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Identidades emergentes, genética e saúde: perspectivas antropológicas

RESENHAS BOOK REVIEWS

Identidades emergentes, genética e saúde: perspectivas antropológicas

Rodrigo Ciconet Dornelles

Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. rodrigo.ciconet@yahoo.com.br

IDENTIDADES EMERGENTES, GENÉTICA E SAÚDE: PERSPECTIVAS ANTROPOLÓGICAS. Santos RV, Gibbon S, Beltrão J. Rio de Janeiro: Garamond/Editora Fiocruz; 2012. 272 p.

ISBN: 978-85-7617-257-4

ISBN: 978-85-7541-927-8

Os últimos anos, nas ciências sociais no Brasil, parecem testemunhar a emergência e a consolidação de um campo comumente chamado de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT), em especial as perspectivas antropológicas. Entretanto, a importância de Identidades Emergentes, Genética e Saúde: Perspectivas Antropológicas não se restringe à sua contribuição para o estabelecimento dessa área, na medida em que o livro organizado por Ricardo Ventura Santos, Sahra Gibbon e Jane Beltrão tem seus méritos por também colocar à prova, com base em casos empíricos, o alcance de alguns dos debates mais recentes em termos teóricos e conceituais do campo. A apresentação do livro é bastante feliz não só por conseguir sintetizar de modo a não simplificar e a não perder a complexidade que cada um dos artigos comporta – na descrição dos diferentes capítulos –, mas também por tratar de colocar em relevo algumas das principais referências da atualidade.

Os artigos que integram o livro – bem como os ESCT de uma forma geral – buscam evidenciar as relações existentes entre os diferentes objetos técnico-científicos e as sempre complexas dimensões sociais da vida humana. Ou, nas palavras dos organizadores, o que está em jogo é "analisar como as novas tecnologias biológicas estão reconfigurando (ou não) as noções de humano, assim como as implicações socioculturais, políticas e éticas decorrentes dessas transformações". Nesse sentido, todos os artigos reunidos colocam à prova essa hipótese de que as novas configurações técnico-científicas estariam moldando "novas práticas de vida"; procurando refletir em torno das intersecções existentes entre o conhecimento científico produzido a respeito da condição biológica humana e as esferas socioculturais e políticas.

O livro é dividido em três partes: Saúde, Genética e Sociedade: Novas/Velhas Questões, Novas/Velhas Configurações; Reprodução, Molecularização e Biopolítica da Vida em Si; e Tecnologias Genéticas e Identidades Étnico-Raciais Emergentes. Essa divisão é contingencial; pois o livro poderia ser organizado de forma diferente, já que outras conexões podem ser traçadas. Um bom exemplo é entre os artigos de Rosely Costa Gomes, Doação de Sêmen e Classificação Étnico-Racial no Brasil, e Elena Calvo-Gonzáles, Usos Políticos da Leucopenia e Diferença Racial no Brasil Contemporâneo que estão em diferentes partes. Ambas, desde contextos empíricos bastante robustos, mas também muito distintos entre si, abordam dimensões técnico-científicas no estabelecimento da forma como os brasileiros se relacionam com a questão racial. Mesmo assim, a forma como o livro está organizado consegue agrupar os diferentes textos de maneira bastante coerente.

Diferentemente daquilo que se convencionou chamar de Estudos de Laboratório 1 nos ESCT, os estudos reunidos nesta obra procuram dar conta, sobretudo, de conexões para fora dos ambientes imediatos de produção do conhecimento científico, como é o caso de, Identidade Genética no Debate sobre o Estatuto de Fetos e Embriões, de Naara Luna, que procura dar conta do debate jurídico ocorrido no Brasil em torno do estatuto de fetos e embriões. Ele é bastante rico em dados empíricos e aponta, de forma bastante consistente, para a força que o argumento biológico acabou ocupando nessa disputa levada a cabo na esfera judicial.

O foco dos artigos é tanto mais as conexões que se estabelecem entre as tecnologias genômicas, como no artigo de Marko Monteiro & Ricardo Vêncio, A ‘Molecularização' do Câncer de Próstata: Reflexões sobre o Chip de DNA, e de outras esferas da vida social e da produção de identidades (individuais e coletivas) suscitadas por tais tecnologias, como em Biorrevelações: Testes de Ancestralidade Genética em Perspectiva Antropológica Comparada, de Verlan Valle Gaspar Neto, Ricardo Ventura Santos & Michael Kent.

No artigo de Monteiro & Vêncio, empreende-se uma análise de duas formas científicas de representação do câncer de próstata. No âmbito conceitual, procuram colocar em relevo – tomando como objeto empírico o chip de DNA – uma nova forma de conceituar representação, argumentando que a atual configuração do conceito é inadequada para dar conta das "emergentes formas moleculares de definição de doenças". Também apontam para complexificação da forma como o corpo se relaciona com a tecnologia, evidenciada pelas atuais transformações biotecnológicas, em um processo de molecularização. Já o outro artigo referido acima busca argumentar, mediante análise comparativa dos serviços de três empresas que comercializam testes de ancestralidade, que contextos sociopolíticos diferentes produzem modos distintos de se pensar as ideias de raça e ancestralidade.

Ainda no âmbito da relação entre tecnologia genômica e produção de identidades coletivas, cabe ressaltar o artigo de Michael Kent, A Importância de Ser Puro: Movimentos Indígenas, Políticas de Identidade e Pesquisa Genética nos Andes Peruanos. Por outro lado, esse artigo guarda particularidade com relação aos demais, pois, enquanto os outros dedicam-se à análise de casos que ocorrem no Brasil, o trabalho de Kent aborda o desenvolvimento das disputas em torno da identidade étnica de um povo indígena andino peruano (e não boliviano, como aponta a apresentação do livro) e as reconfigurações políticas e sociais locais, desencadeados por uma pesquisa genética.

Se o que define a disciplina antropológica passa por uma questão de método, então o artigo de Sandra Caponi não é propriamente antropológico, mas histórico. Agora, se o que nos baliza em função de identificar uma análise como antropológica ou não é uma questão de abordagem conceitual e de problemática, então, Degeneração e Eugenia na História Psiquiátrica Moderna é essencialmente antropológico. Isso porque Caponi busca, por uma análise conceitual foucaultiana da (re)configuração do conceito de degeneração e dos princípios eugenistas, dar conta do que seria uma configuração epistemológica surgida na segunda metade do século XIX.

Em "Agressividade" e "Violência": A Difícil Tarefa de Conceituar no Diálogo entre Geneticistas e Cientistas Sociais, Gláucia Silva explora certa incompatibilidade entre cientistas naturais e sociais. Ela toma como objeto de análise dois artigos – um de uma cientista social e outro de um cientista natural – para explorar o que ela considera "um vastíssimo espectro de questionamentos identificado pela dicotomia natureza/cultura", que fundaria a disciplina antropológica. Após uma breve caracterização de cada um dos dois artigos, Silva dirige duras críticas aos argumentos do cientista natural. Finalmente, como uma tentativa de dissolver o abismo que parece estar colocado entre esses dois ramos do conhecimento, a saída proposta por Silva estaria nas ideias do antropólogo britânico Tim Ingold.

Luis David Castiel, no princípio de Saúde, Longevidade e Genética: Um Olhar Biopolítico, chama a atenção a como se coloca a questão da longevidade atualmente para, a seguir – valendo-se dos conceitos de biopoder e biopolítica e da ideia de governamentalidade –, argumentar em favor do que ele chama de epidemiopoder. Por meio desse conceito, Castiel tenta dar conta daquilo que conforma a produção de certa cultura científica que configuraria nosso pensamento e a maneira de nos relacionarmos com nossos corpos na atualidade.

Quiçá um dos mais importantes aspectos explorados pela grande maioria dos estudos na área dos ESCT, como os artigos descritos acima, é que nenhuma análise é neutra. Nesse sentido, cabe estar permanentemente atento aos aspectos discursivos, os lugares que ocupam e os posicionamentos assumidos pelos diferentes campos do conhecimento científico. De modo que, não só os objetos que foram objeto de análise dos artigos que compõem esse livro devem ser pensados enquanto produções socialmente e politicamente localizadas, mas os próprios artigos no campo dos ESCT possuem certa "posicionalidade" 2, e, portanto, devem ser apreendidos enquanto análises política e socialmente delimitadas.

  • 1. Cetina KK. Laboratory studies: the cultural approach to the study of science. In: Jasannoff S, Markle GE, Petersen JC, Pinch T, editors. Handbook of science and technology studies. London: Sage; 1995. p. 140-66.
  • 2. Haraway DJ. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu 1995; 5:7-41.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Dez 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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