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Leitos hospitalares e reforma psiquiátrica no Brasil

Hospital beds and mental health reform in Brazil

Resumos

O objetivo do trabalho é estimar o número de leitos psiquiátricos ocupados por Unidade da Federação e o valor pago pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nas internações por serviços hospitalares, serviços profissionais, exames e medicamentos no Brasil em 2004. O número médio de leitos psiquiátricos ocupados, estimado a partir do total de dias de permanência no ano, e o valor pago pelo SUS foram obtidos a partir das Autorizações de Internação Hospitalar (AIH). O número de leitos psiquiátricos ocupados pelo SUS era de 45 mil em 2004. O valor total pago pelo SUS para internações de pacientes com transtornos mentais atingiu R$ 487 milhões em 2004. Os hospitais privados eram responsáveis por 78,8% do total de leitos psiquiátricos ocupados pelo SUS. Ainda que a desativação de estimados 15 mil leitos asilares possa gerar anualmente R$ 162 milhões ao ano passíveis de serem realocados para serviços psiquiátricos extra-hospitalares, o planejamento e a execução da Reforma Psiquiátrica têm sido muito tímidos. A precária rede extra-hospitalar tem sido utilizada como impedimento à desativação dos leitos psiquiátricos, embora esta gere os recursos necessários para a ampliação daquela.

Número de Leitos em Hospital; Hospitais Psiquiátricos; Transtornos Mentais


The objective of this study was to estimate the number of psychiatric beds occupied per State in Brazil and the amount paid by the Unified National Health System (SUS) for hospitalizations, professional services, tests, and medicines in the country in 2004. The mean number of psychiatric beds occupied, estimated on the basis of total days of hospitalization during the year, and the amount paid by the SUS were obtained from the Hospital Admissions Authorizations (AIH). A total of 45 thousand psychiatric beds were occupied by the SUS in 2004. The SUS paid a total of BRL$487 million (some U$270 million) for hospitalization of patients with mental disorders in 2004. Private hospitals accounted for 78.8% of all psychiatric beds occupied by the SUS. Although the deactivation of 15 mil psychiatric beds could currently generate BRL$162 million (U$90 million) to be reallocated to non-hospital psychiatric services, planning and implementation of the Psychiatric Reform have been very limited. The precarious extra-hospital network has been used as a barrier to deactivation of psychiatric beds, although the latter generates the necessary resources for the former.

Hospital Bed Capacity; Psychiatric Hospitals; Mental Disorders


ARTIGO ARTICLE

Leitos hospitalares e reforma psiquiátrica no Brasil

Hospital beds and mental health reform in Brazil

Samuel KilsztajnI; Erika de Souza LopesI; Luciana Zilles LimaI; Patrícia Avanzini Ferreira da RochaI; Manuela Santos Nunes do CarmoI, II

ILaboratório de Economia Social, São Paulo, Brasil

IISecretaria de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo, São Paulo, Brasil

Correspondência Correspondência: S. Kilsztajn Laboratório de Economia Social Rua Marquês de Paranaguá 164, apto. 602, São Paulo SP 01303-050, Brasil skilmail@gmail.com

RESUMO

O objetivo do trabalho é estimar o número de leitos psiquiátricos ocupados por Unidade da Federação e o valor pago pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nas internações por serviços hospitalares, serviços profissionais, exames e medicamentos no Brasil em 2004. O número médio de leitos psiquiátricos ocupados, estimado a partir do total de dias de permanência no ano, e o valor pago pelo SUS foram obtidos a partir das Autorizações de Internação Hospitalar (AIH). O número de leitos psiquiátricos ocupados pelo SUS era de 45 mil em 2004. O valor total pago pelo SUS para internações de pacientes com transtornos mentais atingiu R$ 487 milhões em 2004. Os hospitais privados eram responsáveis por 78,8% do total de leitos psiquiátricos ocupados pelo SUS. Ainda que a desativação de estimados 15 mil leitos asilares possa gerar anualmente R$ 162 milhões ao ano passíveis de serem realocados para serviços psiquiátricos extra-hospitalares, o planejamento e a execução da Reforma Psiquiátrica têm sido muito tímidos. A precária rede extra-hospitalar tem sido utilizada como impedimento à desativação dos leitos psiquiátricos, embora esta gere os recursos necessários para a ampliação daquela.

Número de Leitos em Hospital; Hospitais Psiquiátricos; Transtornos Mentais

ABSTRACT

The objective of this study was to estimate the number of psychiatric beds occupied per State in Brazil and the amount paid by the Unified National Health System (SUS) for hospitalizations, professional services, tests, and medicines in the country in 2004. The mean number of psychiatric beds occupied, estimated on the basis of total days of hospitalization during the year, and the amount paid by the SUS were obtained from the Hospital Admissions Authorizations (AIH). A total of 45 thousand psychiatric beds were occupied by the SUS in 2004. The SUS paid a total of BRL$487 million (some U$270 million) for hospitalization of patients with mental disorders in 2004. Private hospitals accounted for 78.8% of all psychiatric beds occupied by the SUS. Although the deactivation of 15 mil psychiatric beds could currently generate BRL$162 million (U$90 million) to be reallocated to non-hospital psychiatric services, planning and implementation of the Psychiatric Reform have been very limited. The precarious extra-hospital network has been used as a barrier to deactivation of psychiatric beds, although the latter generates the necessary resources for the former

Hospital Bed Capacity; Psychiatric Hospitals; Mental Disorders

Introdução

A adequação dos hospitais psiquiátricos e seus métodos terapêuticos foram radicalmente questionados na década de 1960 por Franco Basaglia; e a Itália, em 1978, foi o primeiro país do mundo a aprovar uma lei antimanicomial 1. No Brasil, a psiquiatra Nise da Silveira destacou-se por sua batalha contra os tratamentos à base de eletrochoques, lobotomia e camisas-de-força químicas; pela utilização da pintura e da modelagem como ocupação terapêutica e de animais para relações "pessoais" com esquizofrênicos; e pela criação, em 1956, da Casa das Palmeiras, o centro de atenção psicossocial em regime de externato com portas e janelas sempre abertas 2.

O movimento pela desinstitucionalização dos pacientes que apresentam transtornos mentais desenvolveu-se no Brasil na segunda metade da década de 1980 e gerou, em 1989, o Projeto de Lei nº. 3.657 de Paulo Delgado 3. A Reforma Psiquiátrica, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, contudo, só foi decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pela Lei nº. 10.216 em 2001 4. Em 2005, o Tribunal de Contas da União publicou o relatório Avaliação das Ações de Atenção à Saúde Mental: Programa Atenção à Saúde de Populações Estratégicas e em Situações Especiais de Agravos 5 com várias críticas à morosidade do processo de desospitalização em curso.

De acordo com o relatório 5, os hospitais psiquiátricos no Brasil, tradicionalmente, eram (e continuam sendo) responsáveis tanto pela residência como pelo atendimento terapêutico a pacientes que apresentam transtornos mentais. A redução progressiva de leitos e reinserção social dos pacientes psiquiátricos devem ser, desta forma, acompanhadas, por um lado, pela reintegração dos internos aos lares de seus familiares ou pela criação de residências terapêuticas (Programa De Volta para Casa, Serviços Residenciais Terapêuticos - SRT); e, por outro, pela expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), pela inclusão de ações de saúde mental na atenção básica, Programa Saúde da Família (PSF) e outros serviços de saúde, e pelo credenciamento de leitos psiquiátricos em hospitais gerais para situações singulares em que a internação se faça necessária.

Para contribuir com a discussão da Reforma Psiquiátrica e reintegração social dos internos, o objetivo deste trabalho é estimar o número de leitos psiquiátricos ocupados por Unidade da Federação e a magnitude do valor pago pelo Sistema Único de Saúde (SUS) nas internações por transtornos mentais por serviços hospitalares, serviços profissionais, exames e medicamentos no Brasil. Para tornar compatível esta pesquisa com o dados levantados pelo Tribunal de Contas da União 5 optou-se por limitar o trabalho ao ano de 2004.

Métodos

O número de leitos psiquiátricos ocupados pelo SUS foi estimado a partir dos dias de permanência registrados nas Autorizações de Internação Hospitalar (AIH) 6 e comparado ao número de leitos psiquiátricos cadastrados pelo SUS 7 e ao número de leitos/SUS registrados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) 8.

Os dias de permanência nas AIH correspondem ao total de dias de internação no mês de competência (mês imediatamente anterior ao da apresentação das AIH para faturamento). As AIH, contudo, podem incluir períodos de internação anteriores ao mês de competência (AIH apresentadas com atraso ou reapresentadas por terem sido rejeitadas em alguma competência anterior). Mas, em nível agregado, eventuais atrasos são desprezíveis e, para séries anuais, as defasagens em meses específicos compensam-se ao longo do ano. Para o exercício de 2004, com o objetivo de confirmar a correção deste procedimento, os dias de permanência foram conferidos por hospital e mês de competência 9.

Os dias de permanência, formalmente, incluem períodos em que o paciente utiliza UTI e, portanto, não utiliza leito. Entretanto, entre os pacientes internados por transtornos mentais e comportamentais (capítulo V da Classificação Internacional de Doenças, 10ª Revisão - CID-10 10), a utilização de UTI é muito pouco expressiva. Os dias de UTI correspondiam a 0,005% do total de dias de permanência de pacientes internados por transtornos mentais em 2004 9.

O número médio de leitos psiquiátricos ocupados foi estimado a partir do total de dias de permanência no ano dividido pelo número de dias no ano. Para o número de leitos psiquiátricos ocupados por mil habitantes entre 1994 e 2004 foram utilizados os dias de internação 6 e as estimativas da população residente 11. Para 2004, foram também calculados os percentuais de leitos psiquiátricos no total de leitos ocupados pelo SUS por Unidade da Federação 6.

Para a distribuição dos leitos psiquiátricos ocupados por especialidade foram utilizados os dias de internação por grupos da CID-10 10 em 2004 9. Foram calculados ainda, por especialidade, o número e percentual de leitos psiquiátricos ocupados em dezembro de 2004 (dias de internação no mês divididos por 31) por pacientes com data de internação anterior a julho do mesmo ano.

O valor total pago pelo SUS relativo a internações de pacientes com transtornos mentais em 2004, dividido em serviços hospitalares, profissionais e SADT (serviços auxiliares de diagnose e terapia: exames e medicamentos), também foi obtido a partir das AIH 9. O valor pago por paciente/mês em 2004 foi calculado a partir do valor anual dividido pelo número total de dias de permanência, multiplicado por 365/12. Foi calculado também o volume de recursos das AIH a serem gerados com a desativação de leitos de pacientes asilares potencialmente beneficiários de desinstitucionalização, de acordo com as estimativas do Ministério da Saúde 5.

Para a distribuição dos hospitais por número médio de leitos psiquiátricos ocupados foram consideradas quatro categorias: até 40; 41-120; 121-200; e mais de 200 leitos por hospital. O número de leitos, hospitais e o valor pago pelo SUS para as internações por transtornos mentais foram distribuídos de acordo com a natureza dos hospitais: privados (contratados e filantrópicos), federais, estaduais e municipais.

Resultados

De acordo com a Tabela 1, o número de leitos psiquiátricos cadastrados pelo SUS 7 durante todo o período de análise é sistematicamente superior (entre 27% e 41%) à estimativa de leitos psiquiátricos efetivamente ocupados pelo SUS. O CNES 8, por sua vez, registrava 47.911 leitos psiquiátricos em 4 de agosto de 2005, número 12% superior à estimativa de 42.695 leitos psiquiátricos ocupados em julho de 2005 6.

Tanto o número de leitos cadastrados como as estimativas de leitos ocupados por mil habitantes apresentaram queda no período analisado. A taxa por mil habitantes registrou 0,36 para leitos cadastrados em julho de 2003 e 0,25 para leitos ocupados em 2004.

Em números absolutos, os estados com maior número de leitos psiquiátricos ocupados em 2004 eram São Paulo (14.189 leitos), Rio de Janeiro (7.943), Paraná (3.488), Pernambuco (3.326) e Minas Gerais (3.191). A Figura 1 apresenta as taxas de leitos psiquiátricos ocupados por mil habitantes em 2004, que eram expressivamente diferentes entre as Unidades da Federação. Rio de Janeiro, Pernambuco, São Paulo, Paraná, Alagoas, Rio Grande do Norte e Paraíba apresentaram taxas superiores à média nacional (0,25); e os estados da Região Norte apresentaram baixas taxas de hospitalização de pacientes com transtornos mentais. A Figura 1 também apresenta os percentuais de leitos psiquiátricos no total de leitos ocupados pelo SUS por Unidade da Federação. Via de regra, os estados com maiores taxas de leitos psiquiátricos ocupados por mil habitantes apresentaram também maiores percentuais de leitos psiquiátricos no total de leitos ocupados pelo SUS.


Os pacientes classificados no grupo esquizofrenia, transtornos esquizotípicos e delirantes ocuparam 54,4% do total de leitos psiquiátricos. Os pacientes classificados nos grupos transtornos mentais devidos ao uso de substâncias psicoativas (particularmente álcool); transtornos mentais orgânicos, inclusive sintomáticos (demência etc.); transtornos de humor - afetivos (depressão etc.); e retardo mental ocuparam respectivamente 14,7%, 13,9%, 8% e 7,9% do total de leitos psiquiátricos. Os demais cinco grupos e os transtornos mentais não especificados, somados, ocuparam 1,1% do total de leitos psiquiátricos em 2004 (Tabela 2).

Em dezembro de 2004, o total de leitos psiquiátricos ocupados por pacientes com data de internação anterior a julho de 2004 era de 17.885, correspondendo a 41,1% do total de leitos psiquiátricos ocupados. Os pacientes com data de internação anterior a julho de 2004 pertenciam essencialmente aos grupos esquizofrenia, transtornos orgânicos e retardo mental.

O valor total pago pelo SUS para internações de pacientes com transtornos mentais atingiu R$ 487 milhões em 2004. O valor médio por paciente/mês foi calculado em R$ 749,12 para serviços hospitalares, R$ 75,08 para serviços profissionais e R$ 74,37 para SADT, totalizando R$ 898,57 (Tabela 3).

O Ministério da Saúde estima que 15 mil pacientes asilares são potencialmente beneficiários de desinstitucionalização 5. Os recursos a serem gerados com a desativação destes 15 mil leitos asilares são equivalentes a R$ 162 milhões ao ano (a preços de 2004).

De acordo com a Tabela 4, 78,8% do total de leitos psiquiátricos ocupados pelo SUS em 2004 eram privados. Entre os 67 hospitais com mais de 200 leitos psiquiátricos ocupados, 55 eram privados, 11 estaduais e um municipal. Os hospitais com mais de 200 leitos ocuparam 51,1% dos 45.194 leitos psiquiátricos e receberam R$ 231 milhões do SUS por serviços hospitalares, profissionais e SADT em 2004.

Discussão

A psiquiatria, em vez de tentar compreender as dimensões psicológicas da doença mental, concentra seus esforços na descoberta de causas orgânicas para todas as perturbações mentais. O diagnóstico psiquiátrico, apesar do empenho dos psiquiatras em estabelecer sistemas objetivos que lhes permitam incluir a doença mental na definição biomédica de doença, é, no entanto, notoriamente subjetivo 12.

O pouco conhecimento das origens das doenças mentais e o diagnóstico "subjetivo", realizado a partir de síndromes, sinais e sintomas, são comumente utilizados para considerar o diagnóstico psiquiátrico como insuficiente na previsão da reabilitação do paciente 13. Mas a Reforma Psiquiátrica trouxe o conceito de cidadania às discussões, admitindo "um novo lugar social para o sofrimento mental" 14 (p. 196).

O número de leitos psiquiátricos por habitante nos países ricos é muito superior à média verificada nas regiões mais pobres do planeta 15. Este fato pode sugerir tanto que os países mais desenvolvidos possuem uma maior rede de apoio institucional para pacientes com transtornos mentais, como pode sugerir que as sociedades economicamente menos desenvolvidas geram menos pacientes ou convivem melhor com as pessoas que apresentam transtornos mentais. Entre os países desenvolvidos, vale registrar, a Itália e a Espanha destacam-se pelo seu relativo baixo número de leitos por habitante 16.

A discrepância entre o número de leitos psiquiátricos por habitante nas unidades da federação brasileira em 2004, expressa na Figura 1, da mesma forma, pode tanto significar desassistência nas regiões com menor número de leitos psiquiátricos por habitante, como saúde mental e inclusão social das pessoas que apresentam transtornos mentais. O fato de os estados com maiores taxas de leitos psiquiátricos ocupados por mil habitantes apresentarem maiores percentuais de leitos psiquiátricos no total de leitos ocupados pelo SUS parece confirmar a segunda alternativa (saúde mental e inclusão social). Lancman 17 considera também que os hospitais psiquiátricos, além de responsáveis pela cronificação dos doentes mentais, geram aumento de demanda aos serviços de saúde mental.

O número de leitos psiquiátricos ocupados estimado neste trabalho é consistente com o número de leitos registrado pelo CNES 8, a diferença sendo justificada pelo número de leitos em manutenção. O número de leitos psiquiátricos cadastrados no SIH 7 é sistematicamente superior ao número de leitos registrados pelo CNES 8.

A Reforma Psiquiátrica tem como objetivo a desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos e o desenvolvimento de uma rede extra-hospitalar capaz de garantir a reinserção social, a cidadania e o direito da pessoa portadora de transtornos mentais de atingir seu potencial de autonomia na comunidade 18,19.

De acordo com a legislação em vigor no Brasil, os recursos financeiros gerados pela desativação dos leitos psiquiátricos devem ser necessariamente direcionados para a rede de serviços extra-hospitalares de saúde mental 20. Há que se considerar, contudo, que a verba das internações hospitalares é federal; a manutenção das residências terapêuticas e dos CAPS é municipal; e os hospitais psiquiátricos são essencialmente privados. Além disso, os internos nos hospitais psiquiátricos não são necessariamente originais dos municípios-sede dos hospitais em que estão internados, nem necessariamente permanecerão nestes municípios. Embora os recursos financeiros resultantes da desativação dos leitos psiquiátricos, de acordo com a legislação, devam ser realocados nos municípios de destino dos pacientes desinstitucionalizados 21, não há garantia de que os recursos gerados pela diminuição de leitos na saúde mental sejam direcionados para o financiamento dos serviços extra-hospitalares, em especial quando o paciente retorna a um município diverso daquele em que estava hospitalizado 5.

Ainda que a desativação dos estimados 15 mil leitos psiquiátricos de pacientes asilares potencialmente beneficiários de desinstitucionalização possa gerar anualmente R$ 162 milhões passíveis de serem realocados para serviços psiquiátricos extra-hospitalares, o planejamento e a execução da Reforma Psiquiátrica têm sido muito tímidos. Furtado 22 destaca que as questões relativas ao financiamento representam o maior empecilho para a expansão dos SRT, e enfatiza a problemática do acesso e emprego dos recursos existente.

Em 2004, estavam operando no Brasil apenas 546 CAPS 5 e, em janeiro de 2005, o número de beneficiários do Programa De Volta para Casa atingia 952 dos estimados 15 mil potenciais beneficiários 5. Considere-se ainda que o valor mensal do benefício do Programa De Volta para Casa, R$ 240,00, equivale a 32% do valor pago pelo SUS para os serviços hospitalares por leito psiquiátrico ao mês em 2004, R$ 749,12 (líquidos de serviços profissionais e SADT).

Os hospitais privados receberam R$ 388 milhões do SUS em 2004 por 35.592 leitos psiquiátricos. Entre os hospitais psiquiátricos privados, 55 ocupavam mais de 200 leitos e receberam R$ 185 milhões (média anual de R$ 3,4 milhões por hospital). A relação de todos os hospitais que recebem verba do SUS, assim como a série de variáveis relacionadas às AIH pagas, está disponível para tabulação nos CD-ROM distribuídos pelo Ministério da Saúde 9.

O processo de desinstitucionalização dos pacientes psiquiátricos, evidentemente, afeta inúmeros interesses. Até a falta de certidão de nascimento de alguns internos tem sido muitas vezes apontada como empecilho à desinstitucionalização, apesar do registro de nascimento ser um direito do cidadão e sua emissão tardia poder ser agilizada pelo Ministério Público 5.

Mas, significativo percentual de internos tem condições de residir fora do hospital, e mesmo os pacientes mais graves precisam de projetos terapêuticos específicos e não necessariamente de internação. Em geral, as instituições hospitalares brasileiras não possuem programas específicos dirigidos à reabilitação psicossocial 13.

A precária rede extra-hospitalar tem sido utilizada como impedimento à desativação dos leitos psiquiátricos, embora esta gere os recursos necessários para a ampliação daquela. O responsável pela área da saúde mental da Prefeitura de São Paulo, o município mais abastado do país, declarou em 2004 que a cidade não tinha capacidade para suportar uma redução de leitos psiquiátricos e impediu o fechamento de uma clínica recomendado pelo Ministério da Saúde 23.

Por fim, há que se considerar que a desinstitucionalização dos pacientes psiquiátricos, que tem como objetivo direto garantir a reinserção social, a cidadania e o direito da pessoa portadora de transtornos mentais de atingir seu potencial de autonomia na comunidade, deverá também romper o estigma contra os "loucos" e libertar os "normais" de seu aprisionamento à estrutura funcional das sociedades ditas modernas.

Nas sociedades modernas, por influência de Descartes, o corpo é visto como uma complexa máquina e a razão, privilégio do homem, estaria pairando muito acima do corpo. Eventuais descarrilamentos da máquina cerebral dos trilhos da razão, segundo esta concepção, devem ser devidamente consertados, por bem, ou por mal 2.

"'Veja', dizia Ochwiay Biano [chefe dos índios Taos do Novo México] como os brancos têm um ar cruel. Tem lábios finos, nariz em ponta, os rostos sulcados de rugas e deformados. Os olhos têm uma expressão fixa, estão sempre buscando algo. O que procuram? Os brancos sempre desejam alguma coisa, estão sempre inquietos, e não conhecem o repouso. Nós não sabemos o que eles querem. Não os compreendemos e achamos que são loucos!".

"Perguntei-lhe [Jung] então por que pensava que todos os brancos eram loucos. Respondeu-me: 'Eles dizem que pensam com suas cabeças'".

"Mas naturalmente! Com o que pensa você? - perguntei admirado".

"Nós pensamos aqui - disse ele, indicando o coração" 24 (p. 219).

Colaboradores

Todos os autores participaram de todas as etapas da pesquisa e elaboração do artigo.

Agradecimentos

À Maria Luiza Andrade Simões (psicóloga), Dagomar Heriques Lima (Tribunal de Contas da União), pela colaboração e aos pareceristas dos Cadernos de Saúde Pública, pelas sugestões. Este trabalho foi realizado com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Recebido em 11/Jun/2007

Versão final reapresentada em 12/Fev/2008

Aprovado em 03/Mar/2008

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  • Correspondência:
    S. Kilsztajn
    Laboratório de Economia Social
    Rua Marquês de Paranaguá 164, apto. 602, São Paulo
    SP 01303-050, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Out 2008
    • Data do Fascículo
      Out 2008

    Histórico

    • Recebido
      11 Jun 2007
    • Revisado
      12 Fev 2008
    • Aceito
      03 Mar 2008
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