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A crise da força de trabalho em saúde

La crisis del personal sanitario

PERSPECTIVAS PERPECTIVES

A crise da força de trabalho em saúde

La crisis del personal sanitario

Mario Roberto Dal Poz

Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Correspondência Correspondência M. R. Dal Poz Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rua São Francisco Xavier 524, 7ºandar bloco D, Rio de Janeiro, RJ 20559-900, Brasil. dalpozm@ims.uerj.br

O Relatório Mundial da Saúde 1 demonstrou que em todo o mundo o estresse e a insegurança vêm aumentando para os profissionais de saúde, em razão da complexa conjuntura na qual se combinam causas e problemas antigos e novos. A implementação de novos modelos de atenção, a introdução de novas tecnologias e a mudança do perfil epidemiológico têm um impacto direto sobre as necessidades de pessoal pelos sistemas de saúde. A globalização, o envelhecimento da população e as novas expectativas dos consumidores podem também deslocar dramaticamente as demandas sobre a força de trabalho em saúde (FTS). Como parte da economia política global, a partir dos anos 1990, aumentou significativamente a migração internacional de médicos e, especialmente enfermeiros, buscando oportunidades e segurança no emprego em mercados de trabalho mais dinâmicos.

Associaram-se a esse contexto as consequências negativas dos programas de ajustamento e reforma financeira apoiados pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial nos anos 80, culminando com importante redução das capacidades nacionais de gastos nas áreas sociais, como saúde e educação. Alem disso, a emergência ou a reemergência de doenças de grande impacto na população e a aceleração da epidemia de HIV/AIDS, no mesmo período, contribui de maneira importante para aumentar a demanda por mais pessoal de saúde.

Ainda que o conjunto de problemas não seja exatamente novo, esse contexto gerou o que se convencionou chamar de crise global da FTS, caracterizado pelo deficit global estimado em mais de 4 milhões de profissionais de saúde 1 e a desigualdade regional, nacional e subnacional na distribuição e acesso à FTS. Tal desigualdade de distribuição afeta quase todos os países, inclusive o Brasil, com deficit de pessoal de saúde qualificado, particularmente nas regiões rurais, periferias urbanas ou de difícil acesso.

Os desequilíbrios na composição das equipes de saúde e na sua distribuição complicam os problemas atuais de saúde. Em muitos países, o perfil profissional de um limitado número de trabalhadores, ainda que dispendiosos, não é necessariamente adequado às necessidades locais de saúde. Frequentemente, há também escassez de pessoal qualificado em saúde pública, políticas e gestão em saúde. Muitos trabalhadores enfrentam ambientes de trabalho alarmantes – salários irrisórios, ausência de apoio dos gestores, insuficiente reconhecimento social e débil desenvolvimento da carreira 2.

A má-distribuição caracterizada pela concentração urbana e deficits rurais não é privilégio de nenhum país em particular, pois quase todos os países sofrem esses desequilíbrios. Segundo Scheffer et al. 3 (p. 13), ao examinar a demografia médica no Brasil, chama a atenção "o acirramento das desigualdades na distribuição ou mesmo a falta localizada de profissionais em determinadas circunstâncias". Estudo do Ministério da Saúde sobre a necessidade de médicos especialistas mostrou que existem desequilíbrios regionais na oferta de especialistas, suboferta/escassez de algumas especialidades, novas necessidades decorrentes da transição sociodemográfica/epidemiológica, dificuldades no recrutamento de médicos especialistas e distribuição inadequada de vagas de Residência Médica no país 4. A diferença entre a oferta e a demanda de médicos tem aumentado na última década, aquecendo consideravelmente esse mercado de trabalho, ao contrário do que ocorre com os enfermeiros e dentistas 5. Com uma densidade média de 1,8 médico por 1.000 habitantes, o Brasil tem um indicador maior que a maioria dos países da América Latina, mas menor, ainda que comparável, que muitos países desenvolvidos, como os EUA (2,5). No entanto, estudo destinado a construir um índice de escassez de médicos demonstrou que em 2010 havia 1.304 municípios identificados com escassez de médicos 6.

Essa crise tem potencial para se agravar nos próximos anos. A demanda por profissionais de saúde vem crescendo marcadamente em todos os países – ricos ou pobres. Os países de mais alta renda divisam um futuro com baixa taxa de fertilidade e envelhecimento marcante da população, o que causará um aumento no número de doenças crônicas e degenerativas, exigindo alta demanda de cuidados à saúde. Os avanços tecnológicos e o crescimento da renda exigirão uma FTS mais especializada, embora as necessidades de cuidados básicos aumentem, por conta da diminuição da capacidade ou da disponibilidade das famílias de cuidar dos mais idosos. Sem um investimento maciço na formação, essas desigualdades crescentes exercerão uma pressão ainda maior para a emigração de profissionais de saúde das regiões mais pobres.

Nos países de média e baixa renda, grandes contingentes de jovens se juntarão a uma população cada vez mais envelhecida em rápido processo de urbanização. Muitos desses países ainda lidam com agendas pendentes de doenças infecciosas, complicadas com o rápido surgimento de doenças crônicas e ainda com a magnitude da epidemia de HIV/AIDS. A disponibilidade de vacinas e drogas eficazes para enfrentar essas ameaças à saúde impõe enormes imperativos práticos e éticos para uma resposta eficaz. A lacuna entre o que pode ser feito e o que está sendo feito está aumentando. O sucesso na redução dessa lacuna será determinado em grande parte pelo desenvolvimento adequado da força de trabalho em saúde com o objetivo de tornar os sistemas de saúde mais eficazes.

As manifestações de rua ocorridas no último mês de junho reivindicando melhores serviços de saúde e o Movimento Saúde +10 geraram, sem dúvida, um contexto de oportunidade para o debate de opções de médio e longo prazo para a crise do sistema de saúde no Brasil. No curto prazo, as medidas adotadas pelo Ministério da Saúde, como o Programa de Valorização do Profissional de Atenção Básica (PROVAB) e o Mais Médicos, têm o mérito de enfrentar o problema do deficit agudo em determinadas regiões do país, mas deixam muitos problemas pelo caminho, a começar pela sua focalização numa única categoria profissional (médicos), o conflito com as entidades profissionais, o desconhecimento da desarticulação dos diferentes níveis de assistência e a gravíssima situação de subfinanciamento do SUS em todos os seus níveis.

No Brasil, experiências anteriores para fixar profissionais de saúde em áreas de carência não se sustentaram ao longo do tempo, apesar de mais ou menos bem-sucedidas no curto prazo, como o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS), a implantação de internatos rurais nas graduações da área da saúde e mais recentemente o extinto Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS) 7. A Estratégia Saúde da Família, apesar de não desenhada especificamente com tal objetivo, constitui talvez o exemplo mais bem-sucedido de expansão da cobertura de médicos no território nacional.

Para a Organização Mundial da Saúde (OMS), o mais importante é que a formulação de programas nacionais para melhorar o recrutamento e a fixação de profissionais de saúde em áreas remotas e rurais deve incluir intervenções interligadas e articuladas ao Plano Nacional de Saúde. Essa recomendação integra um conjunto de recomendações globais para fixação de trabalhadores de saúde elaborado pela OMS com base em evidências científicas e o consenso técnico de centenas de especialistas 8.

A OMS recomenda que a "escolha das intervenções deve ser baseada em um conhecimento aprofundado da realidade dos trabalhadores de saúde" 8. Para isso, é necessário analisar o mercado de trabalho em saúde e os fatores que influenciam as decisões de pessoal de saúde quando se deslocam para áreas rurais e remotas, mas também para ficar neles ou abandoná-los. Sem esse conhecimento, as escolhas e intervenções não são sustentáveis e, em geral, são rejeitadas pelos profissionais de saúde. Segundo a OMS, para ter sucesso, um programa para melhorar o recrutamento e a fixação de profissionais de saúde em zonas remotas ou rurais deve incluir quatro categorias de intervenções articuladas: formação, regulação, incentivos e apoio profissional e pessoal 8.

Segundo Araújo & Maeda 9, "existe um consenso emergente de que programas de recrutamento e fixação em áreas rurais e remotas precisam incluir duas questões: i) para serem eficazes, as intervenções precisam ser implementadas de forma articulada, combinando diferentes pacotes de intervenções de acordo com a variedade de fatores que influenciam a decisão do profissional de saúde para trabalhar em áreas rurais ou remotas, e ii) fazer coincidirem as intervenções com as preferências e expectativas dos trabalhadores de saúde, uma vez que as decisões de emprego do trabalhador de saúde são uma função dessas preferências".

Para responder a essas questões e subsidiar a elaboração e a implantação de programas de recrutamento e retenção de profissionais de saúde nos países em desenvolvimento, vem se disseminando a aplicação de estudos de preferência declarada (Discrete Choice Experiments – DCE, em inglês), com apoio do Banco Mundial em parceria com a OMS e CapacityPlus/USAID. Estudos desse tipo já começam a ser aplicados no Brasil 6.

A avaliação dessas e outras experiências – inclusive com uma agenda articulada de pesquisa – pode permitir o desenvolvimento de opções por políticas e programas que enfrentem essa crise que tem limitado a capacidade dos sistemas nacionais de saúde para melhorar a saúde de suas populações 10.

Recebido em 26/Ago/2013

Aprovado em 27/Ago/2013

Revisado em 27/Ago./2013

  • 1. World Health Organization. World Health Report 2006: working together for health. Geneva: World Health Organization; 2006.
  • 2. Dussault G, Dubois CA. Human resources for health policies: a critical component in health policies. Hum Resour Health 2003; 1:1.
  • 3. Scheffer M, Biancarelli M, Cassenote A, coordenadores. Demografia Médica no Brasil: dados gerais e descrições de desigualdades. v. 1. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo/Conselho Federal de Medicina; 2011.
  • 4. Comissão Interministerial de Gestão da Educação na Saúde. Avaliação das necessidades de médicos especialistas. http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=1509&Itemid=95(acessado em 20/ Ago/2013).
  • 5. Dal Poz MR, Girardi SN, Pierantoni CR. Formação, regulação profissional e mercado de trabalho em saúde In: Fundação Oswaldo Cruz, organizador. A saúde no Brasil em 2030: diretrizes para a prospecção estratégica do sistema de saúde brasileiro. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada/Ministério da Saúde/ Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República; 2012. p. 157-68.
  • 6. Girardi SN, coordenador. Estudo de preferência declarada sobre atributos relevantes para a atração e fixação de médicos no Estado de Minas Gerais: relatório final de atividades. http://epsm.nescon.medicina.ufmg.br/epsm/ (acessado em 19/ Ago/2013).
  • 7. Maciel Filho R, Branco MAF. Rumo ao Interior: médicos, saúde da família e mercado de trabalho. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.
  • 8. World Health Organization. WHO global recommendations for the retention of health workers. http://www.who.int/hrh/migration/retention/en/index.html (acessado em 19/Ago/2013).
  • 9. Araújo E, Maeda A. How to recruit and retain health workers in rural and remote areas in developing countries: a guidance note. http://documents.worldbank.org/curated/en/2013/06/17872903/recruit-retain-health-workers-rural-remote-areasdeveloping-countries (acessado em 19/Ago/2013).
  • 10. Dal Poz MR, Mercer HS, Adams O, Stilwell B, Buchan J, Dreesch N, et al. Human resources for health: developing policy options for change In: Ferrinho P, Dal Poz M, editors. Towards a global health workforce strategy. Antwerp: ITGPress; 2003. p. 451-82. (Studies in Health Services Organisation& Policy, 21).
  • Correspondência

    M. R. Dal Poz Instituto de Medicina Social,
    Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
    Rua São Francisco Xavier 524, 7ºandar bloco D,
    Rio de Janeiro, RJ 20559-900, Brasil.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jun 2013
    • Data do Fascículo
      Out 2013
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