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Das loucuras da razão ao sexo dos anjos: biopolítica, hiperprevenção, produtividade científica

RESENHAS BOOK REVIEWS

Marcelo de Abreu Maciel

Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, Brasil.

O que pode a capa e o título de um livro? Sempre acreditei que capas e títulos de livros deveriam estar em total consonância com a escrita que se seguiria a partir do momento que ultrapassássemos as primeiras páginas. É como se através do título e da capa, aquela história que o livro trará, já começasse a ser contada. Este é o caso de Das Loucuras da Razão ao Sexo dos Anjos: Biopolítica, Hiperprevenção, Produtividade Científica. Não bastasse o título extremamente provocativo e criativo, a capa já nos leva a certa curiosidade: o que sairá de dentro daquela cartola? Que mágicas e truques serão possíveis? Analisando ainda esta capa, o leitor encontrará um subtítulo: biopolítica, hiperprevenção e produtividade científica. Três temas no mínimo densos, tensos e que exigem fôlego no seu tratamento. Mas, surpreendentemente, o livro de Castiel, Sanz-Valero e Vasconcellos-Silva, segue no mesmo tom anunciado por entre cartolas: a possibilidade de tratar de questões tão importantes com uma condução inovadora, consistente e que nos convida à possibilidade de pensar e problematizar questões ligadas ao campo da saúde e suas políticas, sejam elas públicas, internacionais, elaboradas por institutos de pesquisas ou ordenadas em protocolos.

A leitura de Das Loucuras da Razão ao Sexo dos Anjos: Biopolítica, Hiperprevenção, Produtividade Científica é um exercício de resistência no seu sentido político. É um livro que nos ajuda a criar ferramentas para interpelar, questionar um certo estado atual do mundo, das instituições e da produção de conhecimento. Os autores mostram "como se constitui a excessiva normatividade prevencionista no âmbito sanitário e, em particular, no âmbito da promoção de saúde, diante das ameaças catastróficas atuais tanto no nível coletivo como individual" (p. 19). O livro percorre uma trajetória que não só põe em análise a lógica das produções das ações em saúde e a máxima insegurança alardeada na atualidade, mas, também, toca no lugar sagrado da produção de conhecimento feita pelo mundo acadêmico-científico que, não raramente, despeja sobre a rede social informações oriundas de pesquisas e estudos no campo da biologia, neurociências e ciências comportamentais de todas as ordens.

Logo no prólogo, Loucuras da Razão, os autores enveredam por um caminho de análise no mínimo surpreendente: a história do matemático Charles Lutwidge Dodgson, ou, mais conhecido por todos nós, Lewis Carrol. Através da obra de Carrol e o fantástico mundo do Chapeleiro Maluco - personagem que nos lança num mundo que nos faz pensar e sentir de outra forma - os autores apresentam o que eles estão nomeando de as loucuras da razão, numa sociedade que cada vez mais visa o controle e o cálculo dos riscos, a segurança e o banimento de tudo aquilo que possa produzir incertezas que nos levem ao encontro do exercício do pensamento. Pensamento aqui no sentido que Deleuze 1 (p. 106) dá ao comentar o conjunto da obra de Foucault, apontando para algo que "assemelha-se mais a uma cadeia vulcânica do que a um sistema tranquilo e próximo do equilíbrio".

Foucault é um autor importante no percurso dos autores através do conceito de Biopolítica. No importante texto A Vontade de Saber, o primeiro volume de sua História da Sexualidade, Foucault nos mostra como o poder vem se deslocando em sua relação com a vida. Afirma ele que "é sobre a vida e ao longo de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação" 2 (p. 151). Já não será mais necessário causar a morte, mas sim, "causar a vida", como aponta o filósofo francês. Um outdoor na rua anunciava uma propaganda de um plano de saúde: "vá cuidar da sua vida que da sua saúde cuidamos nós". A reflexão de Castiel, Sanz-Valero e Vasconcellos-Silva, propõe o conceito de epidemiopoder para apontar que "na atualidade é a normatividade de base epidemiológica que rege os preceitos e recomendações que pretendem disciplinar as populações humanas nos discursos de promoção da saúde centrada no comportamento saudável" (p. 77).

A partir de estudos que discutem as relações existentes entre risco, prevenção, tecnociências e sociedade, o trabalho mostra que o efeito de tudo isso é uma sociedade que cada vez mais pede controle, solicita segurança e gera "ambientes afetados por elevação da sensação de risco" (p. 34). Esta sensação está totalmente presente nas grandes cidades atualmente. Os autores mostram como a palavra blindagem virou uma espécie de metáfora para diversas situações que não mais automotivas, estando associada cada vez mais a situações também comportamentais dentro de uma lógica "sintomática imunitária".

Em O País Destorcido 3, o geógrafo Milton Santos apresenta dois textos: Quem Tem Medo das Grandes Cidades? e Ter Medo de Quem na Cidade Grande. Em ambos os textos, Santos trabalha com a ideia de que atacamos as cidades, produzimos todas as formas de mazelas e depois nos fechamos para que estas mesmas cidades não nos atinjam. Temos medo daqueles para quem as políticas públicas foram (e são) mais precárias. Temos medo dos pobres, dos andarilhos urbanos que vivem pelas ruas, como "já tivemos" dos loucos, dos leprosos ou dos tísicos. Crianças de determinados estratos sociais nunca circularam pela cidade ou olharam para ela pela janela de um ônibus ou por entre suas ruas nem sempre confortáveis, limpas e tranquilas. Ou seja, inoculamos a noção de risco desde a infância. Como dizem ou autores ela cruza-se com nossa subjetividade. Hospedamos esta lógica da hiperprevenção em nossa subjetividade, em nossos corpos.

Além de toda importância desta discussão na atualidade, o livro em questão é montado de uma forma que por entre o material de pesquisa e da leitura acadêmica, encontramos matérias jornalísticas, uma filmografia que vale a pena ser vista ou revista e histórias das mais diversas que circularam na mídia. Neste livro, esta não é uma estratégia para tornar a leitura mais leve, mas mostra muito claramente como os autores foram capazes de perceber seu tema de estudo para além dos muros acadêmicos. Deslocaram seu olhar para outros lugares e trouxeram informações muito pertinentes ao tema em questão. Portanto, mais uma vez, podemos afirmar que a leitura de um texto que sai dos espaços da pesquisa científica não precisa se árida ou desarticulada de informações literárias, artísticas, musicais etc.

Ao final do texto, os autores apontam para uma necessidade de encontrarmos outros espaços de luta, de resistência, buscando a fabricação de dispositivos que nos permitam questionar o que está aí instituído como verdade dentro das práticas tecnocientíficas ligadas ao campo da saúde. Sendo assim, acredito que Das Loucuras da Razão ao Sexo dos Anjos: Biopolítica, Hiperprevenção, Produtividade Científica, já se constitui num dispositivo de luta, uma escritura, uma conversa que nos desacomoda e que nos faz olhar para o cotidiano de uma outra forma. Enfim, o livro nos convida a seguir Alice por suas viagens. Sem medo dos deslocamentos e outros olhares que isso possa operar.

  • 1. Deleuze G. Conversações. São Paulo: Editora 34; 1992.
  • 2. Foucault M. História da sexualidade - a vontade de saber. São Paulo: Edições Graal; 1988.
  • 3. Santos M. O país distorcido. São Paulo: Publifolha; 2002.
  • DAS LOUCURAS DA RAZÃO AO SEXO DOS ANJOS: BIOPOLÍTICA, HIPERPREVENÇÃO, PRODUTIVIDADE CIENTÍFICA. Castiel LD, Sanz-Valero J, Vasconcellos-Silva PR. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011. 188 pp.

    ISBN: 978-85-7541-214-5
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012
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