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Epidemia de comportamentos de risco? Nota sobre contextos sócio-culturais desiguais e dimensões subjetivas do processo saúde-doença

Epidemic of risk behaviors? A note on unequal socio-cultural contexts and subjective dimensions of the health-disease process

CARTAS LETTERS

Epidemia de comportamentos de risco? Nota sobre contextos sócio-culturais desiguais e dimensões subjetivas do processo saúde-doença

Epidemic of risk behaviors? A note on unequal socio-cultural contexts and subjective dimensions of the health-disease process

Marcos Bagrichevsky; Adriana Estevão

Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, Brasil

Correspondência Correspondência: M. Bagrichevsky Universidade Estadual de Santa Cruz. C. P. 139, Ilhéus, BA 45653-970, Brasil. marcos_bagrichevsky@yahoo.com.br

O editorial 1 publicado recentemente em Cadernos de Saúde Pública traz à baila um provocativo e pertinente desafio conceitual que orbita em torno da temática dos riscos, cuja centralidade na dita modernidade tardia é notória. Estimulados pelo contraponto argumentativo do texto de Paulo Vaz esboçamos uma triangulação problematizadora também a partir do artigo de Colares et al. 2, tomado como representante simbólico do estilo de pensamento da epidemiologia dos fatores de risco 3.

Diferentemente da lógica hegemônica sob a qual parte significativa das produções epidemiológicas tem se assentado, a noção de risco na perspectiva das ciências humanas e sociais 4 constitui uma polifonia de significados culturais (e de práticas a ela associadas) interpretados conforme os respectivos contextos sócio-econômicos, políticos e históricos, a partir dos quais muitos dos diferentes tipos de risco são gerados. A riqueza dessa tradição analítica também reside em sua capacidade de considerar os processos de subjetivação que norteiam e moldam formas de controle/poder, conectadas, entre outros aspectos, aos discursos sobre riscos à saúde circulantes na ciência 5 e na mídia 1.

Birman 6 chama atenção para o modo como desde o final do século passado o discurso epidemiológico vem adquirindo cada vez mais uma autoridade (no sentido em que a sociologia e filosofia política lhe conferem) e um poder de valor incontestável, cuja qualidade prévia, segundo ele, inexiste e dificilmente é colocada em julgamento. Essa autoridade simbólica universalista auto-referida pela epidemiologia tornou-se emblemática a partir da incorporação da retórica do estilo de vida. Vários autores 1,7 asseveram que ao advogar tal enfoque, a área se afastou de seus pressupostos histórico-epistemológicos (a população e o contexto social do adoecimento) em detrimento da valorização de relativismos individualistas inerentes à emergência de uma nova ordem mundial globalizada, cujo viés economicista tem deslocado paulatinamente as preocupações coletivas da saúde para uma posição marginal, inclusive em muitas agendas de políticas públicas.

A despeito do indiscutível valor heurístico que a epidemiologia (descritiva) acumula até hoje como campo exitoso no enfrentamento de enfermidades humanas ao longo dos tempos, são várias as questões epistêmicas que vão de encontro à epidemiologia dos fatores de risco - mote específico da crítica contemporânea de pesquisadores brasileiros da própria área 1,7.

Tal criticismo também encontra eco em publicações internacionais 8,9 que interpelam o viés conservador e a insuficiência teórico-metodológica de propostas de promoção da saúde subsidiadas por inferências epidemiológicas acerca de comportamentos de risco, pois ao fazê-lo, subvalorizam o contexto macro-econômico e político do seu entorno, bem como as dimensões subjetivas dos determinantes sociais do processo saúde-doença. É flagrante a limitação em apreender a realidade complexa das condições de vida coletiva em países subdesenvolvidos (como o Brasil) através de pesquisas, nas quais o mapeamento individual de estilos de vida está incorporado como aspecto estruturante. Argumenta-se ainda que tais estudos camuflam a influência de cenários sociais desiguais na produção e no cuidado em saúde.

Alguns elementos presentes no artigo de Colares et al. 2 ilustram uma abordagem preferencial quanto ao modo de pensar certas questões sanitárias. Conforme demonstram outros trabalhos 5,10, a renúncia ao rigor filosófico/interpretativo nas análises sobre sedentarismo, tabagismo, consumo de bebidas alcoólicas e obesidade, considerados comportamentos epidêmicos e tratados predominantemente como fruto de "escolhas pessoais equivocadas" (estilos de vida arriscados) tem produzido noções que se limitam às visões do sujeito isolado de sua cultura e de seu potencial de interferência nas agendas públicas. Tais ênfases na ação individual podem, talvez, promover autonomia na forma, embora se mostrem despolitizadoras na essência.

Nessa perspectiva, torna-se crucial relativizar a retórica superlativa da responsabilização pessoal (estratégia subjacente ao fomento de "mudanças de atitude") advogada por investigações epidemiológicas 11 que se preocupam em mapear comportamentos de risco. Sobretudo, porque a utilização desmesurada de interpretações científicas tem gerado reverberações paradigmáticas indesejáveis no cotidiano, conforme elucida o exemplo apresentado por Vaz 12 (p. 120): "É sugestivo que emerjam propostas aqui e ali, como aconteceu na Inglaterra, de não prover assistência pública de saúde para fumantes e obesos. Embora facilmente criticáveis como tentativa de reduzir custos e culpar a vítima, pelo mero fato de serem concebidas, anunciam o nascimento de um novo contrato entre Estado e indivíduos: segurança para quem é prudente e maximiza seu estilo de vida. O resto são os monstros, aqueles que estão aquém da humanidade e da possibilidade de correção".

Os efeitos colaterais dessa ideologia neo-higienista espraiam-se em nossa sociedade informacional pós-moderna como uma espécie de pandemia moralizante 10. Formas institucionais, aparentemente pouco sensatas, de enfrentar os problemas do mundo real (incluindo os da saúde) que se balizam em "recomendações científicas" podem resultar da incapacidade dos atores sociais em interpretar as aporias labirínticas da ciência que, muitas vezes, estabelece as prerrogativas do entendimento apenas aos seus iniciados.

Se o perfil de alguns estudos epidemiológicos fosse redimensionado, incluindo como categorias centrais de análise os níveis de vulnerabilidade social, econômica e cultural, poderiam emergir outras interpretações quanto aos chamados comportamentos de risco, como no caso da pesquisa de Mossakowski 13, ao demonstrar que a pobreza e o desemprego mantidos por longo tempo é que representam fatores de risco para o uso intenso de bebidas alcoólicas, independente de gênero, idade, etnia ou estado civil.

Os mecanismos de gestão individual e coletiva dos riscos que fazem parte de nossa existência já não são mais os mesmos de tempos atrás e relacionam-se às profundas e ambíguas mudanças estruturais pelas quais passa a sociedade contemporânea, na qual a informação científica vem ganhando status de "autoridade auto-instituída". A epidemiologia não pode perder de vista a influência desempenhada por significações, normas e valores sócio-culturais vigentes nessa ambiência concreta em que se insere o próprio pesquisador.

Colaboradores

Ambos os autores desenvolveram e sistematizaram conjuntamente todas as partes do texto.

Recebido em 27/Mar/2009

Aprovado em 20/Jul/2009

  • 1
    Vaz P. Mídia, moralidade e fatores de risco em saúde. Cad Saúde Pública 2009; 25:472-3.
  • 2
    Colares V, Franca C, Gonzalez E. Condutas de saúde entre universitários: diferença entre gêneros. Cad Saúde Pública 2009; 25:521-8.
  • 3
    Ayres JRCM. Sobre o risco: para compreender a epidemiologia. 2ª Ed. São Paulo: Editora Hucitec; 2002.
  • 4
    Douglas M. Risk acceptability according to the social sciences. New York: Russel Sage Foundation; 1985.
  • 5
    Lupton D. Risk as moral danger: the social and political functions of risk discourse in public health. Int J Health Serv 1993; 23:425-35.
  • 6
    Birman J. A clínica, entre saber e poder. Physis (Rio J.) 1997; 7:7-11.
  • 7
    Graciano MMC. Epidemiologia como fenômeno: o pensar e o fazer ciência na perspectiva dos epidemiologistas [Tese de Doutorado]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2003.
  • 8
    Lupton D. Epidemiology as a sociocultural practice. Crit Public Health 1997; 7:28-37.
  • 9
    Eakin J, Robertson A, Poland B, Coburn D, Edwards R. Towards a critical social science perspective on health promotion research. Health Promot Int 1996; 11:157-65.
  • 10
    Campos P, Saguy A, Ernsberguer P, Oliver E, Gaesser G. The epidemiology of overweight and obesity: public health crisis or moral panic? Int J Epidemiol 2006; 35:55-60.
  • 11
    Castiel LD, Álvarez-Dardet C. A saúde persecutória: os limites da responsabilidade. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2007.
  • 12
    Vaz P. Risco e justiça. In: Calomeni TCB, organizador. Michel Foucault: entre o murmúrio e a palavra. Campos: Editora da Faculdade Direito de Campos; 2004. p. 101-31.
  • 13
    Mossakowski KN. Is it duration of poverty and unemployment a risk factor for heavy drinking? Soc Sci Med 2008; 67:947-55.
  • Correspondência:
    M. Bagrichevsky
    Universidade Estadual de Santa Cruz.
    C. P. 139, Ilhéus, BA 45653-970, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Out 2009
    • Data do Fascículo
      Out 2009
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