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Debate sobre o artigo de Regina Cele de A. Bodstein

Debate on the paper by Regina Cele de A. Bodstein

DEBATE DEBATE

F. Roland Schramm

Departamento de Ciências Sociais, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro

Debate sobre o artigo de Regina Cele de A. Bodstein Debate on the paper by Regina Cele de A. Bodstein

Parmi les objets nouveaux qui, pendant mon séjour aux États-Unis, ont attiré mon attention, aucun n'a plus vivement frappé mes regards que l'égalité des conditions.( ... ) Je veux imaginer sous quels traits nouveaux le despotisme pourrait se produire dans le monde: je vois une foule innombrable d'hommes semblables et é-gaux qui tournent sans repos sur eux-mêmes pour se procurer de petits et vulgaires plaisirs, dont ils emplis- sent leur âme. Chacun d'eux ( ... ) n'existe qu'en lui même et pour lui seul. (A. de Tocqueville, 1835-1840)

Em Cidadania e Modernidade: Emergência da Questão Social na Agenda Pública, Regina Bodstein apresenta aquele que pode ser considerado o dilema ético-político na construção da cidadania moderna. Este dilema, ou paradoxo, diz respeito à unidade – ao mesmo tempo 'complementar' e 'antagônica'- entre liberdade individual e justiça social; quer dizer, entre dois dos três princípios reguladores pertencentes à assim chamada 'Santíssima Trindade' (Morin, 1993), estabelecida a partir da Ilustração e da Revolução Francesa (o terceiro sendo a fraternidade ou solidariedade). O equacionamento entre tais princípios não é possível recorrendo à lógica clássica, respeitosa do princípio de não-contradição, se é verdade, como sugere Morin, que "a Liberdade sozinha destrói a Igualdade e não constrói a Fraternidade", ao passo que "se vocês impõem a Igualdade, vocês destroem a Liberdade, e não se terá a Fraternidade" (Morin 1993). Para poder pensar paradoxos deste tipo, ou seja, distinguindo sem separar e juntando sem confundir, parece, portanto, ser necessário recorrer aos instrumentos conceituais do método da complexidade.

A sociedade moderna, a partir da Ilustração, tenta construir sua legitimidade ético-política pelo equacionamento do conflito entre direito à liberdade individual (ou autonomia) e dever da justiça social (ou eqüidade). Mas, de fato, não consegue resolver o conflito, a não ser parcialmente e por um breve período, no nosso século, com as políticas do Estado de Bem-Estar, que (no fundo) foram mais paliativas do que uma verdadeira cura contra a injustiça e a indigência.

No entanto, o projeto de conciliar liberdade (autonomia) e igualdade (justiça) enraíza-se no imaginário profundo da cultura ocidental, tornando-se uma das preocupações constantes a partir da Idade Moderna, quando se delineia a identidade do ethos ocidental, embasado na cultura dos direitos humanos universais. Historicamente, a relação entre autonomia e justiça se inscreve nas três linguagens principais que formam sucessivamente o ethos ocidental: na Grécia Antiga, pela ética das virtudes (que distingue o 'bom' e o 'mau') na sociedade moderna, pela ética das normas(que distingue o 'correto' do 'incorreto'); na sociedade contemporânea, pela ética dos valores (que distingue o 'válido' do 'não válido') (Grácia, 1994).

Mas, nesta virada de milênio, qualificada impropriamente de pós-moderna (quando, de fato, deveria talvez ser chamada de antimoderna), assiste-se a um enfraquecimento dos laços construídos ao longo da Modernidade, cujo resultado principal é o conflito, cada vez mais patente, entre direitos civis e políticos na esfera privada (conhecidos também como direitos de primeira geração) e direitos sociais na esfera pública (conhecidos como direitos de segunda geração). Devido a seus efeitos sobre a dignidade da pessoa e a qualidade de vida de uma crescente fatia da população mundial, este paradoxo merece um amplo debate público, sobretudo tendo em conta a emergência de uma cultura dos limites que pretende limitar (e até substituir) a cultura dos direitos humanos universais.

As questões levantadas por este paradoxo são multas, como demonstra o amplo debate entre modernos, pós-modernos, modernos tardios, iniciado no final dos anos 70 entre filósofos e sociólogos – lembrarei aqui só os nomes bem conhecidos de Lyotard, Rorty, Habermas, Touraine e Castoriadis, também citados pela autora – e que provavelmente não está prestes a terminar. No meu comentário, quero limitar-me ao problema do assim chamado "mal-estar da Modernidade" (Taylor, 1991), que pretendo abordar pelo viés de duas questões inter-relacionadas e que formam o único problema da identidade complexa da modernidade:

a) a questão das raízes da cultura ocidental – a greco-romana e a judaico-crist㠖, sem as quais não é possível entender plenamente tal mal-estar';

b) a questão da necessidade de 'complexificar' os princípios da autonomia individual e da justiça (ou eqüidade) social, ambas inscritas no Projeto Moderno, mas quase sempre vistas como uma polaridade, senão uma antinomia.

A primeira questão é abordada só tangencialmente pela autora (é por isso que me concentrarei essencialmente nela); a segunda constitui o ponto central de sua argumentação, quando ela escreve "a polarização ideológica entre as concepções liberal (favorável ao individualismo) e marxista (vinculada às representações holísticas do social) deve ser revista".

A dupla origem da modernidade e sua identidade complexa

O primeiro argumento da autora é de que "a tradição da filosofia grega não indica onde, nem propicia o instrumental necessário para encontrar os fundamentos explicativos da pobreza, da injustiça, da desigualdade e da exploração social" de que "a questão social só foi de fato formulada como 'problema' partir da Idade Moderna", "colocando para a modernidade o desafio de conciliar a representação de uma sociedade formada de cidadãos iguais em direitos, dilacerada, porém, pelo espetáculo da miséria e da degradação social". O problema da modernidade seria, portanto, o de conciliar a ideologia individualista, que "rompe com a concepção holística e aristotélica do social", e a igualdade política e social, capaz de ultrapassar o 'domínio da necessidade'.

Efetivamente, a cultura grega não pôde, sozinha, fornecer a explicação da pobreza e da injustiça (nem solucioná-las) pelo menos por dois motivos: 1) porque é uma cultura democrática (Atenas) sui generis, quer dizer, excludente e não universalista, aplicável à pólis e não ao universum (isto é patente tanto em Platão, quanto em Aristóteles, que não questionam, por exemplo, a escravidão); 2) porque a linguagem ética vigente na Grécia tem a ver com virtudes e vícios, não com direitos e deveres: em Aristóteles, por exemplo (o primeiro filósofo que nos fornece uma reflexão sistemática sobre a ética na Ética a Nicômaco), a justiça é a virtude que encerra todas as outras e a essência da sociedade civil (Pegoraro, 1995). Em suma, a justiça é a virtude da política, mas aplicável somente aos cidadãos livres. Ela não é, portanto, universal. Isto faz com que a exclusão possa ser encarada como pertencente à ordem natural das coisas ou, como diz justamente H. Arendt (lembrada pela autora), pertencente ao domínio da necessidade, a uma lei natural ou a um destino. O mesmo pode ser dito mutatis mutandi para a cultura romana pré-cristã.

A verdadeira ruptura com este "estado natural das coisas", com a vigência da mera " lei da necessidade", deve-se à outra raiz da cultura ocidental: a judaico-cristã, sem a qual, como mostrou jonas (1974), é impossível compreender a tradição moderna de forma que não seja superficial.

Para Jonas, a tradição greco-romana concebia o mundo como eterno, ao passo que a tradição judaico-cristã introduz no pensamento ocidental os conceitos de criação do mundo e de encarnação, sendo, portanto, a idéia segundo a qual o mundo tem um início temporal, isto é, uma história e é algo feito, produzido.

Em segundo lugar, a cosmovisão greco-latina era dominada pelo conceito de necessidade, ao passo que a visão bíblica introduz o conceito de contingência e estabelece, pela primeira vez, a separação entre Deus e o Mundo, o que levará à distinção entre Filosofia da Natureza e Filosofia do Homem da Época Moderna. Ou seja, estamos em presença de duas Weltanschauungen diferentes, que irão coexistir e colidir, sem parar, no interior da tradição moderna: 1) a da filosofia grega, que acreditava ser o Mundo a imagem de Deus, 2) a das Escrituras, que tinham reservado este privilégio para o Homem, negando-o ao Mundo, o que tornara o Mundo obra de Deus (Bacon apud Jonas, 1974). Mas, assim fazendo, o monoteísmo judaico-cristã começa, paradoxalmente, o processo de dessacralização do mundo, colocando as bases para uma igualdade fundamental entre criaturas, fato que muda o estatuto ontológico da existência individual, desconhecido na cultura filosófica clássica de matriz grega, e introduz o modo discursivo ocidental da emancipação (Jauss, 1978). Em suma, do encontro entre Atenas e Jerusalém nasce a combinação inédita entre individualismo e universalismo, que formará a identidade moderna e que permitirá, entre outras coisas, a crítica do individualismo (pelo marxismo) em nome do igualitarismo e dos ideais de justiça e de igualdade, assim como a crítica dos totalitarismos, inclusive a 'ditadura da maioria', em nome do respeito da pessoa, do indivíduo, numa sociedade que se concebe, sobretudo, como sociedade de pessoas.

GRÁCIA, D., 1994. I diritti in sanità nella prospettiva della bioetica. L'Arco di Giano. Rivista di Medical Humanities, 4:29-44.

JAUSS, H. R., 1978. Pour une Esthétique de la Réception. Paris: Ed. Gallimard.

JONAS, H., 1974. Jewish and christian elements in the western tradition. In: Philosophical Essays. From Ancient Creed to Technological Man (J. M. Robertson, org.), pp. 21-44, Chicago: The University of Chicago Press.

MORIN, E., 1993. A construção da sociedade democrática e o papel da educação e do conhecimento para a formação do imaginário futuro.In: Construtivismo Pós-Piagetiano (E. P. Grossi & J. Bordin, orgs.), pp. 11 -25, Petrópolis: Ed. Vozes.

PEGORARO, O., 1995. Ética é Justiça. Petrópolis: Ed. Vozes.

TAYLOR, C., 1991. The Malaise of Modernity. Charies Taylor and Canadian Broadcasting Corporation.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Ago 2001
  • Data do Fascículo
    Abr 1997
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