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Fundamentos da educação escolar no Brasil contemporâneo

RESENHAS BOOK REVIEWS

Ialê Falleiros Braga

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil

FUNDAMENTOS DA EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL CONTEMPORÂNEO. Lima JCF, Neves LMW, organizadores. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2006. 320 pp.

ISBN: 85-7541-074-1

Entre os comentários que me têm chegado aos ouvidos sobre a coletânea Fundamentos da Educação Escolar no Brasil Contemporâneo uma pergunta se destaca: Seria apropriado nomeá-la a partir do tema da "educação" apenas? De fato, não é de surpreender que, tendo em vista a abrangência das reflexões nela apresentadas, talvez se pudesse pensar em chamá-la "para entender a realidade brasileira contemporânea". No entanto, a obra – preparada para o Seminário Comemorativo dos 20 anos da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/FIOCRUZ) – parece nos dizer em alto e bom som: para pensar a educação brasileira contemporânea, é preciso entendê-la a partir dos pressupostos econômicos, políticos e filosóficos da sociedade em que se insere. Mas o livro é certamente do interesse daqueles que buscam compreender os fundamentos das demais políticas sociais no Brasil atual. De fato, esse interesse pode ser comprovado pelo fato de que, em apenas um ano, a primeira impressão se esgotou e uma nova remessa já está sendo preparada.

O livro espelha o sentido no qual a EPSJV vem trabalhando para elaborar a politecnia como projeto e implementá-la em seu processo educacional. Iniciativa coordenada por Lúcia Maria Wanderley Neves e Júlio César França Lima, a coletânea foi o primeiro momento de sistematização de idéias para aquecer o debate com os autores durante o seminário, ocorrido no início de maio de 2006 na própria EPSJV. O balanço das comunicações orais e do debate suscitado será publicado na forma de texto e DVD ainda este ano.

A escolha dos autores, todos eles respeitados por sua produção intelectual e reconhecidos no campo da esquerda no Brasil, dá o tom da obra. Contrariando as linhas de pensamento avessas ao marxismo, a maioria dos textos se posiciona pela filosofia da práxis para elucidar o processo histórico que vem conformando nossa realidade, na perspectiva da luta de classes, visando à emancipação da classe trabalhadora. Dedicam-se, portanto, à difícil tarefa de pensar o Brasil contemporâneo nos seus aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais, tendo como preocupação central a reflexão sobre a educação na luta pela emancipação, pelo socialismo.

No primeiro texto, Miriam Limoeiro Cardoso discute o conceito de sociedade pós-moderna (sociedade da informação, sociedade do consumo) e o quanto, com o discurso de que esse novo momento significará progresso e melhoria para todos, seus ideólogos ofuscam a percepção de que esta mesma sociedade não deixou de ser capitalista, que cria novas formas de exploração e dominação. As teorias da modernização e do desenvolvimento propagadas após a 2ª Guerra Mundial são apresentadas a partir da contestação elaborada por Florestan Fernandes ao processo nomeado por ele de capitalismo dependente, característico do Brasil, gerador de sobreexploração e sobreexpropriação, além de regimes autocráticos. A sociedade em que vivemos sob o capital mundializado é vista a partir da sistematização de reflexões de Hobsbawm, Wallerstein, Chesnais, Arrighi e Hardt/Negri. Cardoso não se propõe, contudo, a aprofundar a discussão sobre as nuances e os pontos de divergência existentes entre esses autores. O texto ressalta a importância de algumas noções para a compreensão do capitalismo contemporâneo, pinçadas de Marx (subsunção formal e real do trabalho ao capital), Althusser (ideologia e luta ideológica) e Foucault (funcionamento das malhas do poder – disciplina, controle e biopolítica), colocando como imperativo à sua superação a incorporação à luta ideológica do acesso geral ao conhecimento crítico e sua análise e discussão pelos movimentos de resistência e luta.

O texto seguinte, de Leda Maria Paulani, apresenta um apanhado da doutrina neoliberal formulada por Friedrich Hayek nos anos 1940 e do contexto histórico em que se ancorou, em meados dos anos 1970, a partir da crise econômica instalada nos países do capitalismo central, mormente os Estados Unidos, a partir do fim da reconstrução da Europa e Ásia e da industrialização da América Latina. A autora discute a pressão dos países centrais pela liberalização dos mercados financeiros e os ataques às conquistas sociais alcançadas pela classe trabalhadora empreendidos por Margareth Tatcher e Ronald Reagan. Esses governantes encontrariam em Hayek o argumento para as novas práticas de controle do gasto público, privatização de empresas estatais e restrição das funções do Estado, fundando uma nova fase de reprodução ampliada do capital, sob os imperativos da cumulação financeira - na qual se verifica o maior processo de concentração de capital da história capitalista. Paulani explicita o papel assumido pelo Brasil nesse contexto – na contramão dos direitos constitucionais recém-instituídos – de plataforma de valorização financeira internacional, pela abertura econômica, privatização, sobrevalorização da moeda nacional e elevação da taxa de juros, além das reduções de gastos estatais na área social. Mostra, ainda, como o "estado de emergência econômico" propagado nos anos 1990 foi fundamental para a viabilização do projeto neoliberal no país. Como Miriam Limoeiro, Leda Paulani ressalta a importância da mobilização social para a superação desse modelo.

Márcio Pochmann dá seqüência, no terceiro texto, às reflexões sobre o modelo econômico adotado no Brasil a partir dos anos 1990, levantando elementos da década anterior para compreender o processo de estagnação econômica brasileira em favor do pagamento dos serviços da dívida externa. Enfatiza, nesse processo, a dependência financeira e ausência de crescimento econômico sustentável, a revisão do papel do Estado na economia nacional e a reformulação do setor público – constrangendo o gasto público quanto à sua aplicação em políticas de universalização de direitos sociais –, a destruição e reestruturação do sistema produtivo industrial e a desestruturação do mercado de trabalho, gerando políticas compensatórias, bem como a financeirização da riqueza e o aumento do abismo social no país.

O quarto texto, de Roberto Romano, reflete sobre os limites da democracia no Brasil, através do estudo de sua configuração a partir do processo de independência e instalação do poder moderador na Constituição de 1824. O autor localiza historicamente esse espaço de poder, fundamentado por Benjamim Constant, criado para estar acima e controlar os demais, e obviamente para ser ocupado pelo imperador, na passagem do absolutismo religioso ao laico, nas teorias e nos balanços sobre as revoluções burguesas e a instalação da era napoleônica na Europa. Seus desdobramentos no Brasil república são verificados nas ditaduras de Vargas e militar, ancoradas na Igreja e no exército, na centralização do poder político e dos impostos no âmbito federal e nas prerrogativas do presidente da república ditar Decretos-Lei tão utilizadas no contexto neoliberal.

Em seguida, Carlos Nelson Coutinho analisa a existência, a partir do final dos anos 1970, da crise de um modelo de Estado, e do desenvolvimento de uma sociedade civil que passa a compor este modelo, complexificando a ordem social no Brasil. Nesse novo contexto, as classes dominantes vêm recompondo sua hegemonia a partir de mecanismos de convencimento e cooptação dos aparelhos privados de hegemonia que se embatem na sociedade civil, aproximando o Brasil do modelo norte-americano, caracterizado por partidos sem definição ideológica, que atuam como frentes de grupos corporativos, defendendo, na prática, o mesmo projeto de sociedade, estimulando práticas como o sindicalismo de resultados e reduzindo a definição dos caminhos nacionais a uma questão técnica. O autor indica como tarefa da esquerda lutar por um modelo de Estado que coloque o interesse público como principal norte de sua ação, que inclua os organismos da sociedade civil, aumentando os mecanismos de participação, de aprofundamento da democracia, na construção de uma sociedade socialista.

Continuando a discussão enfrentada por Coutinho, Virgínia Fontes faz um apanhado das teorias que fundamentaram a constituição de um poder acima dos indivíduos na consolidação dos Estados nacionais europeus, desdobrando as noções de Estado nestas teorias para esmiuçar a concepção de sociedade civil recriada por Gramsci, com base em Marx. Parte do Estado ampliado, a sociedade civil é entendida como espaço de luta de classes, intra e interclasses, por meio de aparelhos privados de hegemonia voltados à difusão de modos de pensar, sentir e agir adequados ao projeto societário ao qual se filiam ou para o qual foram cooptados. A partir desse chão, a autora analisa o processo de conversão de intelectuais e projetos societários ligados aos interesses da classe trabalhadora na direção hegemônica do capital, por intermédio da difusão de organizações sociais de novo tipo nos anos 1980, mormente ONGs, que passam a contribuir para a difusão da visão distorcida da sociedade civil como reino do bem, espaço democrático isento de conflitos e contradições entre as classes sociais. Para afirmar o papel de destaque das organizações empresariais na condução das políticas de Estado no Brasil, Fontes remonta aos estudos de Sônia Mendonça e René Dreifuss – este último focado na importância desses organismos na instalação do regime militar no Brasil. Com a emergência de múltiplas organizações populares na luta pela redemocratização do país ao longo dos anos 1970, essas mesmas entidades empresariais passam a levantar, na década de 1980 a bandeira da não intervenção do Estado na economia e demandar maior espaço de atuação privada, pautando a agenda de desmonte de serviços públicos, em especial pela precarização das relações de trabalho do funcionalismo no setor, movimento que se aprofundaria na década seguinte.

No penúltimo texto, Gaudêncio Frigotto centra sua análise na apropriação da ciência, técnica e tecnologia nos diferentes modos de produção da existência, reforçando a importância da superação da compreensão destas como forças autônomas das relações de produção da existência ou, no outro extremo, como negativas porque subordinadas aos processos de exploração e alienação do trabalhador no processo de reprodução ampliada do capital. Ressalta, assim, as potencialidades da ampla difusão da ciência, técnica e tecnologia como estratégia educacional emancipatória das classes trabalhadoras. O autor analisa as conseqüências danosas à classe trabalhadora da posição do Brasil enquanto subsidiário na produção de conhecimento na divisão internacional do trabalho e afirma, tendo por base Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira, ser esta uma opção das elites dominantes nacionais, que consentem em agregar o arcaico e o moderno, o atraso e o desenvolvimento no modo de produzir a existência no país, definindo nosso capitalismo como dependente e subordinado. Frigotto enfoca o modelo educacional vigente, que limita a formação técnico-profissional, espelhando o modelo societário capitalista dependente, e propõe a valorização da escola unitária, politécnica e/ou tecnológica como forma de superação deste modelo, bem como o trabalho como princípio educativo, articulando a formação básica à formação técnico-profissional em novas bases, na perspectiva da construção do socialismo.

Por fim, neste inspirado texto, Antônio Joaquim Severino aborda a educação escolar em seus fundamentos ético-políticos, entendendo-a na perspectiva de produção de conceitos e vivência de valores. Buscando compreender os elementos da proposta neoliberal de educação, Severino retoma os principais contextos educacionais da história do Brasil, a partir do catolicismo, do liberalismo e da ideologia tecnocrática. Sua contribuição mais profunda neste texto, contudo, remete à questão: "qual é a proposta de educação alternativa ao que está posto, da perspectiva da emancipação, do socialismo?" Buscando respondê-la, o autor qualifica os pressupostos de uma educação voltada à construção de uma nova sociedade a partir do desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico em todos os campos e dimensões, da sensibilidade ética e estética à condição humana e de sua racionalidade filosófica, esclarecendo epistemicamente o sentido da existência e afastando o ofuscamento ideológico dos discursos pautados pela lógica individualizante e competitiva do mercado. Educar contra-ideologicamente não pode prescindir do desenvolvimento da capacidade crítica, que só pode ser construída pela difusão do conhecimento científico e filosófico. A tarefa essencial da educação passa a ser a construção da cidadania, contribuindo para a construção de uma humanidade renovada. Essa educação só poderá ser empreendida com o investimento num grande qualificado sistema público de ensino, reforçando a importância do público como sentido do bem comum efetivamente universal.

O encadeamento dos textos, vai-se notando ao longo da leitura, permite o diálogo entre o geral e o específico nas metamorfoses do mundo contemporâneo, suas raízes e seus desdobramentos no contexto nacional e mais diretamente na educação escolar de hoje.

Para o campo da saúde, a obra é de enorme importância para os trabalhadores, pesquisadores e militantes ligados ao fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), e entre suas contribuições mais diretas destaco a discussão sobre os limites e as possibilidades da democracia e da participação no contexto atual. Se a luta por direitos sociais universais encontra hoje obstáculos poderosos, é preciso dimensioná-los, perscrutá-los e esclarecê-los para fundamentar as estratégias para sua superação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jul 2007
  • Data do Fascículo
    Ago 2007
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