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Pedófilo, quem és? A pedofilia na mídia impressa

Pedophile, who are you? A study of pedophilia in the press

Resumos

O artigo traça as características atribuídas pela mídia impressa (Folha de S. Paulo)à pedofilia - incluindo aqui a imagem do agressor (quem pratica) e as razões atribuídas a tal ato ou comportamento (o porquê). A técnica de pesquisa é a análise por oposição, utilizando as reportagens sobre outras formas de violência sexual contra a criança (abuso sexual, pornografia infantil, estupro e incesto) como contraponto a fim de melhor elucidar as características próprias da pedofilia. Foram analisados 384 textos jornalísticos - dos quais 114 referentes à pedofilia - publicados ao longo dos anos de 1994 a 1999. Os resultados alcançados mostram que a narrativa da violência sexual contra crianças é permeada pelos conceitos de classe e violência/doença, reiterando a visão de senso comum da existência de uma violência produto da barbárie e da pobreza, e uma violência produto de um 'desvio psicológico', estando essas explicações relacionadas à classe social do agressor. A perspectiva teórica adotada - de que existe uma relação entre mídia e realidade - permite afirmar que tal viés é também compartilhado pela sociedade brasileira.

Violência; Pedofilia; Criança; Jornais


This paper define the characteristics of pedophilia as it appears in the Brazilian newspaper Folha de São Paulo, including both the characteristics of the pedophile and the reasons given for such behavior. The research employs a technique called analysis by opposition which means that news coverage on other forms of sexual violence against children (sexual abuse, child pornography, rape, and incest) is used to help shed light on the characteristics of pedophilia itself. Some 384 articles were analyzed, of which 114 referred to pedophilia, all published between 1994 and 1999. News on sexual abuse of children was biased by concepts of class and violence/illness, reiterating the lay view that violence can be either a result of barbarianism and poverty or of psychological disorder, both depending on the aggressor's social class. The theoretical perspective adopted, that there is a correlation between media and reality, indicates that this bias is shared by Brazilian society as a whole.

Violence; Pedophilia; Child; Newspapers


ARTIGO/ARTICLE

Pedófilo, quem és? A pedofilia na mídia impressa

Pedophile, who are you? A study of pedophilia in the press

Tatiana Savoia Landini

Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. Rua do Lago 717, São Paulo, SP 05508-900, Brasil

Department of Sociology, University College Dublin. John Henry Newman Building, Belfield, Dublin 4, Ireland. tatalan@uol.com.br

RESUMO

O artigo traça as características atribuídas pela mídia impressa (Folha de S. Paulo)à pedofilia – incluindo aqui a imagem do agressor (quem pratica) e as razões atribuídas a tal ato ou comportamento (o porquê). A técnica de pesquisa é a análise por oposição, utilizando as reportagens sobre outras formas de violência sexual contra a criança (abuso sexual, pornografia infantil, estupro e incesto) como contraponto a fim de melhor elucidar as características próprias da pedofilia. Foram analisados 384 textos jornalísticos – dos quais 114 referentes à pedofilia – publicados ao longo dos anos de 1994 a 1999. Os resultados alcançados mostram que a narrativa da violência sexual contra crianças é permeada pelos conceitos de classe e violência/doença, reiterando a visão de senso comum da existência de uma violência produto da barbárie e da pobreza, e uma violência produto de um 'desvio psicológico', estando essas explicações relacionadas à classe social do agressor. A perspectiva teórica adotada – de que existe uma relação entre mídia e realidade – permite afirmar que tal viés é também compartilhado pela sociedade brasileira.

Palavras-chave: Violência; Pedofilia; Criança; Jornais

ABSTRACT

This paper define the characteristics of pedophilia as it appears in the Brazilian newspaper Folha de São Paulo, including both the characteristics of the pedophile and the reasons given for such behavior. The research employs a technique called analysis by opposition which means that news coverage on other forms of sexual violence against children (sexual abuse, child pornography, rape, and incest) is used to help shed light on the characteristics of pedophilia itself. Some 384 articles were analyzed, of which 114 referred to pedophilia, all published between 1994 and 1999. News on sexual abuse of children was biased by concepts of class and violence/illness, reiterating the lay view that violence can be either a result of barbarianism and poverty or of psychological disorder, both depending on the aggressor's social class. The theoretical perspective adopted, that there is a correlation between media and reality, indicates that this bias is shared by Brazilian society as a whole.

Key words: Violence; Pedophilia; Child; Newspapers

Introdução

A palavra "pedófilo" é um composto recente do substantivo pais (criança) e do verbo phileo (amar). Com essa base, são encontrados dois substantivos em grego antigo: paidophilos e paidophilès. A pedofilia grega é o amor homossexual e pedagógico de um homem maduro por um menino impúbere (Binard & Clouard, 1997).

Hoje, de acordo com os autores citados acima, a pedofilia seria caracterizada pelo desejo sexual de um adulto em relação às crianças. Mas, perguntam eles, de que desejo se trata? Um pai que abusa de sua filha durante anos pertence à mesma categoria que um homem que gosta de acariciar meninos de oito anos? Dutroux – belga que foi notícia recorrente nos jornais em 1996, quando os corpos de duas meninas de oito anos, violentadas e mortas por inanição, foram encontrados enterrados no jardim de sua casa – nomeado pela opinião pública de pedófilo, não seria antes um sádico, um assassino ou um perverso?

O objetivo deste trabalho é mostrar como o termo pedofilia é entendido pela Folha de S. Paulo, o jornal de maior circulação no Brasil hoje. Para tanto, procuro entender suas características em oposição a outros termos designativos da violência sexual contra a criança: estupro, abuso sexual, pornografia e incesto, contribuindo, dessa forma, para a discussão acerca da representação da violência sexual e de seu agressor.

Mídia e violência – discussão teórica

Ao iniciar uma discussão a respeito da violência sexual, torna-se necessário problematizar, ainda que rapidamente, ambos os termos: violência e sexual. Tanto Zaluar (1999), quanto Michaud (1986), concordam que o termo violência vem do latim violentia, o que, nas palavras de Michaud (1986:4) – as quais estão de acordo com Zaluar – significa "violência, caráter violento ou cruel, força. O verbo violare significa tratar com violência, profanar, transgredir. Esses termos devem ser relacionados a vis (...). Mais profundamente, essa palavra vis significa a força em ação, o recurso de um corpo para exercer sua força, e portanto a potência, o valor, a força vital". Segundo a antropóloga brasileira, "essa força torna-se violência quando ultrapassa um limite ou perturba acordos tácitos e regras que ordenam relações, adquirindo carga negativa ou maléfica. É, portanto, a percepção do limite e da perturbação (e do sofrimento que provoca) que vai caracterizar um ato como violento, percepção essa que varia cultural e historicamente" (Zaluar, 1999:28). Em outras palavras, é possível dizer que existe uma construção histórica e cultural a respeito do que é ou não considerado violência. Entretanto, em se tratando de um tipo de violência específico – a violência sexual –, é preciso levar em consideração que existe também uma construção a respeito da sexualidade. Para Heilborn & Brandão (1999), o debate teórico sobre esse tema encontra-se dividido em duas posições: de um lado, o essencialismo, cuja característica é a convicção em algo inerente à natureza humana, um instinto ou energia sexual que conduz as ações e, de outro, o construtivismo social, que procura problematizar a universalidade desse instinto, contrapondo a idéia de que os contatos corporais entre pessoas – que a sociedade ocidental chama de sexualidade – têm significados radicalmente distintos para as diferentes culturas ou até para diferentes grupos da mesma cultura. Richard Parker (1999:131-132), concordando com essa segunda tendência, adiciona: "a compreensão, surgida nos últimos anos, da sexualidade como socialmente construída tem redirecionado grande parte da atenção da pesquisa antropológica e sociológica não apenas para os sistemas sociais e culturais que modelam nossa experiência sexual, mas também para as formas através das quais interpretamos e compreendemos essa experiência".

Interpelar a violência sexual contra a criança por meio de jornais pode nos levar à compreensão de uma construção social a esse respeito. Colocando de outra forma, buscou-se, com a pesquisa realizada, compreender como a pedofilia é vista e entendida nas matérias do jornal pesquisado. Com base nessa formulação, a questão seguinte passa a ser: em que medida o jornal pode contribuir para o entendimento da violenta sexual? Quais suas contribuições? Que tipo de questões têm condições de ser respondidas?

Para Tânia Montoro (1999:106), "todas as formulações já elaboradas a respeito do binômio violência e mídia – quer sejam teóricas, quer de senso comum – são concordantes em que existe uma correlação entre esses dois termos". Uma visão mais tradicional estabelece uma relação de causalidade entre eles, percebendo a violência cotidiana como efeito da mídia – identificando, portanto, uma certa passividade do público receptor. Essa visão mais tradicional seria contestada por estudos mais recentes que demonstram que existe uma interação entre o público e os veículos de comunicação, "o que nos leva a crer que as notícias de violência transmitidas pelos jornais diários, nas telas de TV e nas propagandas radiofônicas, tanto expressam a realidade social como contribuem para (re)criá-la e (re)sedimentá-la em um único movimento" (Montoro, 1999:107). Ao dizer isso, a autora está partilhando da idéia de que os discursos jornalísticos contêm sentidos que estão previamente na cultura; a notícia é o resultado de um processo de produção no qual há a percepção, a seleção e a transformação de uma matéria-prima em um produto, ou seja, a transformação de um acontecimento em notícia. É possível, portanto, dizer que, para ela, assim como o acontecimento cria a notícia, a notícia cria o acontecimento. "A notícia seleciona, exclui, acentua diferentes aspectos de um acontecimento, orientando-se por uma narrativa escolhida. É dessa maneira que a notícia constrói a realidade" (Montoro, 1999:120).

Dessa forma, ainda que a autora enfatize a proposição de não passividade do público leitor, não faz menção a qualquer mudança de comportamento desse público em função da mídia. Enfoca apenas a necessidade de que as notícias contenham sentidos culturais, ou seja, que sejam reconhecidos como válidos pelo público leitor.

Uma outra forma de estudo da mídia é a colocada por Adriana Carvalho Lopes (1999). Segundo esta autora, da perspectiva da análise crítica do discurso, "as notícias sobre violência podem ser melhor percebidas como representações da realidade que, construídas como prática regular pelo discurso jornalístico, 'articulam-se com' e 'são modeladas por' o espaço social mais amplo, incluídos o processo histórico e as orientações culturais partilhadas pelos diversos agentes sociais que ordenam a interação oral e escrita" (Lopes, 1999:122). Para a autora, o discurso jornalístico é regido por contratos institucionais entre o autor e o leitor a tal ponto que o público marcaria, inclusive, a construção de significados, ou seja, os jornalistas criariam o sentido da notícia por meio da incorporação de sentidos do público. Dessa forma, em sua opinião, o jornalismo naturaliza e reproduz comportamentos sociais e relações de desigualdade. Além disso, o jornalista faria sempre uma opção ideológica na medida em que define o que é notícia, como deve ser publicada, com que destaque e favorecimento e o que será excluído e selecionado. Esse processo seria realizado de acordo com diversos critérios, tornando o jornal um veículo de reprodução recortada da realidade. Portanto, como podemos perceber, a visão dessa autora a respeito do binômio mídia e violência não é muito diferente da de Montoro (1999). Entretanto, um detalhe é bastante significante: Lopes (1999) enfatiza mais a busca por parte da produção do jornal, dos jornalistas, em capturar os sentidos da violência compartilhados pelo público. Assim, para Lopes, existiria não apenas uma opinião compartilhada pelo público como também o conhecimento dessa opinião por parte do jornal, ou, de forma mais direta, haveria uma homogeneidade do público leitor e um esforço por parte do jornal em tentar capturar essa homogeneidade.

Uma terceira forma de abordar a questão da violência na mídia é a de Adorno (1995). Esse autor, entretanto, introduz uma problemática distinta das anteriores. Seu interesse é discorrer sobre a possibilidade de utilizar a mídia como fonte de informação e pesquisa a respeito da violência e, portanto, em estudar as percepções sociais quanto à criminalidade expressas pela mídia e a correspondência entre essas expressões e dados oficiais "que 'expressariam' a chamada criminalidade real". Ao realizar essa discussão, Adorno nos coloca que "a construção da criminalidade como um problema social e sociologicamente significativo passa, no nosso entender, pela construção 'marginal' a respeito do crime, do criminoso e da criminalidade e sobretudo pelo conjunto de representações que fazem com que a criminalidade seja hoje um objeto privilegiado de preocupação" (Adorno, 1995:181). A imprensa, em sua opinião, seria um importante veículo de expressão das percepções sociais quanto à criminalidade, ao crime, ao criminoso e ao modo pelo qual a sociedade transforma essa questão num problema de interesse público.

Não podemos exigir, portanto, que o autor realize uma análise a qual não se propôs, e Adorno não tem qualquer pretensão de discorrer sobre o público leitor ou seu comportamento tendo em vista a atuação da mídia. Entretanto, a proposição da mídia como um "importante veículo de expressão das percepções" é de bastante interesse para esta pesquisa, na medida em que introduz um novo elemento: a questão da percepção social da violência.

Elizabeth Rondelli (1998) possui uma quarta visão sobre o binômio violência e mídia. Para ela, os meios de comunicação agem como construtores privilegiados de representações sociais sobre o crime, a violência e aqueles envolvidos em suas práticas e em sua coibição. Nesse sentido, o modo como a mídia fala da violência seria parte da própria realidade da violência, ou seja, de seus atos serão extraídos interpretações e sentidos sociais, os discursos sobre ela passarão a circular no espaço público e a prática social passará a ser informada pelos episódios narrados – possuindo, assim, um caráter estruturado e estruturador. "Do real ela nos devolve, sobretudo, imagens ou discursos que informam e conformam este mesmo real. Portanto, compreender a mídia não deixa de ser um modo de estudar a própria violência, pois quando esta se apropria, divulga, espetaculariza, sensacionaliza ou banaliza os atos de violência está atribuindo-lhes um sentido, ao circularem socialmente, induzem práticas referidas à violência" (Rondelli, 1998:149).

Em suma, Rondelli nos fala sobre a influência das notícias sobre violência no comportamento da população ou, mais especificamente, dos leitores. Tanto Rondelli quanto Adorno estabelecem uma via de mão de dupla entre mídia e comportamento do público, ou seja, a mídia como uma representação socialmente significativa da realidade e o comportamento da população sendo influenciado por essa mesma mídia.

Não é objeto do estudo por mim realizado procurar comprovar a validade dessas teorias, ou seja, estabelecer a relação entre a produção e a recepção da notícia entre a mídia e o público – tal comprovação exigiria uma pesquisa empírica específica. A posição assumida nesta pesquisa é que existe sim uma relação entre o que é noticiado e o que acontece na realidade, relação essa que, entretanto, não significa uma correspondência direta entre os dois fatores, ou seja, a mídia não é um retrato da realidade, mas, ao noticiar certos fatos e colocar ênfase em alguns aspectos em detrimento de outros, a mídia estabelece um recorte significativo não apenas porque contém fragmentos dessa realidade, mas também porque ajuda a criar um sentido, atribuir uma importância aos fatos que estão sendo noticiados. Dessa forma, ainda que me detenha ao estudo da notícia, é importante apontar tal correspondência para justificar a importância do trabalho realizado e dos resultados obtidos. Em se tratando de violência sexual, o estudo da mídia é ainda mais importante em se considerando o fato de que, sendo um tipo de violência que ocorre na maioria das vezes em ambientes privados, é conhecida pelo público por meio do que dela se fala.

De certa forma, ainda que com outro enfoque, meu objetivo será realizar algo parecido com o que foi feito por Herzlich & Pierret (1992), ao analisarem, por meio de artigos ou dossiês de jornais franceses coletados entre janeiro de 1982 e julho de 1986, o que chamam de emergência do "fenômeno social da Aids". Para as autoras, "foi a imprensa, que, em sentido estrito, fez existir a Aids para o conjunto da sociedade. Ainda hoje esta afecção só constitui um dado de experiência para um número limitado de indivíduos. Durante muito tempo ela só disse respeito a centenas, depois a alguns milhares, vivendo em lugares afastados uns dos outros: ela se tornou, no entanto, um dos elementos proeminentes de nossa sociedade, conhecida e comentada por todos" (Herzlich & Pierret, 1992:8).

Estudar a pedofilia por meio do jornal significa entender os aspectos mais significantes dessa prática. E, nesses aspectos, estão incluídos, dentre outros, a imagem do agressor (quem pratica) e as razões dadas (o porquê). É essa trama de informações que nos mostra o significado do crime para o jornal. O objetivo deste artigo é exatamente estabelecer as principais características atribuídas pela Folha de S. Paulo à pedofilia, procurando mostrar suas peculiaridades em oposição aos outros tipos – estupro, abuso sexual, pornografia e incesto – de violência sexual contra a criança. De forma bastante simplificada, a questão que procurou-se responder com este texto é: para além da definição dicionarizada – amor às crianças ou desejo de práticas sexuais e fantasias sexuais com crianças pré-púberes – e daquela atribuída pela psicologia – uma perversão sexual da ordem da parafilia (C. Abdo, comunicação pessoal) –, como é entendido o termo pedofilia? Ou seja, procurou-se extrair do jornal sua definição "êmica".

Procedimentos

O estudo do qual resultam essas breves páginas baseou-se parcialmente na técnica de análise por oposição. A idéia central desse tipo de análise, segundo Blanchet & Gotman (1992:19), repousa sobre uma dupla hipótese: "a existência de uma correspondência (relação) entre os elementos de um sistema prático e os elementos de um sistema simbólico; a estruturação dessa correspondência em oposição, como sendo constitutiva da função simbólica". O método consiste em identificar as relações entre os significantes (os objetos dos quais falamos) e os significados (o que se diz a respeito desses objetos), de forma a que se oponham termo a termo. Dessa forma, com base nas reportagens do jornal, procurou-se entender o significado do termo pedofilia baseando-se no próprio texto, além de opor diferentes termos – no caso pedofilia, estupro, abuso sexual, pornografia infantil e incesto – com o objetivo de melhor elucidar as características próprias a cada um deles. Ao longo do estudo, foram analisadas todas as matérias sobre abuso sexual, estupro, incesto, pedofilia e pornografia infantil publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo ao longo dos anos de 1994 a 1999, totalizando 386 textos jornalísticos, dos quais 114 referentes à pedofilia. A pesquisa das matérias foi feita no arquivo virtual do jornal (http://www.uol.com.br/fsp). Em função da amplitude do material, neste artigo utilizo apenas exemplos a respeito do que estará sendo discutido, a fim de não tornar o texto muito longo ou maçante. Ao longo do trabalho, entretanto, analisei cada um dos casos e reportagens separadamente.

Disse que me havia baseado parcialmente nesse tipo de análise por ela ser mais indicada para um material pequeno (um texto, uma entrevista), com o qual é possível realizar um trabalho mais minucioso e exaustivo, levando em conta todas as vezes que um determinado termo foi utilizado. Obviamente, isso não poderia ser feito em se tratando do material em questão, exigindo algumas adaptações. Em primeiro lugar, não foram analisadas minuciosamente todas as reportagens, mas, sim, foram levados em conta os casos; ou seja, quando tínhamos mais de uma matéria referente a um determinado caso, procurei pegar as frases e idéia principal do conjunto dos textos, sem levar em conta as repetições. Em segundo lugar, os fatores a serem contrapostos foram sendo construídos ao longo da análise, partindo de apenas dois dos cinco tipos de violência, o estupro e a pedofilia, e incorporando os outros tipos no desenvolver da discussão.

A discussão foi iniciada com hipóteses sobre o estupro e o estuprador e também acerca da pedofilia e do pedófilo. Esses dois tipos de violência foram escolhidos dentre os cinco em análise pois, com base em uma leitura prévia e da tabulação dos dados, pareceu-me que ali estava mais patente a inter-relação entre a denominação do crime e a pessoa que o cometia, ou seja, a matéria tratava um caso como pedofilia ou estupro em função da pessoa, do violentador.

As hipóteses foram construídas baseando-se na análise dos casos mais numerosos e, portanto, mais visíveis, de cada um dos tipos de violência. A partir daí, procurei voltar a cada um dos casos e verificar a plausibilidade da hipótese, ou seja, minha intenção era menos dizer se a hipótese se sustentava ou não, mas fortalecer ou problematizar a hipótese construída inicialmente. Dessa forma, busquei uma articulação entre um caso particular (ou, de forma mais específica, entre os casos mais significativos trabalhados) e o todo das matérias sobre aquele tipo de violência. Com isso, consegui eliminar os detalhes de cada uma das reportagens – o que inviabilizaria esse tipo de trabalho – sem, contudo, perder a visão do conjunto, permanecendo este um estudo sobre violência sexual contra a criança e não sobre um caso de violência. Procurei, assim, diluir um pouco a tensão, muitas vezes existente, entre o particular e o todo, o específico e o geral, o micro e o macro, ao mesmo tempo em que também possibilitava um gancho entre o quantitativo e o qualitativo, o numérico e o textual.

Resultados – análise do material

Como definir a pedofilia? Existe um ato específico que a defina? A partir da leitura das matérias da Folha de S. Paulo, é possível dizer que não – na grande maioria das vezes, um caso de pedofilia é um caso de abuso sexual ou de pornografia infantil, chegando poucas vezes ao extremo de considerar um caso de estupro como pedofilia.

São vários os casos nos quais a pedofilia é utilizada como sinônimo de abuso sexual. Exemplo é a matéria do dia 27 de janeiro de 1999 (Folha de S. Paulo, 1999a), intitulada Arcebispo Britânico é Acusado de Pedofilia. No texto, ao contrário do título, é utilizado "abusar sexualmente", como é possível ver na seguinte frase, retirada da matéria: "arcebispo foi detido acusado de ter abusado sexualmente de menina de 6 anos". Outro exemplo é de uma matéria que discorre sobre o caso de prisão de um diretor e de um ex-diretor de um colégio na Bélgica, acusados de não prestar socorro a estudantes do colégio, supostamente vítimas de abuso sexual. O principal suspeito estaria detido sob alegação de corrupção de menores e atentado violento ao pudor. A matéria ressalta que essa é a primeira vez que uma acusação desse tipo é feita em um caso de pedofilia (Acusado Diretor de Escola Belga, 4 de setembro de 1997 – Folha de S. Paulo, 1997). Da mesma forma, a matéria sobre o caso de Michael Jackson – que pagou 40 milhões de dólares para que a família de um garoto de 14 anos retirasse a queixa de abuso sexual – utiliza o abuso sexual e a pedofilia como sinônimos (Queixa por Abuso Sexual tem Acordo, 30 de janeiro de 1994 – Folha de S. Paulo, 1994).

Além de ser entendida como uma forma de abuso, a pedofilia é retratada como sinônimo de pornografia infantil, possivelmente relacionada a outras práticas. Como exemplo dessa coexistência, podemos citar um caso ocorrido no Brasil: um vendedor e bacharel em direito foi preso sob a acusação de pedofilia, corrupção e prostituição de menores. Foram apreendidas fitas de vídeo pornográfico dele praticando sexo oral e anal com crianças e adolescentes entre 9 e 16 anos. E, também nesse caso, a pedofilia é utilizada como sinônimo de abuso sexual – a matéria ressalta que seis crianças reconheceram e confirmaram ter sofrido abuso sexual (Família Está Transtornada e Vendedor é Acusado de Pedofilia em SP, 5 de março de 1999 – Folha de S. Paulo, 1999b, 1999c).

Em dois casos de pedofilia, aos quais foi dada grande visibilidade pelo jornal, o caso Chaim e o caso Lebrun, não apenas existe uma relação entre a pedofilia e a pornografia infantil como também ambas acabam por se confundir. Em função do grande número de matérias publicadas sobre ambos, vale a pena resumi-los.

O biólogo Leonardo Chaim foi preso no início do ano de 1999, sob a acusação de praticar pedofilia e tráfico de material pornográfico infantil. Ele produzia fotos e filmes de meninos com idades entre 10 e 12 anos. Já tinha passagem pela polícia sob a mesma acusação, mas nada havia sido provado contra ele. Junto com o monitor, foram encontradas 13 fitas de vídeo que o mostram fazendo carícias sexuais em meninos adormecidos e oito fitas de vídeo produzidas na Dinamarca com cenas de sexo entre crianças, 142 fotos e 40 cuecas.

Referente ao caso Lebrun, também ocorrido em 1996, um ex-lixeiro foi preso em flagrante com fotos em que aparecia simulando sexo com duas crianças, de 7 e 9 anos. O ex-lixeiro disse que as fotos haviam sido produzidas a pedido do filósofo francês Gerard Lebrun, que teria prometido mil dólares por um "maço" de fotos de sexo não convencional. Existe também a hipótese de que o ex-lixeiro e o filósofo participem de uma rede de prostituição infantil.

Nos dois casos, o crime em questão é a representação da criança em situações sexuais: Chaim foi preso em flagrante com 13 fitas de vídeo, nas quais aparecia fazendo carícias sexuais em meninos adormecidos, e Argenildo, o ex-lixeiro, foi preso por estar com fotografias nas quais simulava sexo com duas meninas. Inclusive, é possível verificar várias passagens nas quais a palavra pedofilia é usada como sinônimo de pornografia infantil, como nos dois exemplos a seguir: "foto com cena de pedofilia", "imagens de pedofilia pela Internet".

Além de ser utilizado como sinônimo de abuso sexual e pornografia infantil, o termo pedofilia é também usado como sinônimo de estupro. De acordo com as matérias referentes ao caso, um pedófilo inglês está preso em um manicômio judiciário e, na opinião de sua esposa, é uma ameaça à sociedade. Ele teria sido preso após estuprar uma menina de dez anos.

Em suma, o termo pedofilia, tal qual é usado nas reportagens do jornal em questão, não encontra identificação em qualquer tipo específico de ato. Dessa forma, permanece a questão: qual o sentido atribuído à pedofilia pela Folha de S. Paulo? O que faz com que esse termo seja utilizado em algumas reportagens mas não em outras?

Um primeiro ponto importante de ser salientado diz respeito ao noticiamento de fatos ocorridos no Brasil e em outros países, ou seja, à relação nacional versus estrangeiro. Um ponto que chama bastante a atenção, nos casos de abuso sexual, é que a grande maioria deles ocorreu no Brasil – 53 das 60 matérias. O mesmo é válido para os casos de estupro – apenas 4 das 89 matérias referem-se a casos ocorridos em outros países. Em contrapartida, das 77 matérias de pedofilia, apenas 23 são referentes ao Brasil. Da mesma forma que a pedofilia, os casos de pornografia infantil noticiados são, em sua maioria, ocorridos fora do Brasil.

Uma outra diferenciação que pode ser traçada é que nas matérias sobre pedofilia é muito mais recorrente a idéia de rede, de uma organização pedófila. Os casos de abuso, em contrapartida, são em sua maioria casos isolados, quer dizer, são crimes cometidos por pessoas isoladas. Esse fato fica fácil de ser exemplificado com as matérias que dizem respeito ao ambiente da Internet: mais de 100 pessoas de 12 países diferentes foram detidas sob a acusação de estar envolvidas em uma quadrilha de pedofilia na Internet; polícia francesa prendeu os diretores de duas empresas responsáveis pela veiculação, via Internet, de uma rede dedicada à pedofilia; a polícia da Holanda descobriu uma das maiores redes internacionais de distribuição de pedofilia pela Internet. Entretanto, temos também exemplos de casos nos quais não há relação com a Internet: em uma operação contra a pedofilia ocorrida na França em 1997, dois padres e oito professores são suspeitos de estar envolvidos na maior rede de distribuição de vídeos e material de pedofilia já descoberto no país. Nos casos Dutroux e Lebrun, já resumidos anteriormente, o jornal também levanta a hipótese de ambos estarem envolvidos em uma rede de pedofilia e prostituição.

É interessante citar alguns exemplos nos quais a pornografia infantil é vista como um problema que, da mesma forma que a pedofilia, não ocorre isoladamente, mas sim na forma de rede ou, ao menos, em grande número. Em um caso ocorrido na Bélgica, por exemplo, a polícia revistou sessenta residências e outros estabelecimentos a procura de material pornográfico envolvendo crianças; na França, 27 pessoas foram indiciadas por participar de uma rede de exploração de pedofilia, apreendendo cerca de 5 mil fitas; na Hungria, foi descoberta uma rede de pornografia infantil envolvendo cerca de cem garotas, de 11 a 16 anos, que fizeram um total de 500 filmes de sexo.

A idéia de uma rede de pornografia e de uma quantidade grande de material é ainda mais forte se olharmos os casos referentes à Internet. Os números chegam a ficar exorbitantes em alguns casos, como o da detenção de mais de cem pessoas de 12 países diferentes, sob a acusação de estar envolvidas em uma quadrilha de pedofilia na Internet, ou a descoberta de um arquivo virtual com mais de 100 mil imagens de crianças em poses ou situações indecentes ou pornográficas, algumas das quais envolvendo cenas de abuso de crianças de até dois anos de idade.

Um terceiro ponto a ser ressaltado é a explicação dada para o crime. A justificativa apresentada, no caso da pedofilia, é a doença mental. Os três casos de pedofilia mais reportados – Leonardo Chaim, Dutroux e Lebrun – podem ser trazidos como exemplo dessa discussão.

No caso do biólogo e no caso Dutroux, o pedófilo é apresentado como uma pessoa com doença mental, ou seja, a pedofilia, mais do que um crime, seria uma doença. No caso do biólogo, a doença é ressaltada inclusive no título de uma das reportagens, do dia 23 de janeiro: "'de certa maneira, sou doente', diz o acusado". A ele, é dada "voz" na reportagem para que explique seus atos. Segundo ele, a Internet era utilizada na tentativa de encontrar uma explicação para o que sentia. Ele se considera uma pessoa "fora do padrão da sociedade" – teria começado a sentir atração por meninos aos 11 anos de idade e afirmou nunca ter sofrido trauma ou frustração sexual. Disse também que não comercializava o material fotográfico que possuía. Além de a ele ter sido dada a possibilidade de defesa na reportagem, o jornal também publicou matérias nas quais o advogado de Leonardo Chaim diz que deverá pedir sua internação por ele ter um distúrbio psiquiátrico grave. Mais do que isso, o jornal publicou o comentário de um psiquiatra que afirma que a pedofilia é uma alteração psíquica grave e perigosa, que pode ter origem orgânica ou traumática.

No caso Dutroux, o espaço destinado ao exame dos distúrbios psiquiátricos do criminoso, por assim dizer, é bem menor; a ele não é dada voz no jornal. Entretanto, a análise de um psicoterapeuta está presente em uma reportagem, afirmando que o suspeito de liderar a rede da pedofilia na Bélgica é um psicopata que está brincando com os policiais e pode tentar o suicídio.

Além da justificativa do crime, baseada na doença mental, uma outra característica do agressor – e esse constitui o quarto ponto que gostaria de ressaltar neste texto – pode ser entendida como uma especificidade da pedofilia: a classe social. Um fato que chama bastante a atenção é que em nenhum dos três casos referidos acima nós temos pessoas que poderiam ser classificadas como de "classe baixa". Leonardo Chaim é um biólogo formado pela Universidade de São Paulo, monitor de um acampamento no interior paulista e que possui em casa computador e ligação com a Internet. No caso Lebrun, temos um ex-lixeiro, é certo. Entretanto, a chave das reportagens é o filósofo Gerard Lebrun, cujo currículo é discorrido nas reportagens: Lebrun, que já morou no Brasil e é docente da Universidade de São Paulo, hoje vive sozinho em um apartamento próximo à Gare du Nord, em Paris, cercado de livros. É professor de filosofia na universidade de Aix-en-Provence. Já Dutroux, apesar de quase não haver referências diretas ou indiretas à sua condição social, é um belga, um europeu, o que, em si só, é uma forma de diferenciação. Ser um belga, no caso, é uma característica muito mais evocada do que sua profissão – quem se lembra qual é? Em apenas uma reportagem (Bélgica Aprova Novas Medidas, 31 de agosto de 1996 – Folha de S. Paulo, 1996), é dada resposta a essa questão: Dutroux era eletricista.

Já em relação ao estupro, é bastante recorrente a referência ao fato de o agressor pertencer às camadas econômicas mais baixas da sociedade. Exemplo disso é o caso de uma garota estuprada por um ambulante, sob a plataforma de embarque dos trens, onde ele vendia doces. Outros dois exemplos são os casos de C.B.S. e de M. O primeiro, ocorrido em Goiânia, refere-se a uma menina de dez anos que foi sistematicamente estuprada por dois vizinhos, de 52 e 65 anos. A menina era levada por uma amiga até o barraco onde ocorriam os estupros, recebendo R$ 1,00 e um saco de bolachas em troca. A gravidez de C.B.S. foi descoberta em função de um mal-estar da menina.

O caso de M. é bastante parecido com o de C.B.S., já que os dois se referem ao estupro de meninas de dez anos. M., entretanto, não era estuprada sistematicamente. Ela foi estuprada por um lavrador da cidade onde morava, no interior de São Paulo. Ambas mantiveram o estupro em segredo por temer represálias da família. Depois de descoberta a gravidez, pediram autorização para a realização de um aborto legal, o que ocorreu apenas no primeiro caso. No caso de C.B.S., o fato de ela receber R$ 1,00 e um saco de bolachas a cada vez que mantinha relação sexual com os vizinhos é indicativo da precariedade dos recursos. Entretanto, alguns outros detalhes também merecem atenção. É ressaltado por reportagem do dia 1º de outubro de 1998, o fato da viagem de Goiânia a São Paulo, com o objetivo de realizar o aborto, ter sido a primeira viagem de avião da menina. O acusado de tê-la estuprado é um lavrador desempregado. No caso de M., o violentador também é um lavrador e a família mora em área rural. Em uma das reportagens sobre o caso, do dia 13 de dezembro de 1997, é ressaltado o fato de a menina ter brincado com a primeira boneca de sua vida. Ela mora com os pais e uma irmã de 14 anos em um casebre sem energia elétrica e a renda da família girava em torno de R$ 100,00.

Também bastante característico da narrativa do estupro é que, muitas vezes, ele está associado a outros tipos de violência – ou seja, ao contrário da pedofilia, na qual a explicação é encontrada na doença mental, no estupro é enfatizada a questão da violência.

Um caso bastante peculiar, por se tratar de um estupro realizado por crianças, é o de três meninos de rua, de 9 e 11 anos, que estupraram uma menina em Brasília. A menina teve a vagina perfurada por um galho de árvore. O texto não deixa claro se está chamando de estupro essa perfuração ou se realmente houve estupro no sentido jurídico do termo. De qualquer modo, a violência implícita no ato é ressaltada pela afirmação de uma delegada, que afirmou já ter visto "muita coisa chocante na delegacia, mas nada com tanta violência como essa história". Em relação à condição social, o texto afirma que o pai da menina é pedreiro e que o casal não pode deixar de trabalhar para tomar conta da filha, que havia fugido de casa quando ocorreu o fato.

Outro exemplo refere-se ao fato de uma menina, na Alemanha, ter sido estuprada, torturada com uma faca militar e morta por enforcamento – esse é um dos poucos casos analisados de estupro que não ocorreu no Brasil. Outro caso bastante indicativo da violência relacionada ao estupro – ao mesmo tempo em que é também indicativo de como o estupro pode estar relacionado à doença mental, característica que tínhamos colocado como hipótese na definição da pedofilia – ocorreu na região de Tatuí. A polícia encontrou uma criança que seria a quinta vítima de um gráfico, preso sob a acusação de manter relações sexuais, matar e empalar todas as vítimas. Além de ser ressaltado que ele já havia sido preso por atentado violento ao pudor e que estava foragido de um hospital psiquiátrico, a ele é dada voz na matéria: "eu queria dar carinho e amor para essas crianças. Depois eu via o que havia feito. Balançava o corpo delas, abraçava e sentia que estavam mortas".

Por fim, o quinto e último fator que pode ser entendido como característica das matérias sobre pedofilia é a não existência de uma relação de parentesco ou conhecimento por parte da vítima e do agressor.

Um indicativo de que, nos casos de pedofilia, não existe a relação de parentesco é a própria utilização do termo como sinônimo de pornografia infantil. Em grande parte desses casos, é utilizado um número grande de crianças na produção da pornografia – ainda que, em alguns, como por exemplo em um caso no qual foram presas mais de cem pessoas de 12 países diferentes, o jornal tenha dito que os agressores provavelmente cometeram abuso contra seus próprios filhos a fim de conseguir um maior número de fotos.

Exemplos de pedofilia ocorridos no interior da família, temos apenas dois. Um deles ocorreu na Alemanha, onde 24 pessoas de duas famílias foram acusadas de seqüestro, práticas de tortura e aluguel de crianças da família para outros abusarem delas. Temos, ainda, um outro caso na Europa (França). Uma avó e seus quatro filhos (acompanhados dos respectivos cônjuges) foram presos, suspeitos de terem abusado sexualmente de 23 crianças da família – eles foram acusados de maus tratos contra crianças, violação de menores e incentivo à perversão. A polícia também investiga a acusação de que os adultos organizavam festas em que assistiam a filmes pornográficos antes de atacarem as crianças. Interessante notar que, neste caso, encontramos uma interseção entre a pedofilia e o incesto, já que o caso foi noticiado utilizando os dois termos.

Se contarmos, entretanto, casos nos quais é possível inferir a existência de conhecimento prévio por parte do agressor e do agredido, temos alguns como o do biólogo Leonardo Chaim, o do bispo americano que molestou seus coroinhas, o de um alemão fundador de uma missão no Chile cujo objetivo era abrigar crianças órfãs e o caso de um ganhador de um Prêmio Nobel de Medicina acusado por um rapaz que trouxe da Micronésia de forçar menores de idade a praticar sexo com ele.

Já em relação ao estupro, é maior o número de casos nos quais há uma relação de parentesco ou conhecimento prévio entre vítima e agressor. Um exemplo é o caso de uma menina de 13 anos que ficou grávida do próprio pai. O caso chegou à polícia por meio da irmã de 15 anos, que teria escapado de um ataque sexual do pai. A irmã estaria escondendo o estupro por temer represálias. A menina mora em um bairro pobre na periferia de Dourados. Outro caso que pode ser citado é o de uma menina deficiente, de 11 anos, grávida após ter sido estuprada – o suspeito é seu padrasto.

Temos, inclusive, dois exemplos nos quais o estupro é utilizado em relação ao incesto. O primeiro caso refere-se à prisão de um homem acusado de ter estuprado a própria filha – que teria confessado ter "seduzido o pai". Segundo a garota, ela mantinha com o pai uma vida sexual ativa, gostava de assistir filmes pornôs e usar roupas provocantes perto dele. Para a delegada, casos de incesto são comuns no interior do Pará. O segundo caso refere-se à negativa de um pedido de aborto, na Argentina. O pedido foi negado mesmo com o argumento de que a criança seria fruto de um incesto. A adolescente teria sido, várias vezes, dopada e estuprada pelo pai.

O conhecimento prévio por parte da vítima e do agressor é, contudo, um fator que pode levar à discussão, por parte do jornal, sobre a validade do termo estupro. Exemplo é o caso de uma menina de dez anos que ficou grávida após manter relações sexuais com o namorado de 18 anos. O juiz e a promotora afirmam que ela não foi forçada a manter relações sexuais com ele, portanto, não houve violência real e sim presumida, já que toda relação sexual completa com adolescente de até 14 anos é considerada estupro. Outro exemplo é o caso de uma menina, também de dez anos, que teria ficado grávida após ser estuprada duas vezes por um pedreiro – segundo a menina, ele teria prometido que eles se casariam quando ela atingisse 12 anos.

Outro caso que discute o termo estupro é o de M.A.N. Um suposto estuprador de uma menina de 12 anos teve sua sentença anulada pois a garota havia consentido com o ato. Ou seja, o juiz entendeu que, como houve o consentimento, a relação não foi forçada, o que descaracterizaria o ato como estupro.

Há, ainda, um caso no qual é discutida a denominação do termo estupro em função da utilização ou não da violência – este, entretanto, referindo-se a um caso de incesto. Segundo decisão do Supremo Tribunal Federal, um homem que manteve relação sexual com a filha, S.F.G., de 15 anos, só poderá ser julgado por corrupção de menor e não por estupro. A conclusão é de que se trata de um caso de incesto e não de estupro – que só seria caracterizado se houvesse o uso de violência.

Conclusão

Se nos pedissem para traçar o perfil estereotipado de um pedófilo, qual seria ele? O de um estrangeiro, rico, pertencente a uma rede de pedofilia, que troca fotos de pornografia de crianças desconhecidas. Mas o que faria alguém com essas características, rico, provavelmente um europeu, tomar parte em algo sórdido como esse? A resposta é simples, ele é um doente mental, deve ter sofrido algum trauma na infância.

A palavra "estereotipado" – talvez "exagerado" fosse também bastante apropriado – não foi utilizada no parágrafo anterior de forma desproposital. Como deve ter ficado claro com base nos dados apresentados ao longo deste texto, nem todas as reportagens de pedofilia estudadas fazem uso dessas características. Entretanto, o público leitor apreende o significado a partir de um conjunto de textos. E é o conjunto – no qual os casos com reportagens recorrentes adquirem um peso maior – que foi estudado.

A importância em traçar esse perfil está em perceber alguns detalhes, algumas nuanças na percepção da violência que, de acordo com a posição teórica assumida anteriormente, são compartilhadas também, em certa medida, pela sociedade brasileira.

A principal delas, a meu ver, é a percepção de que, independente da missão colocada pelo próprio jornal (Folha de S. Paulo, 1992), de noticiar os fatos de forma imparcial, a narrativa da violência sexual é permeada por alguns conceitos como classe ou violência/doença. Como pudemos perceber, há uma separação bastante clara entre o crime cometido por uma pessoa de classe baixa e outra de classe média ou alta. No caso da pedofilia, atribuída a pessoas das classes mais abastadas, há ainda uma conexão com a doença mental.

Vale a pena voltar um pouco na história. A "descoberta" de que a violência sexual, especialmente aquela cometida contra crianças e adolescentes, não é exclusiva das classes baixas, data de poucas décadas atrás quando o movimento feminista começou a questionar a violência doméstica (sexual e física) contra as mulheres. Entretanto, a questão a ser enfatizada é que, apesar dessa "descoberta", permanece um viés na percepção. Quer dizer, a violência sexual nas classes altas não é mais velada como antigamente; entretanto, quando vem a público, o faz de forma distinta, como uma anormalidade, uma doença individual que deve ser curada. Dessa forma, a mídia ajuda a reiterar a visão de senso comum da existência de uma dualidade na explicação da própria violência, ou seja, reitera a idéia da existência de uma violência produto da barbárie e da pobreza, e uma violência produto de um "desvio psicológico", relacionando essas explicações à classe social; dessa forma aprofundando ainda mais a barreira em uma sociedade já bastante marcada pela discriminação econômica.

Agradecimentos

Agradeço à Fundação Ford e ao Programa de Metodologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pelo apoio na realização de pesquisa intitulada Do Estupro à Pedofilia: A Representação da Violência Sexual Contra a Criança na Mídia Impressa, a qual desenvolvi enquanto bolsista do programa.

Recebido em 2 de junho de 2003

Versão final reapresentada em 1 de setembro de 2003

Aprovado em 8 de outubro de 2003

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Ago 2006
  • Data do Fascículo
    2003

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2003
  • Revisado
    01 Set 2003
  • Aceito
    08 Out 2003
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