, se localiza nesta demarcação.

A nível epistemológico, não há dúvidas que se vincula, preponderantemente, ao processo discursivo quantificador. Nesta instância, a quantificação impõe uma ordem no real, reduzindo-o a um universo simbólico de números, autorizando, assim, a comparabilidade e a utilização de métodos estatísticos.

Segundo os autores citados, a quantificação consiste na atribuição de uma ORDEM de natureza classificatória a dimensões, propriedades ou qualidades de certos conceitos. Define-se, deste modo, uma correspondência entre as dimensões de cada conceito e determinados valores numéricos, dispostos segundo certas regras. Tais valores sofrem, assim, uma OPERAÇÃO de redução, expressos sob a forma de uma ESCALA, constituindo-se em VARIÁVEIS. Esta operação se dá a nível da coleta de dados e proporciona a obtenção de indicadores, que são representados por "medidas" numéricas. Estas, por sua vez, indicariam a aparência de cada dimensão. Daí a importância da validade (sensibilidade e especificidade) das medidas. Teríamos, assim, o seguinte esquema:

Conforme as características das variáveis, ter-se-ia um correspondente tratamento analítico (regressões e correlações, análises de variância, análises multivariadas) e a necessidade de testes de significancia, pelo fato de se lidar com amostras populacionais.

No que se refere ao polo teórico, o paradigma da epidemiologia é reconhecidamente de caráter positivista: observação de dados da experiência, das leis que regem os processos de causação da doença. A regularidade dos fenômenos observados leva à generalização (desde que se satisfaçam aos requisitos que consideram uma associação estatística como sendo de ordem causal). A lógica positivista fundamental da epidemiologia é a de formular observações de natureza comparativa (3), tanto que o método epidemiológico baseia-se, essencialmente, em estudos chamados "observacionais". Daí decorre a enunciação dos cânones causais de John Stuart Mill para orientar a construção das hipóteses de pesquisa. O uso da quantificação e da análise estatística busca trazer maior precisão entre as relações e as variáveis. Além disso, a ótica positivista adota posições pragmáticas, de modo a permitir a eficácia na ação (3). Isto fica evidente na concepção de tríade ecológica (agente, hospedeiro e meio ambiente) que viabilzaria os níveis da intervenção preventiva (profilática, terapêutica ou reabilitadora),

Em relação ao pólo morfológico, a epidemiologia constrói tipos, na medida em que estabelece variáveis — atributos vinculados a uma configuração que se busca descrever, de modo a elaborar tipologias. A questão básica é a de encontrar critérios pertinentes de discriminação que estabeleçam uma caracterização unívoca e representativa do objeto analisado. Para isto. o recurso metodológico que viabiliza a ordenação das observações é a TAXONOMIA (3). E na Epidemiologia isto se dá por meio das definições de doença propiciadas pelo saber médico (por exemplo: através da Classificação Internacional das Doenças). Desta forma, alcança-se o "tipo puro" — a definição de caso (p. ex.: meningite, definida por critérios clínicos e/ou laboratoriais). O quadro tipológico admite comparações mais refinadas mediante a quantificação.

No que diz respeito ao pólo teórico, das quatro possibilidades apresentadas por Bruyne et al — estudo de caso, análise comparativa, experimentação (campo/ laboratório), simulação —, o método epidemiológico está constituído basicamente pelas análises comparativas (caso-controle e coorte) e também estudos com menor grau de controle das variáveis (estudos ecológicos e transversais). Vale mencionar, também, relacionados às estratégias de desenho epidemiológico, os chamados "estudos quase-experimentais". Já as experimentações "de campo" (tipo "ensaios clínicos controlados") são utilizadas em menor grau, situando-se na fronteira com a pesquisa clínica. Apesar de algumas indicações no sentido do emprego do estudo de casos em Epidemiologia, este desenho costuma ser usado em situações muito específicas (11). Com a ampliação do uso de técnicas computacionais, vem aumentando significativamente a utilização de procedimentos de modelagem/simulação, especialmente nos centros mais desenvolvidos em pesquisa epidemiológica.

É interessante visualizar o esquema proposto por Bruyne et al sobre determinadas características do método (controlado/descontrolado; aberto/fechado; real/artificial) e o tipo do método:

Iversson e Almeida Filho sugerem, cada um a sua maneira, que a estratégia de desenhos de pesquisa em Medicina Social pode incluir, de modo mais freqüente, a utilização de métodos da antropologia, mesclados, em graus variados, às tradicionais técnicas epidemiológicas (1, 11). Isto implicaria, na opinião de Almeida Filho, que o epidemiologista deverá, além de trabalhar em equipes multidisciplinares, vir a dominar ambas as técnicas (1). Mas, antes de avaliar a viabilidade e o alcance de uma proposta desta natureza, há necessidade de ampliar o emprego das abordagens "tradicionais", tanto em termos quantitativos como qualitativos, seja na "academia" ou nos Serviços.

O PROBLEMA DO MARCO REFERENCIAL EM EPIDEMIOLOGIA

A partir dos "pólos" apresentados, é possível perceber onde se localizaria a tentativa de mudança no quadro de referência teórica da Epidemiologia Social. Em termos gerais, esta vertente tenderia a permanecer quantificadora, tipologizante e utilizando os métodos comparativos de estudo. Mas, sofreria uma modificação no seu processo discursivo "positivista", deslocando-se, aparentemente, a um nível "compreensivo". Nesta abordagem, procura-se discriminar o sentido da atividade social-individual e coletiva em função de uma intencionalidade. Tal sentido seria resultante da ação humana, determinada por valores, atitudes e concepções do mundo. Em termos coletivos, temos de pensar em um "sujeito histórico" — os fatos sociais seriam atribuídos a um conjunto causal que determina sua especificidade histórica — que, por sua vez, estaria subsumida ao entendimento prévio da ação social. No seu grau mais elaborado, teríamos a compreensão racional, que busca tornar explícita a racionalidade que a ação desenvolve: a relação entre os valores, os fins e os meios empregados para atingi-los (3).Para compreender a ação, é preciso conhecer os projetos dos grupos que buscam a hegemonia. Assim, não basta delimitar as particularidades do objeto de estudo, mas, também, do sujeito.

Nesta perspectiva, não é suficiente a redefinição do objeto da epidemiologia no paradigma da História Natural da Doença (ou seja, "populações doentes" — pertencendo a uma estrutura social "harmônica", na qual o processo saúde-doença seria o resultante de um desequilíbrio ecológico entre o agente, o ambiente e o hospedeiro). Almeida Filho sugere que se deve especificar o objeto da epidemiologia como: ''doentes em populações" (1),onde "o processo 'saúde-doença' , passa a ser considerado um processo social concreto (...), acentuando-se a historicidade de tais fenômenos e o caráter econômico e político das suas determinações" (1). Isto conduz à "impossibilidade de distribuição homogênea ou perfeitamente aleatória de patologias na população". Desta maneira, a temática essencial da pesquisa epidemiológica deverá ser a distribuição desigual de doenças entre os diferentes grupos sociais (1), constituída pelo que Breilh chama de "perfis epidemiológicos de classe" (2)

Na verdade, o que se propõe é uma modificação de recorte do objeto, de forma a permitir a visualização dos efeitos patogênicos dos processos histórico-sociais. Trabalhos recentes sugerem critérios de definição de classe social, objetivando a operacionalização do conceito de modo a utilizá-lo como variável que revelaria as desigualdades no adoecer nos diferentes grupos (13). A demarcação destes grupos talvez implique a necessidade de procedimentos estatísticos apropriados para manipular "pequenos números" e/ou a incorporação no pólo técnico dos estudos de caso, conforme as propostas de Iversson e Almeida Filho, já mencionadas.

Mas, convenhamos, estas tentativas de alteração de recorte do objeto ou da técnica de coleta de informação darão conta do objetivo de redefinição do paradigma epidemiológico? Tem parecido insuficiente que tais proposições sejam consistentes a ponto de propiciar mudanças substantivas na problemática de investigação do processo saúde/doença na nossa presente realidade. Para efeito de revelação do padrão nosográfico dos grupos excluídos do processo político e social, cumpririam seus intentos, mas não se mostram capazes, neste estágio, de trazer uma ruptura epistemológica à disciplina.

Esta preocupação pode ser depreendida do texto de Costa e Costa, que aponta para as "perplexidades" diante do alcance limitado da produção epidemiológica, ao diagnosticar uma crise na disciplina, "uma certa tendência de pensar-se como prática científica capaz de responder, com as mesmas armas da ciência positiva e verdadeira, aos desafios da conjuntura" (8).Estes autores, além disso, apontam para a necessidade de se pensar a questão do sujeito na ciência epidemiológica (8).

Ao enfocar o sujeito na Epidemiologia Social, percebe-se que a sua construção teórica está vinculada a uma concepção ideológica do processo saúde-doença, da mesma forma como sucede na epidemiologia "clássica", apesar de não-explicitada. (Aliás, um dos méritos da vertente "social" é mostrar o arcabouço ideológico embutido na concepção "clássica").

Mas, é importante ressaltar que um sujeito "ideologizado" arrisca-se a produzir "ciência ideologizada". Neste ponto, toma-se conveniente situar a que dimensão de ideologia está se referindo. Seguindo Therborn, os seres humanos podem localizar-se ideologicamente ao nível do "estar no mundo" — como membros que se definem ao ocupar mundos histórico-sociais; ou, então, no nível do "ser" — que produz significados existenciais gerais (sentido da vida, morte) e específicos (ideologia masculina, feminina) (15). Para efeitos de nossa discussão, estão sendo consideradas as ideologias histórico-sociais.

Não há dúvidas que se trata de evidenciar a racionalidade parcial de um projeto ideológico da classe hegemônica. Trazendo o problema para a dimensão tópica dos Serviços de Saúde e das funções da Epidemiologia em aferir e viabilizar a efetividade das ações de Saúde, fica evidente que esta dimensão vai estar condicionada pelo papel do Estado vis-à-vis grupos sociais atuando pela orientação de benefícios e privilégios em seu favor, em detrimento de outros grupos. Neste quadro, a ótica da Epidemiologia Social cumpre o papel (ideológico) de evidenciar as discrepâncias desta configuração. Mas não se constituiu, ainda, num referencial teórico-conceitual que tenha superado, a contento, o positivismo inscrito na ciência epidemiológica tradicional, a ponto de se tornar alternativa à produção de conhecimento sobre o processo saúde-doença.

Isto é perceptível ao se dividir em "níveis" a determinação do processo saúde-doença, como faz Castellanos. O nível "singular" pertenceria à Epidemiologia "Clássica", cujo instrumental técnico deve ser dominado por aqueles "que desejam dar respostas a partir dos Serviços de Saúde ou em condições de limitações de recursos de poder " (5). O nível "particular" (espaço da Epidemiologia Social), aborda os problemas de saúde de modo a "identificar as acumulações que produzem o perfil de saúde-doença de cada grupo (social) e identificar as ações a nível biológico (...), ecológico (...), das formas de consciência e conduta (...) e a nível das relações econômicas que temos possibilidade de modificar"(grifos nossos)(5). Na verdade, trata-se de uma ótica de alteração das relações de poder na formação sócio-econômica, responsável pelas desigualdades sociais que condicionam padrões epidemiológicos de adoecer dos grupos sociais.

Torna-se perceptível a existência dos "vieses" ideológicos, mas não é possível refutar incondicionalmente a eficácia da vertente "clássica", nem sua robusta coerência interna na estratégia de produção de conhecimento sobre saúde-doença (mesmo em função de outra concepção ideológica). Nestes aspectos, a Epidemiologia Social, possivelmente em virtude de seu tempo reduzido de existência, ainda não conseguiu um grau equilibrado de desenvolvimento nos quatro pólos metodológicos de pesquisa.

Mas, e a efetividade dos Serviços? É possível afirmar que está condicionada por aspectos externos à produção "científica" da epidemiologia. Vai depender, em última análise, das lutas políticas que devem ser travadas com o objetivo de transformar as desigualdades sociais deste país. Não obstante, o instrumental epidemiológico tem um papel importante a cumprir, mesmo "em condições de limitações de recursos de poder". Entretanto, cabe ressaltar que a negação da "ideologização" do marco referencial da epidemiologia pode obscurecer as diversas dimensões do problema colocado pelas prementes necessidades em saúde das populações. E, assim, a epidemiologia pode deixar de desempenhar o seu potencial de reduzir a inefetividade dos atuais Serviços de Saúde, reagindo contra a perversão embutida no projeto do Estado de Mal-Estar Social.

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  • *
    O presente trabalho fez parte da Comunicação Coordenada "Epidemiologia e Saúde Coletiva'', do 2°. Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva — (Abrasco) e 3°. Congresso Paulista de Saúde Pública, julho de 1989.
  • 1
    Parte do desenvolvimento deste tópico foi abordada em "O epidemiologista e os Serviços de Saúde Coletiva no Brasil", publicado nos Cadernos de Saúde Pública, PEC/ENSP, 4(4), out/ dez, 1988.
  • 2
    Apesar da proposta do SUDS, os serviços de assistência médica da Previdência Social (ainda) não podem ser incluídos no rol de instituições de saúde coletiva que empregam conteúdos epidemiológicos na sua prática rotineira.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jul 2005
    • Data do Fascículo
      Mar 1990
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