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A necessária frugalidade dos idosos

The necessary frugality of the elderly

Resumos

O artigo pretende refletir sobre a pertinência e a legitimidade moral de basear na variável idade a alocação de recursos públicos para a saúde, considerada do ponto de vista da teoria da justiça como eqüidade, formulada por John Rawls. Depois de caracterizar o problema da alocação de recursos públicos para a saúde, confrontada com o desafio representado pelo envelhecimento populacional, e apresentar, brevemente, a concepção de eqüidade adotada neste trabalho, assim como discutir a abordagem de Norman Daniels e Daniel Callahan para a alocação de recursos entre os diferentes grupos de idade, concluiremos que basear a alocação de recursos na variável idade pode ser considerado eticamente adequado se concebermos a vida do indivíduo como um ciclo limitado de existência formado por diferentes estágios (infância, adolescência, maturidade, velhice e morte), nos quais variam as necessidades, devendo a distribuição de recursos entre os diferentes grupos de idade estar baseada numa ética de proteção.

Alocação de Recursos; Envelhecimento da População; Eqüidade; Bioética


The purpose of this article is to reflect on the pertinence and moral legitimacy of basing the allocation of public resources for health on the age variable, considered from the perspective of the theory of "justice as equity" as formulated by John Rawls. After characterizing the problem of public resource allocation for health - confronted with the challenge posed by population aging - and briefly presenting the concept of equity adopted in this study, as well as discussing the approach by Norman Daniels and Daniel Callahan to resource allocation among different age groups, we conclude that basing resource allocation on the age variable may be considered ethically adequate if we conceive the individual's life as a limited cycle of existence formed by different stages (childhood, adolescence, maturity, old age, and death), during which the needs vary, such that the distribution of resources among different age groups should be based on an ethics of protection.

Resource Allocation; Demographic Aging; Equity; Bioethics


DEBATE DEBATE

A necessária frugalidade dos idosos

The necessary frugality of the elderly

Carlos Dimas Martins RibeiroI; Fermin Roland SchrammII

ICentro de Ciências da Saúde, Universidade Severino Sombra, Vassouras, Brasil

IIEscola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência C. D. M. Ribeiro Rua Cândido Mendes 76/304 Rio de Janeiro, RJ 20241-220, Brasil dimasribeiro@cremerj.com.br

RESUMO

O artigo pretende refletir sobre a pertinência e a legitimidade moral de basear na variável idade a alocação de recursos públicos para a saúde, considerada do ponto de vista da teoria da justiça como eqüidade, formulada por John Rawls. Depois de caracterizar o problema da alocação de recursos públicos para a saúde, confrontada com o desafio representado pelo envelhecimento populacional, e apresentar, brevemente, a concepção de eqüidade adotada neste trabalho, assim como discutir a abordagem de Norman Daniels e Daniel Callahan para a alocação de recursos entre os diferentes grupos de idade, concluiremos que basear a alocação de recursos na variável idade pode ser considerado eticamente adequado se concebermos a vida do indivíduo como um ciclo limitado de existência formado por diferentes estágios (infância, adolescência, maturidade, velhice e morte), nos quais variam as necessidades, devendo a distribuição de recursos entre os diferentes grupos de idade estar baseada numa ética de proteção.

Alocação de Recursos; Envelhecimento da População; Eqüidade; Bioética

ABSTRACT

The purpose of this article is to reflect on the pertinence and moral legitimacy of basing the allocation of public resources for health on the age variable, considered from the perspective of the theory of "justice as equity" as formulated by John Rawls. After characterizing the problem of public resource allocation for health - confronted with the challenge posed by population aging - and briefly presenting the concept of equity adopted in this study, as well as discussing the approach by Norman Daniels and Daniel Callahan to resource allocation among different age groups, we conclude that basing resource allocation on the age variable may be considered ethically adequate if we conceive the individual's life as a limited cycle of existence formed by different stages (childhood, adolescence, maturity, old age, and death), during which the needs vary, such that the distribution of resources among different age groups should be based on an ethics of protection.

Resource Allocation; Demographic Aging; Equity; Bioethics

Introdução

Os principais conflitos morais da atualidade decorrentes das modalidades de alocação dos recursos públicos para a saúde podem ser definidos fazendo referência a três características dos sistemas de saúde: (1) o progresso biomédico, que tem contribuído para proporcionar um significativo aumento da duração da esperança de vida, dos anos de vida efetivamente vividos e de sua qualidade, mas que tem acarretado um acréscimo dos custos econômicos necessários para satisfazer tais expectativas para todos 1; (2) a concepção contemporânea de saúde, ao mesmo tempo entendida como qualidade de vida 2, cuja principal conseqüência foi a de ampliar os direitos das pessoas, o que exige, praticamente e de modo progressivo, mais recursos do Estado (ou de outras instituições sociais que venham a substituí-lo) para satisfazê-los, trazendo, no entanto, preocupações relativas à possibilidade, ou não, de mobilizar os recursos necessários para satisfazer todas as demandas qualificadas da população 1; (3) a vigência de uma diversidade moral difusa nas sociedades democráticas e complexas contemporâneas - como é o caso da sociedade brasileira -, caracterizáveis pela secularização e o pluralismo moral de suas instituições, nas quais encontramos uma diversidade de comunidades morais, com diferentes doutrinas, valores e princípios morais capazes de fornecer uma orientação normativa concreta aos cidadãos, assim como várias éticas capazes de justificar tais valores e princípios, que, em muitas situações, são incompatíveis entre si 3,4. Neste artigo, discutiremos a pertinência e a legitimidade de se basear a alocação de recursos públicos para a saúde na idade, e mostraremos algumas das controvérsias que cercam esta questão.

Pertinência da "cultura dos limites"

A percepção da complexidade e conflituosidade do contexto social caracterizado pelos componentes do progresso biomédico, do bem-estar ampliado e do pluralismo moral, tem contribuído para fazer florescer uma consciência sobre a necessidade de uma "cultura dos limites", entendida como o conjunto de questionamentos sobre a crença num progresso infinito da sociedade humana, em relação com o progresso tecnocientífico e, em particular, ao aumento da capacidade da medicina de satisfazer os nossos desejos e necessidades de saúde, seja em relação à ampliação progressiva dos direitos humanos e do conceito de saúde 1. De acordo com esta tomada de consciência, supõe-se que os recursos são finitos e escassos, frente às crescentes demandas de serviços por parte da população, o que implicaria inevitavelmente formas de priorização para a sua utilização correta, isto é, ao mesmo tempo eficaz, eficiente e efetiva, mas também moralmente legítima 5.

Nesse contexto, um dos desafios morais a ser enfrentado decorre da assim chamada transição demográfica, caracterizada, entre outros aspectos, pelo envelhecimento populacional, que vem sendo observado, faz alguns anos, em vários países do mundo, nos quais verifica-se um incremento substancial do número e proporção dos idosos junto com um declínio do número e proporção dos jovens 6,7. Com efeito, a população brasileira vem passando por um processo de transição demográfica caracterizada por uma queda da taxa de mortalidade e um aumento da esperança de vida ao nascer, ocorrido entre as décadas de 40 e 70, e o declínio da taxa de fertilidade, observado a partir da década de 60 8. Na década de 90, os habitantes com sessenta anos ou mais aumentou 35,0%, enquanto o restante da população brasileira cresceu 14,0% 9. Estima-se que entre 2000 e 2020, quando a esperança de vida ao nascer possivelmente atingirá 75,5 anos, a proporção dos idosos na população passará de 5,1% para 7,7% ou 16,2 milhões de idosos, alcançando, em 2050, 14,2% da população 8.

Entre os idosos, embora existam aqueles que são saudáveis, muitos outros apresentam alguma doença crônica e/ou deficiência, observando-se um aumento das demandas por atenção à saúde, em particular de assistência médica 6,10. Constata-se, assim, um incremento nos custos dessa assistência, em parte por um aumento no uso de tecnologias avançadas que estendem a vida, tais como diálise, transplante, terapia intensiva, dentre outras. Portanto, a atenção à saúde do idoso torna-se, lógica e significativamente, mais custosa do que aquela dispensada aos grupos mais jovens. No Brasil, entre os idosos, predominam as doenças crônico-degenerativas, incidindo, freqüentemente, sobre um mesmo indivíduo, múltiplos problemas médicos 8. Assim, verifica-se também um aumento das demandas por assistência à saúde, refletido no incremento dos custos com atenção médica 8,9. Além disso, esta situação tem gerado um impacto significativo sobre a qualidade de vida do idoso e sobre a família, sobretudo se considerarmos que uma das características da população que envelhece no Brasil é a pobreza e a falta de acesso ao sistema de saúde e outros serviços financiados pelo Estado 8,9.

Finalmente, é importante ressaltar que essas demandas de atenção à saúde recaem não somente sobre o Estado (ou formações institucionais substitutivas) e suas políticas públicas de atenção ao idoso, quando elas existem, mas também sobre seus familiares 10,11,12,13.

Justiça sanitária e direito à saúde

Uma das expressões do pluralismo moral das sociedades complexas contemporâneas é o conflito entre uma concepção de justiça entendida como igualdade de oportunidades para todos, que defende a saúde como um direito humano universal, e o ideal de justiça como eqüidade, que sustenta que, em casos de conflitos, se devem privilegiar as exigências dos menos favorecidos. A primeira implica "políticas de 'universalização'" - que "deve[m] fornecer todos os serviços disponíveis a todos que precisam deles", e a segunda implica "políticas de 'focalização'" - que "deve[m]decidir o que fornecer e para quem" 14 (p. 41-2). Assim sendo, numa ponderação crítica, a justiça como igualdade "tem o defeito de desconsiderar as diferenças de condições entre indivíduos e classes sociais", enquanto a justiça como eqüidade "tem o defeito de introduzir um fator de 'discriminação', que contradiz o direito universal à assistência" 14 (p. 42). E isso caracteriza-se como um autêntico dilema moral para qualquer sistema sanitário que pretenda ser justo.

Com efeito, no Brasil, segundo o artigo 196 da Constituição, a saúde é compreendida como "um direito de todos e um dever do Estado", sendo que este deveria garantir o "acesso universal igualitário às ações e serviços" de saúde. Dessa forma, nos sistemas de saúde fundados em princípios universalistas, como o brasileiro, os gestores da política de saúde encontram-se frente a um dilema porque devem respeitar a lei (universalista) e, ao mesmo tempo, tendo em vista a escassez dos recursos efetivamente disponíveis, proceder a alguma forma de priorização dos mesmos (focalização), ou seja, devem respeitar, ao mesmo tempo, o princípio de justiça entendido como igualdade entre todos e aquele da eqüidade, que, necessariamente, deve privilegiar os mais desprovidos ou desprotegidos 15.

A justiça com eqüidade de Jobn Rawls

Embora a concepção de justiça como eqüidade, entendida como meio de compensar a abstração da justiça como igualdade, tenha sido formulada por Aristóteles em suas obras A Política e Ética a Nicômaco 16,17, a principal teoria da justiça como eqüidade da atualidade foi desenvolvida a partir da década dos anos 70 do século XX, por John Rawls 18. Rawls queria elaborar os princípios de justiça que deveriam regular o conjunto de instituições políticas, sociais e econômica que formam a estrutura básica das sociedades democráticas, pluralistas e liberais. Esses princípios são: o princípio de liberdades básicas iguais para todos (universalista), o princípio de igualdade de oportunidades para todos (também universalista) e o princípio da diferença (focalizado).

De acordo com este último, as desigualdades geradas pela estrutura básica apenas seriam justificáveis moralmente se beneficiassem os membros menos favorecidos da sociedade, justamente para compensar a abstração da igualdade formal pela eqüidade de fato.

As críticas construtivas de Norman Daniels e Daniels Callahan

Como observa Daniels 19, um rawlsiano crítico preocupado em adaptar a teoria de Rawls ao campo da saúde, não existiria uma teoria da atenção à saúde implícita na "justiça como eqüidade" de Rawls, porque esta só se aplicaria a indivíduos que são membros reconhecidos e plenamente cooperativos da sociedade. Por isso, a estratégia desse autor para realizar a "justiça como eqüidade", incluindo-se aí as instituições de atenção à saúde, seria a de fazer com que estas fossem reguladas pelo princípio da justa igualdade de oportunidade. Em outros termos, o objetivo do sistema de atenção à saúde seria o de permitir que os cidadãos mantivessem o funcionamento normal da espécie, visto que, nos processos de adoecimento ocorrem impedimentos deste funcionamento, reduzindo-se, portanto, a gama de oportunidades que os indivíduos têm para construir planos de vida e revisá-los através do tempo.

Por sua vez, Callahan 20 (p. 268) sustenta que a alocação de recursos na saúde deve estar baseada na "necessidade de ter cidadãos saudáveis para que as instituições e grupos da sociedade possam funcionar bem" e para que possam exercer um conjunto normal de funções sociais e relações interpessoais, dentro de um ciclo de duração da vida considerado normal. Nessa perspectiva, a assim chamada "saúde perfeita" 21 e a saúde perfeita para todos 20 seriam objetivos impossíveis, além de serem, de fato, fonte de iniqüidade. Impossível, seja porque a natureza produziria moléstias sucessivas, que substituem aquelas que são curadas, seja porque não importaria o quanto se alarguem as fronteiras do progresso médico, pois sempre haverá aquela zona precária em que se situam os casos mais difíceis de curar e os piores resultados. Fonte de iniqüidade porque "não existe modo de assegurar que o progresso será economicamente acessível pela sociedade ou que seus frutos beneficiarão a população como um todo" 20 (p. 251).

Dialética entre "universalismo" e "focalização"

Se compararmos tais abordagens com as duas vertentes de políticas públicas, caracterizadas como "universalistas" e "focalizadas", pode-se dizer que tais perspectivas não precisam ser vistas como opostas, podendo-se integrá-las numa concepção "dialética" de justiça, entendida como "igualdade" de princípio e "focalização" de fato, o que corresponde ao sentido de justiça como eqüidade. Com efeito, o princípio de universalização parece mais adequado no que se refere às ações de saúde pública e suas medidas de prevenção de doenças e promoção da saúde para todos, visto que o objetivo de proteger as populações necessitadas de um sistema de saúde exige, freqüentemente, a universalização para ser efetiva. Por exemplo, para se obter a proteção populacional por meio da vacinação, é necessário que, pelo menos, a grande maioria dos indivíduos seja vacinada, caso contrário tal ação preventiva seria, além de ineficaz, questionável do ponto de vista da pertinência e legitimidade dos recursos investidos. Por outro lado, as tecnologias médicas avançadas (diálise renal, transplante de órgão, medicina intensiva etc.) podem ser distribuídas com base na focalização, devido a seu alto custo e, sobretudo, "porque elas provêem mais benefícios para os indivíduos do que para a sociedade como um todo" 20 (p. 270-1) não contribuindo, principalmente, para manter a saúde pública em padrão alto. Assim sendo, este tipo de focalização deve ser implementado considerando qual população vai requerer apoio total (os mais desamparados), parcial ou nenhum suporte do Estado (que podem suprir, parcial ou totalmente suas necessidades de saúde), priorizando aqueles grupos em piores condições 22. Em síntese, numa sociedade eqüitativa, o Estado deveria oferecer uma gama razoável de serviços médicos que seriam priorizados com base numa focalização que consideraria as condições socioeconômicas dos grupos sociais, conforme estabelece o princípio da diferença, e priorizando os interesses dos cidadãos mais desamparados.

A alocação de recursos baseada na idade

Moody 23 caracteriza quatros cenários sobre o idoso e a alocação dos recursos, cada um dos quais incorporando diferentes visões sobre o envelhecimento e a atenção à saúde.

(a) Prolongamento da morbidade, baseada na avaliação pessimista de que um incremento da expectativa de vida do idoso seria acompanhado por um aumento dos períodos de saúde, mas também de doença, havendo, assim, uma extensão da sobrevida para idades avançadas às custas de uma qualidade de vida muito baixa.

(b) Compressão da morbidade, fundada na suposição biológica de que o limite de duração da vida humana estaria ao redor de 120 anos e que nós deveríamos fazer todo o possível para adiar o aparecimento das doenças para os períodos mais tardios da vida por meio da promoção da saúde e pesquisas médicas que favorecessem este objetivo.

(c) Prolongamento da longevidade, assentada na suposição mais otimista de que o curso da vida humana pode ser permanentemente revisto pelos avanços da biologia do envelhecimento, especialmente a genética da longevidade, podendo-se mudar o limite natural presumido pelo cenário anterior; nesta perspectiva, recursos deveriam ser investidos em pesquisa básica referida ao processo de envelhecimento, como, por exemplo, a terapia gênica, que nos permitisse aumentar a duração da vida máxima. Assim, "o envelhecimento poderia ser progressivamente postergado e eventualmente eliminado" 23 (p. 33).

(d) Recuperação da idéia dos estágios de vida, pressupondo que o significado do envelhecimento encontra-se na finitude da vida humana como uma condição existencial natural e a velhice como um momento, também existencial, de um ciclo de vida. Nesta perspectiva, a longevidade poderia ser razoavelmente limitada por razões de justiça entre as gerações, restringindo o uso de tecnologias médicas custosas, que provêem um incremento da longevidade daqueles que têm usufruído um ciclo de vida longo. Em particular, na atenção ao idoso, deveriam ser priorizadas outras modalidades de assistência, tais como a medicina paliativa, atenção diária institucional e a atenção à saúde domiciliar 1,24.

Callahan 6, aproximando-se deste último cenário, contrapõe-se à visão baseada no progresso ilimitado da medicina, na inexistência de limites biológicos intrínsecos para o envelhecimento e de que se poderia estender indefinidamente a expectativa de vida média e a compreensão da morbidade, focalizando-se nas possibilidades do desenvolvimento individual e não nos limites pré-fixados do processo de envelhecimento. Esse autor não nega que esses avanços na obtenção da longevidade possam existir, mas questiona o beneficio humano total desse progresso, em particular, se valeria a pena investir muitos recursos para alcançar este objetivo, mesmo que fosse para satisfazer um desejo prima facie legítimo de alguns indivíduos. Em suma, na avaliação de Callahan, os custos de se estender, cada vez mais, a vida do idoso, será altamente cara e não produzirá uma grande extensão da vida com uma qualidade razoável dos beneficiários. Além disso, em virtude da escassez dos recursos, um incremento nas chances de alguns indivíduos alcançarem uma duração da vida mais longa - digamos 100 ou 120 anos - poderia acarretar uma diminuição das chances de outros indivíduos alcançarem uma duração da vida normal - digamos 80 ou 90 anos 25.

A hipótese da medicina eqüitativa e sustentável de Callahan

Já um objetivo mais apropriado para a medicina eqüitativa e sustentável seria a de manter e restaurar a saúde dentro de um ciclo limitado de existência (a ser estabelecido de acordo com algum padrão razoável de probabilidade de esperança de vida num momento determinado), considerado este moralmente mais defensável do que tentar melhorar substancialmente, e de maneira abstrata, a condição humana. Assim, dever-se-iam restringir as fronteiras ao longo do "eixo temporal do envelhecimento" 1 (p. 152), tratando esse estágio de envelhecimento, não como uma condição a ser superada, mas a ser aliviada. Nesta perspectiva, aceitar-se-ia que o idoso está mais próximo do fim de seu ciclo de vida e, conseqüentemente, mais sujeito à doença e à morte, do que o indivíduo mais jovem, não existindo, portanto, correlação necessária entre satisfação na vida e longevidade, e considerando, então, a morte na velhice como um processo natural e prima facie inevitável. Assim sendo, de acordo com esta perspectiva, uma sociedade que garantisse, por meio de políticas públicas, que o conjunto de seus cidadãos vivessem em tomo de 80 ou 90 anos (o autor se refere a padrões norte-americanos), seria uma sociedade razoavelmente justa.

Críticas dos modelos apresentados

Duas críticas podem ser endereçadas à perspectiva de Callahan de usar a idade como um critério para a alocação de recursos. De acordo com a primeira, não existe razão para "supor que uma pessoa idosa valoriza menos sua vida do que uma pessoa jovem" 26 (p. 37), e ninguém, a não ser a própria pessoa, poderia, portanto, determinar se sua vida tem valor ou se sua duração foi atingida. Com efeito, de acordo com esta visão, "a vida [seria]um bem incomensurável, não sendo possível trocar a vida de um paciente" 27 (p. 870) por outro - por exemplo, um idoso por um jovem. Em suma, nessa perspectiva, vigoraria o "princípio do único juiz", pelo qual ninguém poderia julgar o valor da vida de outrem, a não ser o próprio indivíduo que a vive, já que apenas ele teria acesso aos seus estados mentais, emocionais e existenciais.

No entanto, mesmo admitindo o acesso privilegiado do paciente aos seus estados mentais, disso não decorre que apenas o interesse do indivíduo deva ser levado em consideração, independentemente da razoabilidade deste querer, isto é, sem ponderar a carga que a satisfação deste interesse acarretaria para outros indivíduos, devendo-se, portanto, trazer argumentos morais adicionais. Com efeito, pode-se argumentar que, numa situação de escassez de recursos, seria um exercício injusto do direito à autonomia pessoal, se os idosos demandassem atenção médica ilimitada, sem levar em consideração as necessidades e os interesses dos jovens, sobre os quais - devido à transição demográfica anteriormente referida - recai progressivamente parte significativa do custeio da demanda de atenção à saúde do idoso. Como argumenta Callahan 6, a vida nas comunidades humanas requer que limitemos nossas próprias necessidades e nosso exercício da autonomia, para que as necessidades e a autonomia das outras pessoas, pertencentes a diferentes faixas etárias, possam florescer, devendo-se, portanto, focalizar o bem comum e não exclusivamente o bem-estar dos indivíduos, tomados caso a caso.

A segunda crítica sustenta que o idoso deveria ser considerado "igual a qualquer outra pessoa na sociedade" 26 (p. 37), não devendo ter nenhum status especial vinculado à idade. Com efeito, justiça requereria que os indivíduos fossem "tratados de acordo com a igual satisfação das suas necessidades e interesses" 28 (p. 21), independente de características tais como o sexo, a raça e a idade. Assim, seria injusto sacrificar os idosos, limitando os recursos destinados a este grupo, para realocá-los para os jovens, de modo a realizar um maior beneficio para um maior número de pessoas, como no cálculo utilitarista 29.

No entanto, Daniels 25,30, adotando o enfoque dos estágios de vida, propõe uma maneira de basear a alocação dos recursos para a saúde de acordo com a idade, promovendo uma justa distribuição de recursos entre os diferentes grupos de idade, que não implica, necessariamente, alguma forma de discriminação. Para isso, o autor reduz a questão mais complexa da distribuição de recursos entre pessoas de diferentes idades - o jovem e o idoso, por exemplo - para uma mais simples: a da alocação intrapessoal de recursos, considerando toda a vida de uma pessoa. Utilizando-se dessa estratégia, o autor aplica o princípio da prudência para guiar a alocação dos recursos entre os vários estágios de vida, supondo que as necessidades variam nesses diferentes estágios, no sentido de um incremento de necessidades em saúde de acordo com a idade. Conforme com esta estratégia argumentativa, um indivíduo "prudente" deveria poupar recursos em um estágio em que se gasta menos com atenção à saúde - a juventude -, para poder, em seguida, se investir em outro estágio - a velhice -, na qual em princípio se gasta mais. Da mesma maneira, uma sociedade prudente seria aquela que priorizasse as ações de saúde pública em relação às tecnologias médicas avançadas que objetivassem restaurar o funcionamento normal, sendo que, em relação aos serviços para doentes crônicos e incapacitados, gastasse menos recursos, desde o início da vida ao estágio adulto, para que todos pudessem deles usufruir na velhice, quando se tomarem mais necessários. Assim, os jovens deveriam poupar recursos para que fossem investidos nos idosos, e para que, quando eles próprios forem idosos, outros jovens fizessem o mesmo, de forma que uma transferência de recursos do jovem para o idoso beneficiasse, afinal, a todos. Nessa perspectiva, tratar os indivíduos de acordo com a igual satisfação de suas necessidades seria tratá-los, em cada um dos estágios da vida, "da mesma maneira", entendendo-se que, nos diversos estágios da vida, as necessidades são diferentes e que, em cada um deles, os indivíduos devem ser tratados diferentemente, de acordo com o princípio da justiça como eqüidade.

No entanto, vale a pena reiterar que o objetivo dessa concepção não é utilizar o idoso para maximizar o bem comum, de maneira abstrata, mas, sim, distribuir os recursos nos vários estágios de vida do indivíduo, considerando o ciclo limitado de existência de cada um, concebendo que, em cada um dos estágios da existência haveria um modo justo de ser tratado, de acordo com a pertinência relativa atribuída, de maneira consensual, a cada faixa etária.

Dois problemas podem ser identificados em relação a este modelo de alocação de recursos baseado na idade. O primeiro é que, se não existirem recursos suficientes em ações de saúde pública, muitos indivíduos jovens poderão ser acometidos de agravos à saúde que poderiam ser evitados, necessitando, desde os estágios iniciais da vida, de recursos sanitários que deveriam ser poupados para as fases finais da vida. Assim, por exemplo, se não se prevenir a hipertensão arterial ou não acompanhar, adequadamente, o paciente hipertenso, teremos muitos pacientes necessitando de diálise ou transplante renais 31. Neste caso, cometeríamos urna dupla injustiça ao negarmos a esses indivíduos a diálise ou o transplante, já que uma injustiça foi anteriormente cometida, quando lhe foram negados os serviços de saúde pública.

Assim sendo, pode-se dizer que, do ponto de vista da saúde pública, é mister admitir, como argumento cogente, que um Estado legítimo deve assumir a sua responsabilidade social relativa à saúde das populações que compõem sua sociedade - e às respectivas medidas de promoção da saúde e prevenção de doenças -, como expressão de uma bioética de proteção, entendida como atitude compulsória de cobertura das necessidades essenciais dos outros 15. Como afirmam esses autores, essas necessidades "são aquelas que devem ser satisfeitas para que o afetado possa atender a outras necessidades" 15 (p. 953) e escolher entre projetos de vida alternativos. Afinal, um Estado moderno (ou suas instituições substitutas e legítimas), que não tenha políticas protetoras dos cidadãos, dificilmente poderá ser considerado legítimo pelos mesmos, a começar pelas pessoas e populações mais necessitadas.

O segundo problema diz respeito ao justo tratamento de diferentes coortes de nascimento, envolvendo, por exemplo, a ponderação das necessidades e interesses de coortes formadas por recém-nascidos que sobrevivem com qualidade de vida normal ou razoável, e que sobrevivem com qualidade de vida pobre ou muito reduzida. Na primeira coorte existiria uma situação-padrão em que, nos primeiros estágios da vida, o gasto com tecnologias médicas - que visam restaurar o funcionamento normal - e serviços para doentes crônicos e incapacitados, seria menor do que o gasto nos últimos estágios da vida; na segunda coorte, esses gastos seriam grandes desde o início da vida. Em outros termos, nesta última coorte, o gasto com essas tecnologias e serviços durante toda a vida do indivíduo seria significativo, podendo ser necessário transferir recursos da coorte de nascimento dos que sobrevivem com qualidade de vida normal para os que sobrevivem com qualidade de vida muito reduzida.

Dessa forma, em um contexto de escassez de recursos, um possível efeito dessa transferência seria que um aumento dos recursos destinados a segunda coorte - ampliando suas chances de estender sua vida até, digamos, uns 40 ou 50 anos - apenas poderia ocorrer às custas da diminuição dos recursos distribuídos para a primeira coorte e, portanto, de suas chances de alcançar um ciclo de duração da vida normal (digamos, em tomo de 80 ou 90 anos). Este problema nos parece um desafio para a própria ética de proteção, na medida em que esta envolve a difícil questão de como ponderar as diferentes necessidades de proteção das diversas coortes de nascimento e as respectivas cargas para a sociedade da satisfação destas necessidades.

No entanto, as reflexões desenvolvidas aqui se situam no nível "macro" da formulação de políticas públicas de atenção à saúde e não no âmbito "micro" da inter-relação médico-paciente. Lembramos que a teoria ética utilizada - a justiça como eqüidade - objetiva fornecer as regras normativas da estrutura básica da sociedade, incluindo um sistema de atenção à saúde, não sendo adequado aplicá-la inteiramente à distribuição dos recursos na beira do leito. Assim sendo, a aplicação do princípio da diferença - que busca privilegiar os menos favorecidos - não pode ser utilizado, sem mais, para regular as relações entre o médico e o paciente, subsumindo o critério das necessidades individuais a meros critérios sócio-econômicos, caso contrário, pode-se considerar justo, por exemplo, que se deixe de salvar um paciente do grupo mais favorecido, em risco iminente de vida, para beneficiar um paciente do grupo dos menos favorecidos, que não se encontra na mesma condição crítica. De fato, isso desvirtuaria não só os alicerces morais, e imemoriais, da prática médica, mas seria, também, um claro indício daquela que Michael Walzer qualificou como "tirania", ou seja, uma involução histórica da criticável democracia liberal para um execrável populismo totalitário 32.

Conclusão

Para concluir com uma observação de método e uma pergunta, que pretendem abrir espaço para reflexões futuras, deve-se lembrar que nossa argumentação se baseia, muito razoavelmente, nas concepções científicas vigentes sobre os limites biológicos da espécie humana atual, segundo a qual um representante da espécie Homo sapiens tem uma esperança de vida ideal máxima ao redor de 120 anos. Mas, devido aos possíveis avanços da biotecnociência, nada impede, a princípio, que tais limites se estendam muito além do razoavelmente pensável atualmente, o que certamente pode reconfigurar radicalmente também nossas concepções atuais sobre o certo e o errado, inclusive no que diz respeito a políticas públicas de saúde ao mesmo tempo eficazes, eficientes e efetivas, e referidas ao idoso. No entanto, mesmo admitindo esta possibilidade e preservando alguma forma de justiça distributiva eqüitativa, só conseguimos vislumbrar a seguinte alternativa: ou acreditamos que os recursos cessem de ser finitos e limitados - graças a alguma revolução biotecnocientífica - ou então, dever-se-a pressupor a redução dos desejos e necessidades, isto é, alguma forma de frugalidade consensualmente aceitável por todas as pessoas razoáveis.

Colaboradores

Ambos os autores participaram da elaboração do artigo, definindo sua estrutura e seu conteúdo. C. D. M. Ribeiro desenvolveu a primeira versão do artigo e F. R. Schramm contribuiu na revisão do mesmo, do ponto de vista da bioética de proteção. Ambos os autores responderam às colocações pertinentes dos comentaristas.

Recebido em 12/Jan/2004

Aprovado em 12/Mar/2004

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  • Endereço para correspondência
    C. D. M. Ribeiro Rua Cândido Mendes 76/304
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Out 2004
    • Data do Fascículo
      Out 2004

    Histórico

    • Recebido
      12 Jan 2004
    • Aceito
      12 Mar 2004
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