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Perfil epidemiológico dos atendimentos de emergência por lesões bucodentais decorrentes de causas externas, Brasil, 2006 e 2007

Epidemiological profile of emergency care for dental and oral injuries in Brazil, 2006-2007

Resumos

As lesões por causas externas (acidentes e violências) ocupam lugar de destaque no cenário epidemiológico atual. A região da cabeça e face corresponde a um dos principais sítios de lesões por causas externas, principalmente as lesões bucodentais. Este artigo tem como objetivo apresentar o perfil epidemiológico dos atendimentos de emergência por lesões bucodentais decorrentes de causas externas. Utilizaram-se dados do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) nos anos 2006 e 2007. Registraram-se 106.075 atendimentos de emergência por causas externas, dos quais 939 (~1%) apresentavam lesões bucodentais. Predominaram os homens (65,5%), crianças < 10 anos (44,3%), pessoas de cor de pele negra (66%) e com baixo nível de escolaridade (45,9%). Os locais de maior ocorrência foram residência (48,3%) e via pública (30%). Predominaram lesões do tipo corte/perfuração (63,3%), atendimentos por quedas (43%), acidentes de transporte (19,9%) e agressão física (13%).

Traumatismos Dentários; Causas Externas; Violência; Acidentes; Saúde Bucal


Injuries resulting from accidents and violence occupy a key place in the current epidemiological scenario. The head and face are one of the main sites of lesions from external causes, especially dental and oral injuries. This article aims to present the epidemiological profile of emergency care for dental and oral lesions from external causes. The study used data from the Surveillance System for Violence and Accidents (VIVA) for the years 2006 and 2007. There were a total of 106,075 emergency visits involving external causes, of which 939 (~1%) presented dental and oral lesions. There were a majority or large proportions of males (65.5%), children < 10 years (44.3%), black individuals (66%), and individuals with low schooling (45.9%). High proportions of the injuries occurred at home (48.3%) or on public byways (30%). Frequent characteristics were cuts or puncture wounds (63.3%) and lesions resulting from falls (43%), traffic accidents (19.9%), and physical assault (13%).

Tooth Injuries; External Causes; Violence; Accidents; Oral Health


ARTIGO ARTICLE

Perfil epidemiológico dos atendimentos de emergência por lesões bucodentais decorrentes de causas externas, Brasil, 2006 e 2007

Epidemiological profile of emergency care for dental and oral injuries in Brazil, 2006-2007

Marcio Denis Medeiros MascarenhasI, II; Marta Maria Alves da SilvaI, III; Deborah Carvalho MaltaI, IV; Lenildo de MouraI; Paulo Sávio Angeiras de GoesV; Simone Tetu MoysésVI; Otaliba Libânio de Morais NetoI, III

ISecretaria de Vigilância em Saúde, Ministério da Saúde, Brasília, Brasil

IIUniversidade Federal do Piauí, Teresina, Brasil

IIIUniversidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil

IVUniversidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil

VDepartamento de Odontologia Clínica e Preventiva, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, Brasil

VICentro de Ciências Biológicas e da Saúde, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, Brasil

Correspondência Correspondência: M. D. M. Mascarenhas Coordenação Geral de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis Secretaria de Vigilância em Saúde Ministério da Saúde SAF Sul, Trecho 02, Lotes 05 e 06, Bloco F, Torre I, Edifício Premium Brasília, DF 70070-600, Brasil mdm.mascarenhas@gmail.com

RESUMO

As lesões por causas externas (acidentes e violências) ocupam lugar de destaque no cenário epidemiológico atual. A região da cabeça e face corresponde a um dos principais sítios de lesões por causas externas, principalmente as lesões bucodentais. Este artigo tem como objetivo apresentar o perfil epidemiológico dos atendimentos de emergência por lesões bucodentais decorrentes de causas externas. Utilizaram-se dados do Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA) nos anos 2006 e 2007. Registraram-se 106.075 atendimentos de emergência por causas externas, dos quais 939 (~1%) apresentavam lesões bucodentais. Predominaram os homens (65,5%), crianças < 10 anos (44,3%), pessoas de cor de pele negra (66%) e com baixo nível de escolaridade (45,9%). Os locais de maior ocorrência foram residência (48,3%) e via pública (30%). Predominaram lesões do tipo corte/perfuração (63,3%), atendimentos por quedas (43%), acidentes de transporte (19,9%) e agressão física (13%).

Traumatismos Dentários; Causas Externas; Violência; Acidentes; Saúde Bucal

ABSTRACT

Injuries resulting from accidents and violence occupy a key place in the current epidemiological scenario. The head and face are one of the main sites of lesions from external causes, especially dental and oral injuries. This article aims to present the epidemiological profile of emergency care for dental and oral lesions from external causes. The study used data from the Surveillance System for Violence and Accidents (VIVA) for the years 2006 and 2007. There were a total of 106,075 emergency visits involving external causes, of which 939 (~1%) presented dental and oral lesions. There were a majority or large proportions of males (65.5%), children < 10 years (44.3%), black individuals (66%), and individuals with low schooling (45.9%). High proportions of the injuries occurred at home (48.3%) or on public byways (30%). Frequent characteristics were cuts or puncture wounds (63.3%) and lesions resulting from falls (43%), traffic accidents (19.9%), and physical assault (13%).

Tooth Injuries; External Causes; Violence; Accidents; Oral Health

Introdução

As causas externas (acidentes e violências) de morbimortalidade vêm apresentando grande importância na Saúde Pública, haja vista sua magnitude e impacto na vida das pessoas, especialmente nos países em desenvolvimento 1,2,3. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), os fatores externos constituem a principal causa da perda de anos de vida em dois terços das nações americanas, e os acidentes de transporte, homicídios e suicídios figuram entre as cinco principais causas de mortes prematuras 4.

No Brasil, a taxa de mortalidade (TM) por esses eventos apresenta-se alta e crescente desde a década de 1980 5, o que demonstra a importância do problema para o país 6. Em 2007, foram registradas 131.032 mortes por causas externas, das quais 47.707 (36,4%) decorreram de homicídios (TM = 25,2/100.000 habitantes) e 38.419 (29,3%) resultaram de acidentes de transporte (TM = 20,3/100.000 habitantes) (Ministério da Saúde. http://www.datasus.gov.br, acessado em 15/Out/2010).

Os danos causados por acidentes e violências correspondem a altos custos emocionais, sociais, com aparatos de segurança pública e, principalmente, gastos com assistência à saúde. Logo, conhecer a magnitude desses eventos é pré-requisito para a formulação de programas de promoção e de prevenção apresentados pelo setor Saúde 2,3,7. No Brasil, a vigilância e o monitoramento de acidentes e violências são realizados com base em um fluxo sistemático de dados primários e secundários, cujas principais fontes são os sistemas de informação sobre mortalidade e internações hospitalares, além de boletins de ocorrência policial, comunicação de acidente de trabalho, informações tóxico-farmacológicas e inquéritos de saúde periódicos e especiais 7,8.

Em virtude da dificuldade de se obterem dados de morbidade no que se refere às lesões de menor gravidade, que não implicam mortes ou internações, mas que apresentam um grande impacto na demanda por atendimentos de urgência, o Ministério da Saúde implantou, em 2006, o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes (VIVA). Trata-se de uma modalidade de vigilância epidemiológica, estruturada em dois componentes: (1) vigilância das violências doméstica, sexual e/ou outras violências interpessoais, que considera as exigências legais de notificação da violência contra criança, adolescente, mulher e idoso; (2) vigilância, em emergências hospitalares, de violências e acidentes, que visa a caracterizar os atendimentos de urgência decorrentes de causas externas 9.

As primeiras análises dos dados obtidos no VIVA revelaram que a região da cabeça e face corresponde a um dos principais sítios de lesões por causas externas, dentre elas o trauma bucodental. Ao contrário do que ocorre com outras patologias bucais, como cárie e doenças periodontais, ainda existe deficiência de informações sobre lesões traumáticas envolvendo a região da boca e dentes em diversas partes do mundo, principalmente nos países em desenvolvimento 10. Por outro lado, a relação entre a ocorrência destes agravos com determinantes socioambientais, incluindo violência e acidentes em espaços urbanos, tem sido explorada em estudos no Brasil e em outros países 11,12.

Diante do exposto, propõe-se descrever o perfil epidemiológico dos atendimentos de emergência por lesões bucodentais decorrentes das causas externas nos municípios vinculados ao VIVA, em 2006 e 2007.

Métodos

Trata-se de estudo descritivo, contemplando dados da Pesquisa sobre Violências e Acidentes em Unidades de Urgência e Emergência, que constitui um dos componentes do VIVA. A pesquisa foi realizada consecutivamente nos anos de 2006 e 2007, abrangendo o Distrito Federal e municípios que atenderam aos seguintes critérios de inclusão para implantação do referido sistema de vigilância: elevadas taxas de morbimortalidade por causas externas a partir de análise realizada pelo Ministério da Saúde; oferta de assistência médico-hospitalar para vítimas de acidentes e violências; equipe de profissionais capacitados e estrutura física para implantar a vigilância de violência e acidentes em serviços de urgência; desenvolvimento de ações intersetoriais de prevenção das violências e acidentes 9.

Foram entrevistadas as vítimas de violências e acidentes (ou seus acompanhantes) atendidas nos serviços de urgência e emergência credenciados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), durante 30 dias consecutivos, em plantões de 12 horas, entre os meses de setembro e novembro de 2006 (65 serviços em 34 municípios e Distrito Federal) e de 2007 (84 serviços em 36 municípios e Distrito Federal). Os sujeitos foram incluídos por amostragem intencional, conforme a demanda por atendimento durante o período de coleta de dados em cada serviço selecionado.

Os dados foram coletados por meio de formulário padronizado pelo Ministério da Saúde, cujas variáveis encontravam-se distribuídas nos seguintes blocos: dados da pessoa atendida (nome, idade, sexo, raça/cor da pele, escolaridade), dados da ocorrência (intencionalidade, tipo de ocorrência, local e hora de ocorrência, percepção do entrevistador sobre uso de bebida alcoólica pela vítima), tipo de acidentes (acidentes de transporte, queda, queimaduras, outros), tipo de violência (agressões, maus-tratos, suicídio), natureza da lesão, parte do corpo atingida e evolução dos casos (alta, hospitalização, óbito).

As entrevistas foram realizadas por acadêmicos de Enfermagem e Medicina, previamente treinados por técnicos (coordenadores locais) das secretarias de saúde dos municípios selecionados; os técnicos, por sua vez, participaram de treinamento ministrado pela equipe de coordenadores nacionais na sede do Ministério da Saúde. O número de entrevistadores variou conforme o perfil de demanda por atendimento nos serviços incluídos. Foi disponibilizado material instrucional a todos os entrevistadores, que eram acompanhados por supervisores de campo.

Os entrevistadores identificavam os pacientes admitidos no setor de emergência em decorrência de causas externas (acidente e violências) e iniciavam a abordagem da vítima ou acompanhante (quando o paciente era menor ou encontrava-se impossibilitado de responder) para solicitar autorização e iniciar a entrevista.

Os dados pertinentes aos formulários preenchidos pelos entrevistadores foram digitados no Setor de Vigilância Epidemiológica de cada município participante da pesquisa e transferidos para o Ministério da Saúde via Internet. Após a consolidação do banco de dados nacional, foi realizada a etapa de identificação e exclusão de registros duplicados, utilizando-se o programa Link Plus (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos). As etapas de digitação e análise de dados foram executadas no pacote estatístico Epi Info 3.5.1 (Centers for Disease Control and Prevention, Atlanta, Estados Unidos).

Os eventos registrados foram classificados, segundo a intencionalidade, em dois grupos: acidentes e violências. Acidente foi definido como "evento não intencional e evitável, causador de lesões físicas e emocionais, no âmbito doméstico ou social, como trabalho, escola, esporte e lazer" 13. Incluíram-se neste grupo os acidentes de transporte, quedas, queimaduras, cortes, queda de objetos sobre a pessoa, envenenamento, sufocação, afogamento, entre outros. Considerou-se como violência "o uso da força contra um grupo ou uma comunidade, o qual resulte ou tenha qualquer possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação" 3 (p. 8). Sob essa denominação, incluíram-se as agressões/maus-tratos e tentativas de suicídio.

Para os fins do presente estudo, foram selecionados apenas os registros de atendimentos de emergência por acidentes e violências cuja lesão principal tenha afetado a região da boca ou dentes. Os dados foram analisados mediante estatística descritiva (distribuição de frequências), segundo sexo, faixa etária (0-9 anos, 10-19 anos, 20-39 anos, 40-59 anos, 60 e mais anos), raça/cor da pele (negra, branca, outra), escolaridade (em anos de estudos concluídos), suspeita de ingestão de bebida alcoólica, local de ocorrência, evolução (alta, internação, evasão, óbito), natureza da lesão, tipo de ocorrência (acidentes, violência).

O projeto de pesquisa foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do Ministério da Saúde, por meio do Parecer n°. 286/2007. Considerando as recomendações da CONEP e por se tratar de ação rotineira de vigilância epidemiológica (notificação de agravos de importância em Saúde Pública), a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido foi substituída por consentimento verbal do paciente ou responsável. Garantiu-se anonimato e privacidade aos pacientes, profissionais e gestores dos serviços onde a pesquisa foi realizada, assim como a liberdade em desistir de participar da entrevista a qualquer momento, sem prejuízo de qualquer natureza para si próprio ou familiares.

Resultados

Em 2006 e 2007, foram registrados 106.075 atendimentos de emergência por causas externas, dos quais 939 (~1%) apresentavam lesões bucodentais. Destes, 811 (86,4%) atendimentos foram decorrentes de eventos acidentais e 128 (13,6%), resultantes de violência.

A Tabela 1 apresenta as características das vítimas de causas externas que apresentaram lesões bucodentais. Ocorreu maior proporção de atendimentos de vítimas do sexo masculino (65,5%), variando de 64,5% nos acidentes a 71,9% nas violências. Com relação à faixa etária das vítimas, as maiores proporções de atendimentos foram observadas entre as crianças (< 10 anos) e adultos jovens (20-39 anos). Entre as vítimas de acidentes, as crianças (< 10 anos) representaram 50,4% dos atendimentos, seguidas por adultos de 20 a 39 anos (21,7%). Para as vítimas de violências, as pessoas na faixa de 20 a 39 anos responderam por 57,5% dos atendimentos, acompanhadas pelos jovens de 10 a 19 anos (23,6%) (Tabela 1).

Com relação à raça/cor da pele, os negros (pardos e pretos) representaram 66% dos atendimentos, seguidos dos brancos (32,7%). A proporção de pessoas negras foi maior entre os atendimentos por violência em comparação aos atendimentos por acidentes. Aproximadamente 46% das vítimas informaram ter cursado até oito anos de estudo (Ensino Fundamental) e 19,9% referiram ter concluído de 9-11 anos de estudo (Ensino Médio); as menores proporções foram constituídas pelos que cursaram o Ensino Superior (3,4%). Aproximadamente 31% das pessoas atendidas não tinham idade ou capacidade mental para frequentar a escola, os quais foram classificados na categoria "não se aplica". A baixa escolaridade (0-8 anos de estudo) foi observada em maior proporção entre os atendimentos decorrentes de violência (61%) do que entre os atendimentos por acidentes (43,5%) (Tabela 1).

Houve referência à suspeita de ingestão de bebidas alcoólicas em 10% dos atendimentos de emergência com lesões bucodentais. Esta proporção variou segundo o tipo de ocorrência, sendo maior entre os atendimentos por causas violentas (34,4%), em proporção mais de cinco vezes superior à observada entre as vítimas de acidentes (6,2%). A ocorrência de acidentes e violências que originaram lesões bucodentais foi mais comum nos espaços domiciliares (48,3%) e públicos (30%). Porém, percebeu-se maior proporção de acidentes em residências (51,6%), enquanto os atendimentos por violência apresentaram maior proporção de ocorrência em vias públicas (41,4%) e em bares ou similares (14,8%) (Tabela 1).

A maioria das pessoas atendidas (90%) recebeu alta logo após o atendimento de emergência inicial (primeiras 24 horas após a admissão), enquanto 8,6% foram hospitalizados. A proporção de pessoas hospitalizadas foi maior entre os atendimentos por causas violentas (13,7%) do que entre as vítimas de acidentes (7,8%). Foram registrados dois óbitos (um por acidente e outro por violência) durante as primeiras 24 horas após a admissão (Tabela 1).

A Tabela 2 apresenta a natureza da lesão localizada na região da boca ou dentes. Predominaram as lesões por corte/perfuração/laceração, identificadas em, aproximadamente, 63% dos atendimentos no período analisado, apresentando distribuição semelhante tanto nos casos de acidentes (63,1%) quanto nos de violência (64,5%). Os demais tipos de lesão mais frequentes foram: traumatismo dentário (19,9%), contusão (5,3%) e fratura (4%).

A Tabela 3 apresenta a distribuição dos atendimentos de emergência com lesões bucodentais segundo o tipo de ocorrência e o sexo da vítima. Para o total de atendimentos, as quedas apresentaram a maior proporção (43%), variando de 40,3% entre os homens a 48,1% entre as mulheres. O segundo tipo de acidente mais frequente foi representado pelos acidentes de transporte (17,5%), os quais apresentaram maior proporção entre os homens (19,2%) do que entre as mulheres (14,2%). Os outros tipos de acidentes foram responsáveis por 24,9% dos atendimentos. Nesta categoria, foram inseridos os seguintes eventos: sufocação, engasgamento, corpo estranho, afogamento, envenenamento, intoxicação, ferimento por objeto perfurocortante, ferimento por arma de fogo, acidentes com animais, queda de objetos sobre a pessoa, choque contra objetos/pessoa, entorse (torção) e esmagamento. As vítimas de agressões/maus-tratos representaram 13% dos atendimentos de emergência com identificação de lesões bucodentais; neste caso, o número de pacientes do sexo masculino (14,1%) foi superior à frequência observada entre as mulheres (10,8%). As queimaduras (1%) e as tentativas de suicídio (0,6%) demandaram baixa procura por atendimento de emergência por lesões bucodentais.

Discussão e considerações finais

Informações em saúde são essenciais para o planejamento, a programação, o monitoramento e a gestão das intervenções na saúde individual e coletiva. As informações oriundas das fontes de dados secundários dos sistemas de informação em saúde são indispensáveis, mas insuficientes para responder totalmente às necessidades da gestão. Por isso, percebe-se a importância de desenvolver outras estratégias de obtenção de dados para a construção de um panorama geral sobre a situação epidemiológica nacional 14.

O propósito do estabelecimento da vigilância de violências e acidentes em serviços de emergência é possibilitar o acesso às informações acerca das causas externas ainda pouco conhecidas, de alta ocorrência e impacto na saúde da população. Os resultados aqui apresentados são fundamentais para auxiliar no real dimensionamento dos acidentes e violências ocorridos no Brasil, no que se refere às lesões bucodentais, muitas vezes inacessíveis aos gestores do setor saúde. Além disso, lesões bucodentais causam problemas estéticos, funcionais e emocionais de grande impacto no bem-estar e no cotidiano das pessoas 15,16, pois podem restringir as atividades no trabalho, na escola e no domicílio, resultando em milhões de horas de absenteísmo escolar ou no trabalho a cada ano 10.

Segundo Macedo et al. 17, os traumas têm grande importância na sociedade contemporânea, uma vez que apresentam repercussões emocionais, funcionais e possibilidade de deformidades permanentes. A grande quantidade de lesões na face deve-se à enorme exposição e à pouca proteção desta região, acarretando, frequentemente, lesões graves. Trata-se de um trauma de abrangência multidisciplinar, envolvendo principalmente as especialidades de cirurgia geral, oftalmologia, cirurgia plástica, bucomaxilofacial e neurocirurgia.

Os resultados obtidos nesta análise são compatíveis com os de outros estudos, nos quais também foi encontrada maior ocorrência de lesões de face, envolvendo as bucodentais, em pessoas do sexo masculino, sobretudo, adultos jovens 11,17,18,19,20,21. As crianças e os adolescentes constituem outro grupo com maior ocorrência deste tipo de lesão. De acordo com Rezende et al. 22, entre as crianças, os traumatismos dentários foram mais frequentemente associados às quedas, ao passo que, com o aumento da idade, os adolescentes e adultos jovens foram as vítimas mais comuns dos casos envolvendo acidentes de transporte e violência interpessoal, situação corroborada pela descrição apresentada por Chrcanovic et al. 21.

Adolescentes e adultos jovens têm sido frequentemente identificados como as principais vítimas de causas externas. Fatores como inexperiência, busca de emoções, prazer em experimentar situações de risco, impulsividade e abuso de substâncias psicoativas parecem estar associados aos comportamentos deste grupo etário. Todavia, crianças menores de dez anos representaram uma parcela importante entre as vítimas de acidentes, evidenciando sua vulnerabilidade em face desse tipo de evento 23,24.

Os negros (pretos e pardos) predominaram em todos os tipos de ocorrência, principalmente entre as violências, em conformidade com panorama nacional de morbimortalidade por causas externas 7,25,26. Diferenças étnicas associam-se a desigualdades sociais e condicionam a forma de viver e de morrer de grupos de pessoas. Dessa forma, a cor da pele e o nível de escolaridade permitem identificar as condições socioeconômicas consideradas de risco para a ocorrência de acidentes e violências. No presente estudo, pode-se observar a maior ocorrência de atendimentos entre os negros e também entre as pessoas com baixa escolaridade, grupos mais vulneráveis para a ocorrência dos agravos em questão.

Merece destaque a proporção de eventos ocorridos no domicílio. Por ser o ambiente de maior permanência da maioria das pessoas, em especial as crianças, o principal local de ocorrência dos acidentes foi a própria residência, onde ocorreu a maioria das quedas, queimaduras, choques elétricos, contato com instrumentos cortantes, sufocação e afogamento 27,28.

Nos dias atuais, as associações álcool, drogas, direção de veículos e aumento da violência urbana estão cada vez mais presentes como fatores causais dos traumas faciais e, o que é pior, aumentando a sua complexidade. Montovani et al. 19 também encontraram maior proporção do uso de álcool pelas vítimas de lesão bucodental entre os atendimentos de emergência por violência.

Não foi possível acompanhar os pacientes com o intuito de verificar o impacto das lesões em suas vidas, pois o contato com as vítimas deu-se durante as primeiras 24 horas do atendimento de emergência. Contudo, apesar de a maior parte dos atendimentos terem evoluído para alta hospitalar, atesta-se que as lesões bucodentais causam grande impacto estético e funcional em suas vítimas 15,16. Embora por vezes menos graves, são visíveis e podem comprometer o bem-estar, os relacionamentos interpessoais e as atividades diárias das pessoas atingidas 10.

Os dados apresentados desvendam a realidade do cotidiano das unidades de emergência e apontam para novas facetas do problema do atendimento às vítimas de violências e acidentes. A maior contribuição da modalidade de vigilância de violências e acidentes em serviços sentinelas é o fato de os dados estarem disponíveis em tempo hábil, de forma que sua análise e interpretação proporcionem as bases para a tomada de decisão. Outrossim, permite captar dados sobre eventos menos graves, mas cujo conhecimento é fundamental para o planejamento de políticas públicas de prevenção de agravos e promoção da saúde.

Entende-se que estes resultados podem ser úteis para a área de Saúde Bucal, a fim de contribuir com a construção de um Sistema de Informação em Saúde Bucal que contemple a obtenção de dados sobre lesões bucodentais de maneira sistematizada. Sabe-se que, para isso, ainda é necessário implementar a coleta de dados, a padronização de termos e aprimorar as análises estatísticas e epidemiológicas, seguindo os parâmetros e metodologias recomendados pela Organização Mundial da Saúde 29.

A despeito das grandes vantagens do sistema de vigilância em serviços sentinelas de urgência e emergência, faz-se necessário apontar as limitações dos resultados apresentados. As unidades de urgência e emergência não representam a totalidade de serviços financiados pelo SUS, e a amostra de pacientes entrevistados foi do tipo intencional, restringindo-se a um turno de trabalho durante trinta dias. Outra limitação é a impossibilidade de calcular coeficientes ou taxas, apresentando, assim, um caráter eminentemente descritivo dos atendimentos de emergência por acidentes e violências.

Colaboradores

M. D. M. Mascarenhas participou da condução da proposta de análise, elaboração da versão inicial do manuscrito, tabulação e limpeza do banco de dados, revisão e aprovação da versão final do artigo. M. M. A. Silva participou da elaboração do projeto original, treinamento da equipe de coleta de dados, redação e revisão do manuscrito. D. C. Malta participou da elaboração da versão inicial do manuscrito e análise dos resultados, aprovação da versão final do manuscrito. L. Moura participou da elaboração do projeto de pesquisa, orientação durante a análise e apresentação dos resultados, aprovação da versão final do manuscrito. P. S. A. Goes participou da fundamentação da discussão e revisão da versão final do manuscrito. S. T. Moysés participou da redação da discussão e revisão da versão final do manuscrito. O. L. Morais Neto participou da formulação da metodologia, análise de resultados e revisão da versão final do manuscrito.

Recebido em 28/Dez/2010

Versão final reapresentada em 26/Jun/2011

Aprovado em 19/Jul/2011

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  • Correspondência:
    M. D. M. Mascarenhas
    Coordenação Geral de Vigilância de Doenças e Agravos Não Transmissíveis
    Secretaria de Vigilância em Saúde
    Ministério da Saúde
    SAF Sul, Trecho 02, Lotes 05 e 06, Bloco F, Torre I, Edifício Premium
    Brasília, DF 70070-600, Brasil
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jun 2012
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      28 Dez 2010
    • Aceito
      19 Jul 2011
    • Revisado
      26 Jun 2011
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