EDITORIAL
Contribuições da bioética para a saúde pública
Para uma adequada compreensão da bioética contemporânea e de suas relações com a saúde pública é apropriado um retorno às suas origens. Embora formalmente reconhecida sua origem no trabalho de Potter e no de Hellegers, é razoável situar o surgimento das reflexões que viriam a se conformar como bioética no âmbito das preocupações com as repercussões das pesquisas envolvendo seres humanos e em eventos mais associados à clínica, como o episódio da criação do Life or Death Committee, em Seattle, Estados Unidos, relacionado com a escolha dos que seriam atendidos pelo programa de diálise renal. Em ambos os casos a relação direta com a saúde pública já é evidente. O foco dado aos aspectos clínicos nas análises habituais desses episódios pode ser apenas um reflexo de uma compreensão extemporânea da própria saúde pública: como campo de conhecimento e de práticas, delimitado pelas estreitas divisas da epidemiologia, das doenças transmissíveis e da medicina preventiva. Ao contrário, tais marcos históricos, dentre outros, evidenciam a pertinência da análise bioética dos problemas relacionados com a saúde pública, no caso, a formulação de políticas e a gestão de serviços.
A conformação (trans)disciplinar e o reconhecimento social dado à bioética ocorreram em uma perspectiva que se aproxima bem mais da concepção holística proposta por Potter, ainda que nas análises aplicadas à clínica e à pesquisa o modelo principialista desenvolvido no Kennedy Institute of Ethics seja hegemônico. Pode ser conceituada como o estudo sistemático das dimensões morais das ciências da vida e dos cuidados da saúde, empregando uma variedade de metodologias. Como uma ética aplicada, possui duas dimensões indissociáveis, uma descritiva e uma normativa. Ou seja, preocupa-se em analisar os argumentos morais a favor e contra determinadas práticas humanas que afetam a qualidade de vida e o bem-estar dos humanos e dos outros seres vivos e a qualidade dos seus ambientes, e em tomar decisões baseadas nestas análises. Considerando-se de forma específica, mas não só, o campo da saúde pública, tem sido propugnado que a proteção seja o princípio norteador das análises e decisões a serem tomadas. Tal concepção é coerente com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO.
Tendo como referência o núcleo da saúde coletiva, "o apoio aos sistemas de saúde, à elaboração de políticas e à construção de modelos; a produção de explicações para os processos saúde/enfermidade/intervenção; e, (...), a produção de práticas de promoção [da saúde] e prevenção de doenças" (Ciênc Saúde Coletiva 2000; 5:219-30), é correto afirmar que a bioética, com suas teorias e métodos, não apenas tem contribuído como também deve continuar a contribuir para o desenvolvimento deste campo, com a análise e proposição de soluções para os problemas morais inerentes às suas práticas. Mas no Brasil e em boa parte da América Latina isso não deve se configurar como um problema, na medida em que a própria saúde coletiva se vê também como campo inter e transdisciplinar.
O desafio de considerar igualmente interesses individuais e coletivos, o bem individual e o coletivo é uma das tarefas da saúde pública com a qual a bioética pode contribuir de forma significativa. O desafio não é o de impor restrições às liberdades individuais, mas o de focar nos interesses da coletividade a formulação das políticas públicas, fundamentando-a criteriosamente do ponto de vista ético. Nossa história recente tem mostrado que o diálogo e a permanente busca de entendimento abrem caminho para a conformação de um sistema de saúde mais justo, assim como de suas práticas.
Sergio Rego
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Out 2007 -
Data do Fascículo
Nov 2007