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Ariadne, Dédalo e os bondes do tigrão

DEBATE DEBATE

Luís David Castiel

Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. castiel@ensp.fiocruz.br

Debate sobre o artigo de Mary Jane P. Spink

Debate on the paper by Mary Jane P. Spink

Ariadne, Dédalo e os bondes do tigrão

Nesta tentativa de contribuição ao debate, espero fazer jus ao nível de qualidade e de pertinência alcançados pela Professora Mary Jane Spink ao apresentar e desenvolver idéias e conteúdos muito bem articulados em seu belo artigo. Em função de maior convívio com uma disciplina riscológica por excelência, inicio o comentário com o foco sobre a epidemiologia. Mais, especificamente pretendo ressaltar o próprio aspecto discursivo - metafórico, encontrado no conceito de risco. Considere-se, por exemplo, o fato de não ser costumeiro o emprego das designações "grande/pequeno", "forte/fraco" ou mesmo, "muito/pouco" para indicar as características do risco, conforme sua quantificação.

Na verdade, os adjetivos utilizados nestas circunstâncias estão vinculados à idéia de verticalidade: "alto/baixo risco". Estes se baseiam no conceito metafórico (comum a outros conceitos científicos): "mais é em cima; menos é embaixo", baseado na representação visual dos aspectos quantitativos em questão, sob o ponto de vista de um "empilhamento" (como se aparece em determinados gráficos).

Este conceito metafórico orientacional foi delineado por Lakoff & Johnson (1980). Os autores esclarecem que sua formulação, tal como apresentada, é limitada, pois não assinala a inseparabilidade das metáforas de suas respectivas bases experienciais. Estas, por sua vez, podem variar, mesmo em outras metáforas relativas à verticalidade. No caso de, por exemplo, "saúde e vida é acima, doença e morte é abaixo", a base experiencial parece ser a posição corporal que acompanha estes estados/condições.

Mais relevante ainda é a constituição do conceito de risco como uma peculiar metáfora ontológica, ou seja, enquanto entidade virtualmente detentora de substância. Ao trazer-se substância ao risco, este pode ser objetivado, e assim, delimitado em termos de possíveis causas que, por sua vez, podem ser decompostas em partições. Esta operação estatística permitiria respectivas quantificações e eventual estabelecimento de nexos - associações, correlações.

O indivíduo, ao se expor a supostos "fatores de risco", faz com que o risco, entidade incorpórea, passe a ter a propriedade de se materializar sob sua forma nociva - que pode ser denominada agravo (entre várias outras designações), numa operação semântica equivalente a que demarca doença em sua acepção metafórica ontológica. Só que, neste caso, os riscos "existiriam", por um lado, como potenciais invasores de corpos. Mas, por outro, a ambiência metafórica deste mundo virtual e fantasmático dos riscos poderia adquirir visibilidade (e, portanto, concretude) nos resultados de exames imagéticos/testes laboratoriais indicativos dos efeitos da exposição a fatores de risco. Por exemplo, presença/ausência de displasia mamária ou taxas elevadas do colesterol (especialmente LDL - o ruim...) ou ainda, mais modernamente, nas testagens gênicas para câncer de mama.

Mas não é necessária a corroboração médico-laboratorial para instituir a "visibilidade/ presença do risco". Basta ser obeso ou apresentar trejeitos supostamente relacionados ao comportamento homossexual, para ser virtualmente incluído em determinadas condições encaradas como mais vulneráveis (Castiel, 1996).

Agora, antes de prosseguir, é preciso deixar explicitado meu intento (talvez despudorado...) de imitar o bem sucedido expediente empregado por Spink. Ou seja: também utilizar exemplos oriundos da imprensa leiga (e também da literatura). Na edição latino-americana do conhecido semanário Time de 6 de setembro de 1999, a reportagem de capa mostrou um montanhista pendurado em uma rocha com uma paradoxal fisionomia, aparentando um misto de deleite e esforço físico. A chamada enunciava: "Why we take risks. From extreme sports to unprotected sex, thrill is becoming more popular (...)". Localizado na seção apropriadamente chamada "Aventura" - junto ao título do texto, Life on the Edge, segue o subtítulo perguntando se a vida cotidiana está ficando muito enfadonha (dull) e porque, então, americanos buscam (seek) o risco como nunca antes (Greenfeld, 1999). Há, em síntese, uma detalhada descrição de muitas modalidades de esportes ditos extremos (ou radicais) incluindo corridas de Fórmula 1, de atividades ligadas a investimentos financeiros de risco em bolsas e mercados, de profissões que lidam com emergências - neuro-cirurgiões, bombeiros (soldados do fogo). O texto encerra sugerindo que "sem alguma expressão de risco as pessoas podem nunca conhecerem seus limites e portanto quem são como indivíduos".

Há na matéria tentativas de explicar o fenômeno. Entre elas, referências ao best seller de Peter Bernstein sobre risco. Deste, um comentário é destacado: para todas estas "coisas" acontecerem é preciso um particular tipo de ambiente. Tal ambiente enfatiza a presença da grande prosperidade norte-americana e a ausência de guerra envolvendo a participação direta dos Estados Unidos por mais de uma década. Difícil avaliar o grau de pertinência destas afirmações. A reportagem inclui um inevitável teste avaliativo - quiz - da capacidade de se expor a riscos, elaborado pelo psicólogo - entrevistado no texto - Frank Farley da Temple University. Este, por sua vez, postula que correr riscos conscientes envolve superar instintos e sugere a existência de uma personalidade tipo T - risk takers (com subtipos: T físico - atletas extremos, T intelectual - grandes cientistas...). E conclui (suponho que com regozijo) com uma extrapolação ao afirmar que os Estados Unidos são uma nação tipo T. O espaço disponível e o propósito deste comentário obrigam que evitemos entrar no mérito dessas proposições...

No Brasil, a editora L&PM lançará no verão de 2001 uma sintomática coletânea chamada Prazeres e Riscos (Machado, no prelo) - livro irregular, mais estilo "leitura de bordo", que mescla pequenos textos de autores clássicos e contemporâneos de níveis bastante desiguais sobre aspectos diversos que envolvem tal temática. Cícero (velhice), Baudelaire (vinho), Balzac (mulher de 30 anos), Dostoievsky (jogo) são agrupados com Millor Fernandes (cidadania) mas também com um cirurgião cardíaco, jornalistas de Fórmula 1 e de culinária, um especialista profissional em incursões por regiões inóspitas (prazeres e riscos da aventura), entre outros.

Revista Veja - edição de 25 de abril de 2001. Matéria sobre tigres como animais de estimação nos Estados Unidos e uma menção a um empresário alemão naturalizado brasileiro que cria um tigre de Bengala de quatro anos na sua fazenda em Santa Catarina. Diz ele: "É um desafio, e sem desafios a vida não tem graça" (Veja, 2001:76). O tigre habita uma área de três hectares, com cachoeira artificial (costuma banhar-se com freqüência) e come cinco quilos de carne por dia, podendo chegar a sete, quando ficar adulto.

Estas vinhetas servem, de certa forma, para se juntar aos exemplos apresentados pela autora. No entanto, elas pretendem ir além e enfatizar a impressão, salvo equívoco, de todas referirem-se, na maior parte das vezes, a um ponto de vista específico que se reitera ao longo dos exemplos, acentuadamente marcado pelos signos do acesso aos mercados e da participação nos processos consumidores. Da mesma forma, muitos dos autores que sustentam teoricamente as postulações de Spink, parecem pertencer e analisar contextos equivalentes a partir de seus lugares de scholars, em geral, no lado de cima do Equador. Então, creio caber uma pergunta: "quanto" de suas proposições permanecem sustentáveis e válidas para o lado de baixo dessa imaginária linha? Totalmente? Parcialmente? Alguns determinados aplicáveis a contingências específicas? Quais?

Para seguir adiante, em uma inflexão metafórica, vamos "amplificar" o felino mencionado anteriormente e fazer referência ao dito movimento funk originário das favelas do Rio de Janeiro. Houve grande visibilidade (e audibilidade) nacional nesse primeiro verão do novo século, com músicas de batida eletrônica repetitiva e letras de duplo sentido (às vezes nem tão duplo assim...) com fortes conotações sexuais. A música emblema ("vou passar cerol na mão, assim, assim" etc...) foi confeccionada pelo conjunto autodenominado Bonde do Tigrão, ou seja: um grupo de jovens do sexo masculino dispostos em ritmo de aventura, de preferência sexual.

Uma das celeumas ligadas a tal movimento foi trazida pela divulgação da ocorrência de relações sexuais desprotegidas (eventualmente múltiplas) no salão, no decorrer dos bailes. As moças já viriam "preparadas" para essa possibilidade, ou seja, desprovidas de vestes íntimas para uma suposta "facilidade de acesso". Essas circunstâncias seriam responsáveis por engravidar e possivelmente contaminar com doenças venéreas de distintos tipos e gravidade diferenciada. Algo talvez não diferente de muitos bailes de carnaval, quando ocorrem situações onde vigoram estados euforizantes, propícios a excessos/transbordamentos de várias ordens.

Ainda assim, não parece tão simples compreendermos o repertório de significados envolvidos nessa e em outra formas de exposição a riscos. Em particular, seriam aspectos do risco-aventura no mesmo registro que as "formas corrompidas dos ilinx modernos na perspectiva do ordálio" a partir de Le Breton, referido por Spink? E/ou, em termos mais gerais, como aspectos ligados à globalização, à individualização e à reflexividade da sociedade de risco na modernidade tardia, tais como sugeridos por Ulrich Beck?

Beck, assinalado no texto como referência fundamental, postula a complexidade e a natureza sistêmica (meu sublinhado) dos riscos modernos - "riscos manufaturados, produtos dos desenvolvimentos da ciência e da tecnologia" (Beck, 1993, apud Spink). No entanto, como salienta Lupton (1999), as representações de Beck (e, de certa forma, também de Giddens) podem ser consideradas excessivamente especulativas, tratando mais de processos estruturais e organizacionais, sem incluí-los de modo suficiente especificamente nos processos reais e experiências da vida cotidiana e institucional. Pode-se, ainda, argumentar que Beck e Giddens em sua ênfase na individualização não dedicam um reconhecimento suficiente quanto a aspectos simbólicos compartilhados do risco, sejam comunais, sejam estéticos.

A reflexividade não está apenas baseada em avaliações de caráter cognitivo, mas também depende de interpretações, vinculadas a dimensões sócio-culturais ainda localizadas, mesmo em meio a processo desterritorializantes. As respostas ao risco são também desenvolvidas mediante a pertença das pessoas a grupos e redes sociais, o acesso a recursos materiais e a inclusão/exclusão nas relações de poder.

A exemplo da figura mitológica, mescla de humana e deusa, Ariadne - Beck e Giddens procuram nos orientar no interior do labirinto (inclusive dos riscos) da modernidade tardia (Castiel, 1999). Mas, neste caso, creio que o próprio Dédalo (que instruiu Ariadne a usar o fio condutor para permitir Teseu encontrar a saída do labirinto após matar o Minotauro) tem dificuldades para compreender as cambiantes dimensões e formas desse labirinto tardo-moderno que se reconfigura autonomamente sem cessar. Poderia Ariadne nos ajudar a escapar dos alto-falantes do grande labirinto midiático onde tonitroa o onipresente Tigrão que não parou de nos acossar nos últimos tempos? Em outros termos, como lidar com a pletora de novos e excessivos signos que decerto continuarão a ser gerados e, feito almas penadas, sairão à cata de significados para depois desaparecerem rapidamente, como ocorre nestes tempos simultaneamente proliferativos e evanescentes?

Latour (1999) refere-se ao mito de Dédalo para estudar o "coletivo de humanos e não-humanos" (forma com que o autor evita se referir à "sociedade" e a "sujeitos" e "objetos", por esses termos manterem vínculos com proposições modernistas) constituído cada vez mais por artefactos técnicos e por suas interconexões labirínticas com os humanos. Dédalo representa bem a sinuosa configuração do saber-fazer técnico para além do caminho retilíneo da razão e do conhecimento científico. Dédalo também é outra forma de designar o "labirinto" com suas curvas inesperadas, obrigando-nos a dar guinadas ao percorrer seus desvios.

De modo bastante abreviado, nossos tempos labirínticos se caracterizam pela produção incessante e engenhosa de novas tecnologias e correspondentes repercussões na ampliação e na velocidade de circulação das trocas econômicas, na proliferação de estratégias de mediação comunicacional, na multiplicação e diluição das matrizes identitárias, no clima generalizado de ambiguidade quanto às perspectivas de orientação em curto prazo e na crise de sentido.

A respeito desse último aspecto, uma aguda observação de Georges Balandier (1999) merece ser mencionada para ilustrar a problemática de estudar-se temas fugidios que dão margem a polêmicas e permitem distintas abordagens, eventualmente antagônicas. O etnólogo francês enfatiza a grande fragilidade das palavras quando se tenta explicar esses tempos vertiginosos. O vocabulário disponível consegue apreender precariamente tão-somente partes limitadas do que acontece ao nosso redor. Mas logo, de modo difuso, um aspecto fragmentário, metonímico é confundido com o todo, tornando-se referência até ser substituído rapidamente por outro.

O grande problema, deste modo, é que essas construções não podem ser consideradas como sendo verdadeiras ou falsas. Pois, de alguma forma, referem-se a porções "reais" do que existe. Mas, ao mesmo tempo, seu recorte é, muitas vezes, tomado não só como representante fidedigno do todo, mas como sendo o próprio "todo". Enfim, temos de admitir, a priori, que operamos cada vez mais com conceitos e idéias precárias e sujeitas a controvérsias e imprecisões (Castiel, 2000).

Sem dúvidas, o estimulante texto de Spink propicia, com extremo vigor, tanto reflexões como indagações a respeito dos estranhos e ambivalentes tempos em que vivemos. Estranheza e ambivalência abordada por vários pensadores - Ariadne, onde se destaca especialmente Zygmunt Bauman.

Acredito valer a pena citá-lo mais detidamente: "(n)o mundo pós-moderno de estilos e padrões de vida livremente concorrentes, há ainda um severo teste de pureza que se requer seja transposto por todo aquele que solicite ser ali admitido: tem de mostrar-se capaz de ser seduzido pela infinita possibilidade e constante renovação promovida pelo mercado consumidor, de se regozijar com a sorte de vestir e despir identidades, de passar a vida na caça interminável de cada vez mais intensas sensações e cada vez mais inebriante experiência. Nem todos podem passar nessa prova. Aqueles que não podem são a 'sujeira' da pureza pós-moderna. (...) (O)s deixados de fora como um problema são consumidores falhos - pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam os recursos requeridos, pessoas incapazes de ser 'indivíduos livres'(...)" (Bauman, 1998:23-24).

E eu acrescentaria: impossibilitados de escolher e bancar sua inclusão nos afluentes e múltiplos jogos de risco-aventura possíveis, proporcionados pela modernidade - ainda que tardia. Algo situado para além do ruído causado pelos bondes dos tigrões ou de outras atividades de risco impuras - como o surfe ferroviário ou pior ainda, a participação nos escalões inferiores do narcotráfico.

BALANDIER, G., 1999. O Dédalo. Para Finalizar o Século XX. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil.

BAUMAN, Z., 1998. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores.

CASTIEL, L. D., 1996. Moléculas, Moléstias, Metáforas. O Senso dos Humores. São Paulo: I-Editora < //www.ieditora.com.br>.

CASTIEL, L. D., 1999. A Medida do Possível. Saúde, Risco e Tecnobiociências. Rio de Janeiro. Editora Contracapa/Editora Fiocruz.

CASTIEL, L. D., 2000. Dédalo dentro do dédalo? Identidade cultural, risco e promoção de saúde. In: VI Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva - O Sujeito na Saúde Coletiva, Anais, CD-ROM, Salvador: ABRASCO.

GREENFELD, K. T., 1999. Life on the edge. Time, 153:16-20.

LAKOFF, G. & JOHNSON, M., 1980. Metáforas de la Vida Cotidiana. Madrid: Cátedra.

LATOUR, B., 1999. Pandora's Hope. Essays on the Reality of Science Studies. Cambridge: Harvard University Press.

LUPTON, D., 1999. Risk. Key Ideas. London: Routledge.

MACHADO, I. P. (ed.), no prelo. Prazeres e Riscos. Porto Alegre: L&PM.

VEJA, 2001. Bando de tigrões. Veja, 1697:76.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Mar 2018
  • Data do Fascículo
    Dez 2001
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