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Missão prevenir e proteger: condições de vida, trabalho e saúde dos policiais militares do Rio de Janeiro

RESENHAS BOOK REVIEWS

Márcia Esteves de Calazans

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil

MISSÃO PREVENIR E PROTEGER: CONDIÇÕES DE VIDA, TRABALHO E SAÚDE DOS POLICIAIS MILITARES DO RIO DE JANEIRO. Minayo MCS, Souza ER, Constantino P, coordenadoras. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008. 328 pp.

ISBN: 978-85-7541-161-2

O livro de Minayo, Souza & Constantino tem como objeto a questão profissional policial e como esta influencia o conjunto da vida destes trabalhadores, considerando a saúde de policiais militares, a partir das condições de trabalho, a resistência ao desgaste físico e mental, assim como o risco inerente à profissão.

São conceitos fundamentais que orientam o estudo, dedicando-se a estabelecer o quadro teórico que possibilita a operacionalização analítica com vistas a oportunizar, desta forma, a compreensão das lógicas que regulam a construção social do trabalho policial em suas dimensões profissionais.

A obra é um criterioso estudo científico e de grande contribuição para pesquisadores, gestores e operadores das políticas de segurança pública. A riqueza e o rigor metodológico do estudo das autoras apontam para a necessidade de lidarmos com variações que possam estar despercebidas nas análises epidemiológicas na área do trabalho policial e, ainda, leva-nos a refletir sobre as dificuldades e possibilidades de articulação entre epidemiologia e ciências sociais no campo da segurança pública. Sabe-se que a violência é uma questão social e um dispositivo presente no cotidiano do trabalho policial, tornando-o objeto do campo da saúde pelo impacto na qualidade de vida desses trabalhadores e da população e, pela concepção ampliada de saúde, torna-o objeto de intersetorialidade.

O tema ainda mantém-se, de certa forma, circunscrito às ciências sociais e, sem dúvida, observar os esforços para que intersetorialidade faça-se presente e observar e reconhecer os resultados advindos desta leva-nos a falar do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli (CLAVES), junto à Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz, como precursor e referência nos estudos sobre violência, saúde e segurança pública envolvendo diferentes sujeitos, entre outros, os policiais, trabalhadores da área da segurança pública.

Contudo, quando se refere a policiais que compartilham espaços, tempos e representações na e sobre a polícia, deve-se considerar que cada um dos sujeitos está inserido em um determinado contexto e, sobretudo, que este interfere em suas expectativas e percepções.

Nesse sentido, as autoras buscam em eixos, nos conceitos normativos de saúde, risco e segurança, trabalho e qualidade de vida, a interpretação e como se configuram fenômenos, entre outros, a "percepção de risco e risco real" vividos pelos policiais militares e como este fenômeno subjetivo e objetivo, vivido no exercício da profissão, dentro e fora do ambiente de trabalho, faz uma perfeita mediação entre condições de trabalho e condições de vida. Para tanto, as autoras verificam como esses estão presentes tanto nas narrativas dos policiais como nas práticas culturais destes agentes que atuam no Rio de Janeiro, mostrando uma síntese da situação de saúde dos policiais militares e, sempre que possível, comparando-a com a dos policiais civis (neste sentido, ver Minayo & Souza 1) e outras categorias.

A idéia não é tão-somente inventariar conceitos e narrativas, mas sim explicar de que forma combinam as narrativas e representações desses sujeitos trabalhadores da segurança pública, articulando-os a elementos provenientes de outras categorias profissionais da mesma área.

A obra das autoras constitui-se em leitura obrigatória para gestores e operadores da Segurança Pública, pesquisadores, instituições e grupos.

Ao longo de quatro partes e 16 capítulos, é notória a extensa revisão bibliográfica sobre o tema.

Na Parte I, Contextualização, as autoras apresentam as Estratégias de Pesquisa, denominada "triangulação", a qual designa o diálogo entre métodos, técnicas e outros dispositivos observacionais e analíticos, estratégia esta não pioneira nesta pesquisa, mas que já é utilizada pelo grupo em seus inúmeros trabalhos, tendo sido proposta inicialmente por Denzin.

Além da apresentação da riqueza e do rigor metodológico seguidos pelas autoras, a Parte I faz uma aproximação inicial ao tema: examina a formação da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMRJ), o processo de institucionalização desta polícia. Fornece um posicionamento que o mundo social profissional da polícia inclui, além de uma cultura profissional, pois circulam atributos, competências, comportamentos, valores e práticas implicados os espaços múltiplos, atividades e ações diversas. Ainda nessa parte, tem-se um mapa cognitivo do campo de pesquisa, apresentando o perfil sócio-demográfico, profissional e econômico dos policiais militares, construindo assim um breve perfil desses trabalhadores, considerando variáveis de sexo, escolaridade, cor referida, idade, situação conjugal e número de filhos. Os dados aqui apresentados ratificam os que têm sido mostrados nas últimas pesquisas sobre a PMRJ, apontando algumas peculiaridades, como a concentração de mulheres na área administrativa, na atividade meio, e porcentuais mais baixos em relação à média nacional e aos padrões internacionais. Sobretudo, aponta que na atualidade a profissão policial constitui um mercado de trabalho que merece maior dedicação de análises por parte de pesquisadores, até mesmo para definição de políticas de segurança pública, visto que estudos têm apontado para a migração de trabalhadores da indústria, comércio, serviços e saídos da informalidade em busca de estabilidade, segurança, direitos trabalhistas materializados por meio de concurso público em que a segurança pública, mais especificamente a PMRJ, surge como uma possibilidade de controlar o próprio destino e acessar alguns serviços básicos, constituindo-se, portanto, inicialmente, em um tipo de validação social.

A Parte II da obra aborda aspectos que dizem respeito à socialização secundária, a socialização organizacional na qual foram descritas não só as funções e as relações que os policiais desenvolvem em seu cotidiano profissional, desde a capacitação (a preparação para o ingresso), as atividades desenvolvidas visando à análise e à compreensão da dinâmica das exigências profissionais, como também a ação estruturante da identidade profissional expressa principalmente por meio dos discursos dos sujeitos, das observações realizadas no desenvolvimento de suas atividades profissionais, "buscando marcar o que há de peculiar na produção do serviço de segurança pública, focalizando a ideologia, a instituição e a prática da corporação Polícia Militar" (p. 84).

Dando visibilidade à rede em que está inserido o trabalho policial, podemos constatar sua grande complexidade pela ambigüidade que o caracteriza, e que se expressa, especialmente por dois aspectos: em primeiro lugar, está caracterizado pelo modelo taylorista e a dificuldade de propor estratégias mais flexíveis, voltando-se para serviços dada a radicalidade que impõe rigidez e engessamento de suas práticas com base nas relações sociais pautadas pelos círculos e níveis hierárquicos, havendo uma radical separação entre quem manda e quem deve obedecer.

É na formação do Estado Moderno que surge a tendência a subordinar pensamento e ação à praticidade da economia e eficiência. O serviço público infundiu nas outras hierarquias seu planejamento seguro e sua minúcia burocrática, facilitando as práticas dissociativas. Contudo, as autoras apontam que não são apenas os elementos estruturais que efetivam o mapeamento dos modos de agir das polícias, mas, ao confrontarem-se os discursos dos profissionais com um instrumental teórico e metodológico, percebe-se que há, ainda, do prescrito e das suas contradições entre o estabelecido e a prática uma relação histórica com a cultura corporativa.

Trazem a compreensão da identidade profissional que tem como centro a sua contextualização na dinâmica de socialização profissional, a identidade pela profissão construída pela corporação, pela sociedade e pela mídia, discutindo a compreensão da função policial em sua dimensão operacional, como "um espelho de múltiplos reflexos" apontando a complexidade da relação do Estado com a Polícia. E, ainda, observa-se como o reconhecimento é a dimensão fundamental do conceito de identidade e busca refletir: como se reconhecem como profissionais em um momento em que o universo do trabalho policial se apresenta conturbado e em crise na definição de suas atribuições, de suas crenças e valores.

Na Parte III aborda-se as condições de saúde e risco profissional, portanto, observa-se que os valores atribuídos às vivências profissionais ganham outra conotação, transcendem o seu valor instrumental relativo e observa-se, então, as transformações e os itinerários percorridos na polícia, e as alterações nas expectativas iniciais.

Inicialmente, estar inserido em um agrupamento com determinado status, com plano de carreira, "pertencer" a um grupo enquanto categoria profissional com possibilidades de ascensão e pela "segurança" do concurso público foram os motivos impulsionadores para a busca da administração pública.

A estabilidade, a segurança e os direitos trabalhistas, materializados por meio do concurso público como possibilidade de controlar o próprio destino e acessar a determinados serviços, como saúde, educação e outros, com o tempo dão lugar à insatisfação com os serviços que até então conferiram um tipo de validação social, após uma trajetória de extrema vulnerabilidade, pois identifica-se nestes a reprodução da lógica policial-militar, a hierarquia, as relações de poder e beneficiamentos e, ainda, o surgimento das doenças ocupacionais. Inferem o sofrimento e o mal-estar surgido no exercício desta profissão, resultando por vezes em suicídios, e citam Vena & Kelley ao afirmaram que "policiais estão entre as categorias que mais cometem autoviolência".

Os focos de insatisfação transitam desde a falta de qualidade na alimentação, a questão salarial e, ainda, a falta de reconhecimento, a centralidade que o trabalho de caserna impõe à vida pessoal e social, até o sofrimento imposto pela perda de colegas, e como a rotina diária da corporação lida com tais sofrimentos.

A questão do sofrimento mental represado pela corporação, totalmente desconsiderada, ganha corpo e espaço quando esses trabalhadores encontram-se com a metodologia qualitativa da pesquisa, as entrevistas individuais, os grupos focais, em que alguns, ao acessarem um espaço de escuta, demonstram os sofrimentos originários do exercício da profissão.

A obra tem o mérito de elucidar e dar visibilidade a questões importantes referentes ao trabalho policial, aproximando a epidemiologia a ciências sociais. Impõe uma reflexão constante e não é ao acaso que as páginas intituladas conclusões registram inicialmente o fato de as autoras não se sentirem confortáveis em considerar como mais acertadas as afirmações ali expressas, sugerindo apontá-las enquanto sínteses fundamentais na perspectiva dos próprios policiais, trianguladas com leituras nacionais e internacionais sobre a categoria. As autoras pontuam necessidades prementes de mudança na organização do trabalho policial e das políticas de segurança pública, mas, sobretudo, há um convite permanente ao longo da obra para que o leitor faça suas reflexões e conclusões. Com isso, ao término do livro, retomam destacando os três eixos centrais que pautaram a pesquisa: condições de trabalho, condições de saúde e qualidade de vida.

É um livro denso, impõe reflexões e leva-nos ao reconhecimento do pressuposto de que, nos espaços urbanos, aqui em específico da cidade do Rio de Janeiro, no que tange à Segurança Pública, tende a existir inúmeras variáveis que operam na mediação dos eixos e nos conceitos normativos trabalhados pelas autoras, apontando que tem-se tornado um empreendimento cada vez mais problemático "ser policial militar". Como prioridade para o policiamento repressivo encontra-se o discurso político brasileiro pautado pela "guerra contra o crime", o que remete ao enfrentamento armado entre as forças policiais e os "agentes do crime", enquanto a analogia militar e a metáfora da "guerra contra o crime" trazem para o trabalho policial a idéia das virtudes militares, reforçando o apoio do público para com a polícia. Porém, os resultados da pesquisa publicada evidenciam que as conseqüências de envolver a polícia com a retórica estabeleceram uma série de problemas, para ambos os lados.

Ao longo da leitura, pode-se afirmar que, no cenário atual da Segurança Pública, a idéia de guerra contra o crime como assertiva macrossocial está implicada não somente nos prejuízos causados à população, mas também na construção da identidade profissional de policiais militares, em suas condições de saúde, segurança e trabalho, e em suas percepções de risco e risco real.

Cabe lembrar que, no Brasil, as polícias militares são as forças policiais de maior expressão numérica - correspondendo a 70% dos agentes policiais no sistema de segurança. Por outro lado, é a polícia que mais mata. Em Letalidade da Ação Policial no Rio de Janeiro 2 foi demonstrado, com base na análise de dados do Instituto Médico Legal, que os corpos de vítimas de ação policial apresentavam, em aproximadamente 50% dos casos, quatro ou mais perfurações a bala, com tiros dados pelas costas ou na cabeça, indicando a intenção de abater e não a de paralisar.

Se por um lado é a polícia que mais mata, a obra de Minayo, Souza & Constantino mostra que esses servidores apresentam elevado grau de sofrimento no desempenho profissional, pautado em parte pela crescente violência na/da sua atividade profissional, e também pela falta de reconhecimento social. O conceito negativo emitido sobre eles pelas várias camadas sociais está entranhado na cultura. Além disso, legitima e naturaliza a violência que os vitima, muito mais que a qualquer profissional durante a jornada de trabalho ou nos tempos de folga, quando aumentam as ocorrências de lesões e traumas de que são vítimas por ocorrências, envolvendo a atividade policial no chamado bico (bico é uma atividade de segurança desenvolvida fora do horário de trabalho e considerada ilegal. Quando um policial morre no chamado bico, a família fica desamparada visto que tal prática é proibida por lei).

A pesquisa realizada por Minayo, Souza & Constantino no início dos anos 2000 demonstra que a PMRJ é o agrupamento de policiais que mais sofre agressões, apresentando taxas de mortalidade e de morbidade elevadas. Esse privilégio negativo, apontam as autoras, pode ser constatado, comparativamente, com dados sobre a mortalidade ocorrida no ano 2000, no Brasil, quando a taxa de mortalidade por homicídio na população geral foi de 26,7 por 100 mil habitantes e de 49,7 em relação à população masculina. Na capital do Rio de Janeiro, os dados são mais elevados: 49,5 por 100 mil na população geral e 97,6 por 100 mil na população masculina.

Na Polícia Militar, em 2000, a taxa de mortalidade por agressões chegou a 356,23 por 100 mil. Na Polícia Civil, essa taxa, considerando-se todas as causas no mesmo ano, foi de 206,80 por 100 mil. Comparativamente, portanto, a Polícia Militar apresenta taxas de mortalidade por violência 3,65 vezes maiores que as da população masculina da cidade do Rio de Janeiro, e 7,2 vezes as da população geral da referida cidade. Ao se fazer um cotejo com as taxas do Brasil, são 7,17 vezes as da população masculina e 13,34 vezes as da população geral. O risco de morte entre policiais militares é também maior que entre os agentes dos outros órgãos de segurança: chega a ser 6,44 vezes o da Guarda Municipal e 1,72 em relação à Polícia Civil.

Nesse sentido, a obra produz informações estratégicas visando a subsidiar ações dos profissionais da corporação e de seus gestores para adequar a corporação às necessidades atuais da segurança pública. Sobretudo porque sendo essa a polícia que mais mata também é a que mais morre como demonstraram as autoras, fatos esses que por si só evidenciam uma política de segurança equivocada.

Ainda faz-nos refletir que a estratégia de combate à criminalidade que aposta no confronto, fracassou, pois os princípios da política de segurança pública pautados por este não se encontram com os princípios da segurança humana, convertem-se em mortes anunciadas: da população civil e desses servidores públicos.

  • 1. Minayo MCS, Souza ER, organizadoras. Missão investigar: entre o ideal e a realidade de ser policial. Rio de Janeiro: Editora Garamond; 2003.
  • 2. Cano I. Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto de Estudos da Religião; 1997.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Fev 2010
  • Data do Fascículo
    Jan 2010
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