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O útero artificial

RESENHAS BOOK REVIEWS

Debora Diniz

Programa de Pós-graduação em Política Social, Universidade de Brasília, Brasília, Brasil.

anis@anis.org.br

O ÚTERO ARTIFICIAL. Atlan H. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. 128 pp.

ISBN: 85-7541-078-4

Rumo ao útero artificial

O tema da reprodução humana é um dos que mais provoca os discursos sobre natureza e cultura. De antropólogos a geneticistas, a fronteira entre pulsões biológicas e construções culturais é continuamente redescrita pelas novas tecnologias reprodutivas. Ao discurso do instinto materno, as tecnologias de procriação associaram o "desejo por filhos" que, por sua vez, abriram caminho para novas demandas pelo direito a escolher "como ter filhos". O grande desafio de "como ter filhos" será posto pela criação do útero artificial.

O útero artificial, um tropo comum a obras de ficção científica como Admirável Mundo Novo, foi também tema de obras científicas do início do século XX, ocasião em que o neologismo ectogênese foi criado pelo geneticista John Haldane na Inglaterra. A ectogênese resume o conjunto de técnicas necessárias para produzir bebês fora do corpo da mulher, isto é, úteros artificiais seriam os responsáveis pela gestação. Henri Atlan, em O Útero Artificial, obra recém-publicada na França e traduzida para o português, discute as possíveis implicações éticas e sociais do desenvolvimento do útero artificial.

A obra pode ser lida de duas maneiras. A primeira como uma peça acadêmica que antecipa o surgimento de uma nova tecnologia reprodutiva – a ectogênese – e analisa os principais desafios do útero artificial à reprodução social e ao simbolismo de gênero da maternidade e paternidade. A segunda leitura aproxima O Útero Artificial à tradição ensaística francesa, pois a obra é um misto de literatura, de sociologia e filosofia, ao estilo do humanismo iluminista. Talvez seja possível entender as duas leituras como parte da estratégia discursiva de Atlan: poucas referências bibliográficas e um apelo bem-sucedido a obras literárias e à mitologia grega. E como não podia deixar de ser, a argumentação não prescinde do conhecimento técnico-científico necessário à aventura analítica sobre o impacto de tecnologias reprodutivas ainda por serem desenvolvidas.

A ectogênese não é uma tecnologia reprodutiva disponível, muito embora existam grupos de pesquisadores internacionais empenhados em desenvolver as ferramentas necessárias à gestação de fetos fora do corpo da mulher. Mas o fato de não existir a tecnologia não intimida a argumentação de Atlan, tampouco a transforma em uma peça de ficção científica. O pressuposto fático é que não dispomos da técnica do útero artificial, mas esta será seguramente uma tecnologia possível em um futuro breve. Na verdade, o limite tecnológico a ser superado é o do quarto dia após a fecundação, quando as tecnologias reprodutivas transferem o pré-embrião para o útero da mulher, até a 24ª semana, quando os recursos neonatais garantem a sobrevida do bebê fora do útero com alguma segurança. Ou seja, o que o útero artificial necessita substituir são as 24 semanas em que o útero da mulher ainda é indispensável para o desenvolvimento do feto.

Atlan está seguro que essa será uma técnica disponível, a não ser que a biologia humana seja surpreendentemente resistente às observações científicas do desenvolvimento fetal, o que demandará maiores esforços e investimentos para o processo de descoberta. Esse é o ponto de partida da obra, cuja tese é simples: "a hipermedicalização da procriação chegará a desbiologizar as relações dos pais, entre eles e com seus filhos" (p. 103). Não se deve entender a tese como a afirmação de que a produção de bebês nos corpos das mulheres seja a representação da reprodução natural. A tese de Atlan é mais sofisticada: o desenvolvimento do útero artificial provocará uma redescrição sem precedentes no discurso sobre o natural no campo reprodutivo.

A possibilidade de gerar bebês fora do corpo das mulheres forçará uma reorganização dos atributos de gênero associados à procriação. Segundo Atlan, a emergência das novas tecnologias reprodutivas marcou o início dessa revolução. Inicialmente foi "um filho se eu quiser" (emancipação das mulheres), em seguida "quando eu quiser" (métodos anticonceptivos) e, agora, "como eu quiser" (útero artificial). Assim como as tecnologias conceptivas promoveram-se sob a tutela ética de garantir o desejo por filhos a casais inférteis, o útero artificial surgirá como um recurso médico para socorrer mulheres em situação de aborto espontâneo. Em um momento inicial da tecnologia, o útero artificial substituirá o útero de mulheres impossibilitadas de sustentar a gravidez. A medicalização do útero artificial será, segundo Atlan, o que vencerá a heurística do medo que acompanha o anúncio de novas descobertas no campo reprodutivo.

Boa parte do livro revisa o surgimento das tecnologias conceptivas nos últimos trinta anos: das técnicas de fertilização assistida à possibilidade da clonagem reprodutiva. Essa revisão analítica mostra que, assim como as tecnologias conceptivas surgiram como alternativas para casais heterossexuais inférteis, o marco ético do útero artificial será a garantia de que mulheres sem útero ou com dificuldades para sustentar uma gestação em seu corpo possam ter filhos geneticamente vinculados. O fundamento ético do útero artificial não será o da opressão do corpo feminino, da eugenia ou da ameaça biotecnológica, mas o da solidariedade ao sofrimento de mulheres, homens e casais que não possam ter filhos. A essas pessoas, o útero artificial será uma alternativa mais convidativa que o útero por empréstimo, recurso atualmente utilizado pelas clínicas de reprodução assistida.

Mas a história das tecnologias conceptivas mostrou que não foram apenas casais inférteis que passaram a desejar filhos com o socorro das técnicas médicas: mulheres sozinhas, lésbicas, gays ou simplesmente casais infecundos, porém sem diagnóstico de infertilidade. O desejo por filhos passou a ser uma demanda legítima, expressa no direito a ter filhos genéticos pelo uso das tecnologias médicas. A tal ponto essa reconfiguração da tecnologia ultrapassou as fronteiras de uma técnica médica desenvolvida para tratar ou contornar casos de infertilidade que, hoje, as técnicas conceptivas são um recurso para as pessoas involuntariamente infecundas. O desejo por filhos não ficou restrito aos casais inférteis para quem a tecnologia foi inicialmente desenvolvida. Após duas décadas de popularização das tecnologias conceptivas, o acesso não é mais exclusivo às pessoas com diagnóstico de infertilidade, mas acessível a quem desejar filhos e experimentar uma infecundidade involuntária.

O útero artificial será uma possibilidade reprodutiva aberta às escolhas e preferências individuais e sobre isso Atlan não se espanta. Mulheres que não desejarem passar pelos incômodos da gestação poderão recorrer ao útero artificial para garantir o projeto do filho genético, porém livre da gestação. O resultado desse novo cenário – a uma primeira vista ameaçador – é o retorno à tese de Atlan: a hipermedicalização redescreverá os papéis da mulher e do homem na reprodução, aproximando a maternidade da paternidade. Esse é o ponto crítico do livro, pois Atlan não apenas antecipa que haverá impactos imprevisíveis nas relações de filiação e gênero associadas à reprodução biológica e social, como também arrisca algumas dessas reviravoltas.

A tarefa de antecipar conseqüências do útero artificial no cenário das escolhas reprodutivas é especialmente desafiante para Atlan, que ora oscila entre uma descrição neutra de esferas da vida social onde a tecnologia impactará (família, filiação e gênero), ora se arrisca a predições éticas sobre o mundo com o útero artificial. Certamente o esforço de Atlan não é um exercício antecipatório simples, por isso a ambigüidade narrativa dos últimos capítulos seja o recurso disponível para antever conseqüências e configurações sociais do surgimento de uma nova tecnologia reprodutiva.

O último capítulo do livro, A Utopia Fraternal, é o mais longo, em uma obra que se caracteriza por capítulos curtos e pontuais. Essa organização da narrativa permite, inclusive, que se explore a obra de forma independente, muito embora os últimos dois capítulos devam necessariamente ser lidos como um fechamento. É neles que a tensão entre predição neutra e utopia fraternal se esboça para responder à pergunta de como será o mundo com o útero artificial. Atlan não é um analista ingênuo das tecnologias reprodutivas, tampouco um representante da heurística do medo. Suas críticas anteriores à clonagem reprodutiva são fundamentadas em análises sociológicas sobre a mística de que "tudo-é-genético" e, portanto, uma resistência à idéia de que um clone seria uma reprodução de um ser vivente.

O final do livro esboça uma admiração distante pelas teorias feministas. O capítulo A Mãe Máquina dialoga com Gena Corea, uma das feministas que marcou o debate sobre tecnologias reprodutivas nos anos 1980. O argumento de Corea, como boa parte da crítica feminista posterior, esbarra em um paradoxo enfrentado por Atlan: ao mesmo tempo em que as tecnologias reprodutivas alienam o corpo feminino, elas também libertam. Atlan reconhece o aspecto visionário da obra de Corea, em especial as análises sobre o útero artificial, mas também desafia algumas das reivindicações feministas expressas na tensão entre opressão e libertação das mulheres pelas tecnologias reprodutivas. Mas a aproximação do autor às teorias feministas não se resume à revisão das idéias de Corea, pois é na idéia da utopia fraternal que a inspiração feminista se revigora.

O impacto do útero artificial não pode ser previsto: tanto poderá ser um recurso para garantir escolhas individuais e facilitar a emergência de novas configurações de família e filiação, como poderá fragmentar as concepções vigentes de família e exacerbar o individualismo hedonista. Atlan oscila entre esses diferentes cenários, mas o capítulo final aproxima o pêndulo para a "utopia fraternal", um conceito pouco explorado, mas esboçado pela intuição de que o útero artificial não representará a barbárie. A condição para que o útero artificial seja um sinal de progresso civilizatório é de "natureza moral: uma compaixão 'maternal' desinteressada, uma preocupação com o outro e com a justiça deverão impregnar as relações humanas, quaisquer que sejam as formas de organização familiar, política, econômica, ideológica ou religiosa que as sociedades futuras assumam" (p. 113).

Não há uma aposta futurista de que a sociedade do útero artificial será fraterna, mas o reconhecimento de que indiferente à forma de se gestar bebês – se em mulheres ou em máquinas – o valor feminino do cuidado precisará ser reconhecido como um princípio de justiça. No capítulo A Utopia Fraternal, Atlan não dialoga diretamente com as teóricas feministas do cuidado e não há como saber se esta é uma aproximação intencional da narrativa. O fato é que a "compaixão maternal" não deve ser entendida em seu caráter biologizante, mas no papel social atribuído às mulheres no cuidado dos filhos. Isso significa que, a despeito de quem irá gerar as futuras crianças, o valor social do cuidado terá de se fortalecer. Essa é a utopia fraternal de Atlan para intuir que a sociedade do útero artificial não representará o retorno à barbárie.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Abr 2007
  • Data do Fascículo
    Maio 2007
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