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Medicalização, farmacologização e imperialismo sanitário

Medicalización, farmacologización e imperialismo sanitario

PERSPECTIVAS PERSPECTIVES

Medicalização, farmacologização e imperialismo sanitário

Medicalización, farmacologización e imperialismo sanitario

Kenneth Rochel de Camargo Jr.

Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência Correspondência K. R. Camargo Jr. Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier 524, 7 o andar, Bloco D, Rio de Janeiro, RJ 20559-900, Brasil. kenneth@uerj.br

O ponto de partida para a discussão que proponho é a consideração dos fatores que levam à busca por serviços de saúde. Num primeiro momento, esse é o resultado de uma interação entre a sensação subjetiva de que algo vai mal com padrões culturais de expressão de problemas de saúde e a disponibilidade de serviços de atenção à saúde. Nas sociedades industriais contemporâneas essa interação resulta na busca por hospitais ou clínicas, onde se espera que alguma doença seja diagnosticada e um tratamento proposto para a mesma.

É no estudo do processo historicamente contingente de estruturação dessa resposta que foi formulado o conceito de medicalização. Um primeiro problema que se coloca é que há diferentes conceitos de medicalização, nem sempre compatíveis entre si, por serem vinculados a diferentes modos de compreender as complexas relações entre saúde e sociedade. Para Zola 1, por exemplo, a medicalização é uma forma de controlar a sociedade; para Foucault 2, uma consequência inevitável dos processos de transformação social que criam a medicina moderna e ao mesmo tempo se submetem a ela; Conrad 3, por fim, adota uma definição operacional do conceito, extremamente útil para estudos empíricos; para este último, a medicalização é o processo de transformação de problemas anteriormente não considerados "médicos" (ou "de saúde", acrescentaríamos) em problemas médicos, usualmente sob a forma de transtornos ou doenças.

Explicitamente ausente nessa definição é o tom de condenação moral das teses mais radicais sobre a medicalização. Esse é um dos aspectos diferenciais importantes nas várias narrativas agrupadas sob a palavra "medicalização", num espectro que considera numa ponta que não há lugar legítimo a ser ocupado pela medicina no cuidado das pessoas (como por exemplo, Illich 4) até a outra que reconhece a possibilidade de contribuições eticamente justificáveis do mesmo saber-prática-instituição.

Essa variabilidade conceitual foi ao longo do tempo diluída em apropriações pouco rigorosas, que transformaram a medicalização em uma espécie de princípio explicativo universal, quase uma teoria conspiratória de aplicabilidade geral, esvaziando o conceito de seu significado e potência.

No restante dessa discussão adotaremos a definição de Conrad por considerá-la a mais precisa e mais facilmente utilizável num contexto empírico; ao mesmo tempo, lança o desafio de pensar em que circunstâncias a medicalização poderia ou não ser justificável. Embora a exploração em profundidade desse aspecto extrapole o escopo de nossa reflexão, a utilização de exemplos pode clarificar esse ponto.

Antes de 1981 a AIDS e o HIV não existiam no horizonte do conhecimento médico; após o relato de dois agregados de doenças previamente não identificadas em grupos semelhantes – homens jovens, homossexuais, previamente saudáveis – desencadeou-se um processo de investigação que, num tempo relativamente curto, forjou e estabilizou uma nova categoria diagnóstica, produziu um mecanismo explicativo, identificou o agente infeccioso a cuja ação foi atribuída a origem da doença, desenvolveram-se testes e finalmente medicação capaz de prolongar consideravelmente a vida dos acometidos. Pela definição de Conrad 3 , trata-se claramente de um processo de medicalização, porém com conotação ética positiva. No outro extremo do espectro, poderíamos ter, por exemplo, as tentativas de criação de uma "disfunção sexual feminina", fortemente influenciadas por interesses comerciais ligados à indústria farmacêutica 5.

Esse é, portanto, um primeiro desafio que o conceito de medicalização, tal como proposto por Conrad 3, nos lança: examinar em casos concretos como se dá a (re)construção ou expansão de categorias diagnósticas, explicitando os processos subjacentes e expondo a contribuição de interesses desconectados do ou mesmo contrários ao bem-estar das populações.

Mas fenômenos similares demandam também atenção, sobretudo quanto ao último aspecto destacado, a extensão de possibilidades de intervenção a serviço de interesses econômicos descompromissados com os propósitos éticos associados à lógica da saúde.

Williams et al. 6 defendem a ideia de que há processos dessa ordem que escapam da conceituação estrita de medicalização abordada anteriormente; na visão desses autores é necessário também pensar na "farmacologização" ("pharmaceuticalization", no original), conceituada por eles como a tradução ou transformação de condições, capacidades e potencialidades humanas em oportunidades para intervenções farmacológicas. Ainda que com larga superposição com a medicalização, a farmacologização se distinguiria por não estar necessariamente ligada a algum tipo de diagnóstico médico, como se vê no fenômeno cada vez mais presente da utilização de medicamentos sem indicação terapêutica, mas para atingir uma certa "supernormalidade" por meio do aperfeiçoamento farmacológico ("enhancement"). Segundo esses autores, a farmacologização é um complexo processo sociotécnico que interage com os processos de medicalização. A farmacologização cria identidades em torno do uso de determinados fármacos, além de reforçar a ideia de que "para cada mal há um comprimido", levando à expansão do mercado farmacêutico para além das áreas tradicionais, incluindo o uso por indivíduos saudáveis, ao enfraquecimento da predominância da profissão médica criando relações diretas da indústria com "consumidores" e a colonização da vida humana pelos produtos farmacêuticos.

Por fim, um terceiro processo usualmente albergado sob a discussão da medicalização carece ainda de denominação adequada; em tentativas anteriores 7 propusemos como alternativa a palavra sanitarização, enquanto Conrad sugeriu "healthicization" (algo como "saudicização"). Independentemente da palavra, o que se pretende é apontar para o que se poderia chamar de tirania da "saúde", abrangendo um conjunto de componentes ocultos pela ideia do "conceito positivo de saúde" 8:

• Uma expansão indefinida, potencialmente infinita, do conceito de saúde, que passa a encampar toda a experiência humana;

• O estreitamento paradoxal dos ideais ético-estéticos de uma "boa vida", reduzida a viver muitos anos com o mínimo de doenças, sem considerações sobre prazer ou aspirações para além do individual, uma saúde "medrosa e restritiva", como a chamou Sayd 9;

• A expansão de um mercado de consumo de produtos de "saúde": alimentos funcionais, academias de ginástica, dispositivos de uso doméstico.

É esse processo, em particular, que estende, a nosso ver, o potencial panóptico do dispositivo da "saúde", uma vez que a vida humana passa a ser marcada apenas nesse registro; não se come ou se bebe mais para ter prazer, mas porque determinados alimentos e bebidas protegem contra certas doenças, como se deixa de beber ou comer para evitar os riscos associados a outras tantas bebidas e alimentos; não se faz exercícios pelo prazer da experiência corporal, mas para "se cuidar".

Essa lógica tem uma contribuição importante de uma concepção equivocada da chamada epidemiologia dos fatores de risco 10, que culpabiliza indivíduos pelo seu adoecimento, deixando-os mais dispostos a assumir o papel de consumidores no grande supermercado da saúde, ao mesmo tempo que escamoteia, mesmo que não intencionalmente, as determinações sociais dos processos de adoecimento.

Finalizando, ressaltamos que, apesar do caráter avassalador desses processos, a resistência é possível, e é esse o sentido maior de trazer à discussão pública as ferramentas conceituais aqui discutidas. O já citado Conrad, por exemplo, fala em processos de desmedicalização, tomando como exemplo a vitoriosa ação do movimento gay para a exclusão da homossexualidade como categoria diagnóstica psiquiátrica; Tiefer 5 relata a resistência, relativamente bem-sucedida, de feministas e profissionais de saúde pública à criação da "disfunção sexual feminina". O que esperamos é que estudos futuros, ao trazer novas luzes sobre esse conjunto de processos, possibilitem o desenvolvimento de práticas efetivas de cuidado de saúde que não sejam simplesmente a extensão cada vez maior de um mercado de consumidores cativos.

Recebido em 02/Mar/2013

Aprovado em 04/Mar/2013

A versão em inglês deste texto está disponível online no Portal SciELO (http://www.scielo.br/csp).

The English version of this text is available online in the SciELO (http://www.scielo.br/csp).

La versión en Inglés de este texto está disponible en línea en el SciELO (http://www.scielo.br/csp).

  • 1.   Zola IK. Medicine as an institution of social control. In: Conrad P, editor. The sociology of health and illness: critical perspectives. 6th Ed. New York: Worth Publishers; 2001. p. 404-14.
  • 2.   Foucault M. Historia de la medicalización. Educ Méd Salud 1977; 11:3-25.
  • 3.   Conrad P. The medicalization of society: on the transformation of human conditions into treatable disorders. Baltimore: The Johns Hopkins University Press; 2007.
  • 4.   Illich I. Némésis médicale. Paris: Seuil; 1975.
  • 5.   Tiefer L. Female sexual dysfunction: a case study of disease mongering and activist resistance. PLoS Med 2006; 3:e178.
  • 6.   Williams SJ, Martin P, Gabe J. The pharmaceuticalisation of society? A framework for analysis. Sociol Health Illn 2011; 33:710-25.
  • 7.   Camargo Jr. KR. Medicina, medicalização e produção simbólica. In: Pitta AMR, organizador. Saúde & comunicação: visibilidades e silêncios. São Paulo: Editora Hucitec; 1995. p. 13-24.
  • 8.   Camargo Jr. KR. As armadilhas da concepção positiva de saúde. Physis (Rio J.) 2007; 17:63-76.
  • 9.   Sayd JD. Novos paradigmas e saúde: notas de leitura. Physis (Rio J.) 1999; 9:113-21.
  • 10. Taubes G. Epidemiology faces its limits. Science 1995; 269:164-9.
  • Correspondência
    K. R. Camargo Jr.
    Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
    Rua São Francisco Xavier 524, 7
    o andar, Bloco D,
    Rio de Janeiro, RJ
    20559-900, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Jan 2013
    • Data do Fascículo
      Maio 2013
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