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O veludo, o vidro e o plástico: desigualdade e diversidade na metrópole

RESENHAS BOOK REVIEWS

Martinho Braga Batista e Silva

Fiocruz-Brasília, Brasília, Brasil. Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. silmartinho@gmail.com

O VELUDO, O VIDRO E O PLÁSTICO: DESIGUALDADE E DIVERSIDADE NA METRÓPOLE. Baptista LA. Niterói: EdUFF; 2009. 124p.

ISBN: 978-85-228-0521-5

Este livro de Luis Antonio Baptista, O Veludo, o Vidro e o Plástico: Desigualdade e Diversidade na Metrópole, editado pela EdUFF em 2009, apresenta os resultados de uma pesquisa sobre a desinstitucionalização italiana, famosa entre os militantes da luta antimanicomial no Brasil e símbolo de um processo de reforma psiquiátrica considerado muito bem sucedido no mundo inteiro. Logo no Prólogo, sabe-se que o estudo teve como base o "dia a dia" do autor com egressos de internação psiquiátrica, e no Prefácio somos informados de que pelo menos duas cidades italianas foram visitadas, Ímola e Roma. Em O Prenúncio dos Objetos, percebe-se que Roma é onde acontecem as três principais cenas urbanas descritas, entre elas a da paciente psiquiátrica deixando a garrafa de cerveja cair dentro do ônibus. No segundo ensaio, O Vidro, sabemos que o pesquisador conviveu com pelo menos nove "homens e mulheres diagnosticados como crônicos", em Ímola, notando que mesmo "30 ou 40 anos de internação não os fazem desistir de explorar novos territórios". Mas é no primeiro ensaio, O Veludo, que conhecemos mais acerca da relação entre espaço e subjetividade, premissa da investigação, cujo marco é a "cidade oitocentista", "insensível, desumana, necessitada de cuidados à luz da razão", do mesmo modo que as "metrópoles do veludo", nas quais "o lar fornece o refúgio dos interiores".

Logo em O Prenúncio dos Objetos, percebe-se que abordagem deste dia a dia torna-o um cotidiano no sentido que M. de Certeau - citado pelo autor - dá ao conceito: o inverso da rotina, algo cercado de embates e lutas coletivas, muitas vezes imerso em tramas tão atordoantes quanto estimulantes, nunca tranquilizadoras. Assim, a narrativa de uma "ruiva equilibrista" entrando no ônibus com uma garrafa de cerveja se destaca, "crônicas inconclusas" ocupando espaço quando a queda de sua "bolsa surrada" revela seus segredos aos demais passageiros, os "remédios psiquiátricos". A cena urbana descrita faz alusão à formulação foucaultiana sobre a relação entre loucura e obra: "Ela pega a garrafa, bebe o restante e inicia um discurso incompreensível; embora previsível para os silenciosos passageiros, não o era para a ruiva equilibrista. O discurso inevitável, decretado pela receita psiquiátrica, é apenas uma parte. Frases fortes, caóticas, emitidas da boca molhada, manchada de batom, preenchem o ônibus de incômodo. Pedaços de capítulos da sua obra fragmentada invadem o [ônibus] 409; suplicam por coautores, final mesmo que provisório. Compaixão ou tolerância são recusadas com energia pela contração das rugas da ruiva italiana. Terminar uma obra parece ser o seu desesperado intuito".

Os resultados desta pesquisa de pós-doutoramento também dizem respeito à própria abordagem dada aos materiais recolhidos durante o ano de estadia na Itália, entre os espaços públicos e domésticos de Roma, entre o táxi que passa pelo bairro de EUR, o ônibus que atravessa a praça Fiume e a faxina na residência do estrangeiro. Ou entre o veludo da saia que o travesti brasileiro veste nas noites geladas do bairro de EUR, o vidro da garrafa de cerveja que a paciente psiquiátrica deixa cair no ônibus durante o calor da tarde de julho e o plástico do saco de lixo utilizado pelo imigrante peruano na residência. O próprio modo pelo qual o autor descreve e analisa a "vida social dos ex-pacientes psiquiátricos" - transitando entre os hospícios Lolli e Osservanza em Ímola e as casas - aponta alguns dos "desafios políticos advindos da presença desses agora cidadãos no cotidiano urbano", fazendo que ganhem relevo as "práticas de poder sobre a diferença nas metrópoles do capitalismo contemporâneo".

Uma das contribuições do livro é ressaltar não só as práticas de poder voltadas para egressos de internação psiquiátrica, mas também para "outros grupos (...) imigrantes, negros, homossexuais". A maneira pela qual se lida com aqueles que saem do hospício na metrópole, como outras maneiras de lidar com a alteridade, depende das transformações no capitalismo e das articulações entre política e subjetividade que daí advêm. Se já sabíamos com Foucault - também citado pelo autor - que a doença mental é uma cristalização histórica do fenômeno da loucura, às vezes sedimentado em desatino e mesmo errância, dependendo das épocas e dos lugares, verifica-se que o modo pelo qual se lida com a diferença na cidade também é um assunto com que a abordagem psicossocial do sofrimento humano deve dialogar.

O veludo, o vidro e o plástico comparecem como "alegorias": o primeiro como alusão ao empenho da burguesia "de ser compensada pela falta de rastros da vida privada na cidade grande"; o segundo, ao "olhar que desfaz as asperezas"; e o terceiro, ao que se considera "descartável". Em O Veludo, somos convocados a viver o "desassossego" em contraste com a promessa de "segurança" nas metrópoles do capitalismo durante o diálogo do "nós nervoso": "São imagens urbanas perturbadoras, metamorfoses impedidoras de repouso ou distração". Em O Vidro, as "contingências e inconstâncias" prenunciadas pelos cheiros e barulhos da cidade "porosa e rugosa" desfazem a expectativa de "formas ideais, propagando civismo e introspecção" daquelas cidades tão "planas e lisas" quanto "eternas e mudas", interpelando o monólogo do "nós dos iguais": "Dissolvendo familiaridades e relativizações culturais, explode a continuidade da história a alimentar-se do esquecimento dos restos, detritos, raspas, com suas formas singulares de impertinências". Em O Plástico, o autor sintetiza os dois outros ensaios: enquanto o monólogo do "nós dos iguais" é "soprado pelo vento do mercado de capitalismo fluido" e faz o faxineiro virar peruano, o diálogo do "nós nervoso" é uma fúria que "interfere na história da América do Sul e na do resto do mundo, transformando-as na imensidão inconclusa de formas e de vozes".

Os "modos antagônicos de contar histórias dos velhos hospícios", com seus "relatos de vitórias triunfais e rotundos fracassos" são colocados em cheque pela perspectiva teórico-metodológica adotada pelo autor, mais atenta ao uso de utensílios domésticos e outros "gestos corriqueiros" dos "moradores da cidadela dos homens sem corpo", sublinhando o alarido das cartas e questionando o silêncio das fotos pregadas aos prontuários médicos: "Tagarelas, [as vozes] despistam sinais de reconhecimento, sujam ideais, saem do lugar predestinado a ser delas. O barulho daquelas folhas amareladas indica que a história da psiquiatria poderia ser contada de outra maneira, feita por protagonistas ocultos a desviar a retidão de um rumo sempre em frente.". Assim, outra contribuição do livro diz respeito ao redesenho da abordagem foucaultiana da história da loucura, levando em conta, sobretudo, a contribuição de W. Benjamim e seu modo de pensar "literariamente e cinematograficamente": mais do que outras ciências sociais que também estudam o cotidiano de egressos de internação psiquiátrica, como a antropologia e a sociologia, é com a história que o "vigor político da alteridade na construção de um mundo por vir" pode ser colocado em destaque, sem deixar de considerar que "a cidade acolhia-os".

Esta mesma abordagem implica também grandes desafios para a leitura do livro, particularmente para os que aguardam uma apresentação de resultados de pesquisa do tipo clássico, com introdução, métodos, resultados, discussão e conclusão. Personagens, imagens, gostos e cheiros povoam as descrições e análises da vida social no espaço urbano, provocando no leitor uma sensação que talvez seja a expectativa do autor: a inquietação por ter sido interpelado por uma imagem difusa e pouco exata, mas plena de uma "potência desacomodadora".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2011
  • Data do Fascículo
    Out 2011
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