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Sobre os rumos das políticas sociais e de saúde no Brasil pós 1988

DEBATE DEBATE

Sobre os rumos das políticas sociais e de saúde no Brasil pós 1988

Cristiani Vieira Machado

Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Brasil. cristiani@ensp.fiocruz.br

Debater um texto de Jairnilson Paim é uma honra. Quando a minha geração, adolescente, saía às ruas pela primeira vez para reivindicar eleições "Diretas Já", muitos de sua geração eram atores e autores, que há tempos lutavam por um país democrático e socialmente justo.

O processo de redemocratização alicerçou-se na crítica ao regime autoritário e às desigualdades no Brasil. Assim, envolveu a construção de projetos sociais transformadores e culminou na promulgação de uma Constituição progressista em 1988, antes que a onda de reformas neoliberais atingisse o país, o que representa uma situação singular na América Latina.

Se por um lado a Constituição expressa o pacto normativo-social da Nação, por outro ela não garante per se a efetivação dos direitos. Conforme assinala Edward Thompson 1 (p. 110): "Pois constatei que o Direito não se mantinha polidamente num 'nível', mas estava em cada nível: estava imbricado no modo de produção e nas próprias relações de produção [...] era um braço da política e a política era um de seus braços; era uma disciplina acadêmica, sujeita ao rigor de sua própria lógica autônoma; contribuía para as definições da identidade tanto de governantes como de governados; acima de tudo, fornecia uma arena para luta de classes, na qual noções alternativas do Direito se digladiavam".

A Constituição de 1988, ao estabelecer direitos sociais abrangentes, ofereceu um novo patamar para a luta política nas décadas subsequentes. Decorridos 25 anos de sua promulgação, cabem esforços para compreender por que as propostas relativas à Seguridade Social e ao Sistema Único de Saúde foram implementadas de forma restrita.

O texto de Paim explora alguns elos críticos para a compreensão das dificuldades enfrentadas pelo SUS, considerando dois eixos: a trajetória das políticas sociais no Brasil; o destino dos projetos políticos que emergiram na transição democrática, em face das agendas de reforma do Estado e governamentais das décadas seguintes.

A riqueza do debate reside em situar a problemática setorial em uma perspectiva que considere o caráter da proteção social e da democracia, e no esforço de resgatar a gênese dos processos políticos como elemento explicativo dos insucessos. Sem pretender esgotar os argumentos apresentados, cabe debater três questões principais.

A primeira diz respeito à ênfase recente da política social brasileira no combate à pobreza, atribuída pelo autor a influências internacionais e à adesão de governos nacionais às agendas neoliberais.

Ainda que o peso do contexto e dos atores internacionais na agenda dos governos latino-americanos seja relevante, é fundamental valorizar a trajetória histórica dos países específicos e analisar de forma dinâmica a relação entre condicionantes externos e internos na definição das políticas sociais no país nos vários momentos.

Existe uma diversidade de arranjos na estruturação dos sistemas nacionais de proteção social quanto à repartição de responsabilidades entre Estado, mercado e famílias. As diferenças nas coalizões de classe, associadas a outras variáveis, foram decisivas para a configuração de distintos modelos de Welfare State nos países avançados, sendo a universalidade das políticas sociais mais evidente no regime socialdemocrata (países escandinavos) 2. A presença de movimento sindical forte não necessariamente gerou arranjos universalistas; em muitos casos levou à configuração do modelo conservador-corporativo, caracterizado pela reiteração de padrões de estratificação social.

Os sistemas de proteção social dos países latino-americanos apresentam características distintas daqueles dos países avançados, e também entre si. Há um grupo pequeno de países com sistemas mais abrangentes em termos de cobertura e escopo de programas, em geral construídos sobre bases corporativas. Além disso, tais sistemas foram erigidos em sociedades marca-das por desigualdades, geradas desde o período colonial e acentuadas por processos de inserção periférica na ordem capitalista.

O Brasil foi o país latino-americano que recebeu o maior número de africanos escravizados entre os séculos XVI e XIX e o último a abolir a escravidão. Durante o século XX viveu um processo de modernização capitalista perpetuador de desigualdades. Na história brasileira, os conflitos de classe se manifestam não apenas nas relações trabalhistas formais, mas também na existência de um imenso contingente de trabalhadores com vínculos precários ou informais, socialmente vulneráveis. Tais conflitos se refletem também nas desigualdades raciais e nas diversas formas de violência, urbana e rural.

A conexão entre estratificação socioeconômica e pobreza na sociedade brasileira é antiga, profunda e disseminada. Nos anos 1950, Josué de Castro já advertia que a fome, expressão da miséria, era fruto das desigualdades estruturais do país, que tinham forte dimensão territorial 3. Três décadas depois, a frase atribuída a Betinho – "quem tem fome, tem pressa" – traduzia a urgência de responder à gravidade da questão da pobreza no Brasil, até então negligenciada pelas políticas públicas.

No contexto brasileiro, não há como construir uma sociedade mais igualitária sem enfrentar a pobreza. O combate à pobreza não cabe apenas ao discurso neoliberal: é estratégia fundamental para a redução das desigualdades, no âmbito de um sistema de proteção social abrangente, que integre políticas universais e focalizadas.

A proposta constitucional da Seguridade Social prevê essa integração. Em que pesem os obstáculos à sua implementação – que afetaram agudamente as áreas da Previdência e Saúde –, as políticas atuais de assistência social são bem mais efetivas e próximas à noção de direitos de cidadania do que as políticas anteriores a 1988, conduzidas pela Legião Brasileira de Assistência.

O problema central reside nas formas de articulação entre políticas econômicas e sociais, no caráter e no sentido do sistema de proteção social como um todo. Cabe a crítica ao que chamamos em trabalho anterior de "doença holandesa da política social brasileira" 4, para indicar a direcionalidade excessiva da política à inserção dos pobres no mercado de consumo, enquanto nas áreas de saúde e educação os serviços públicos sofrem restrições e se aprofundam os incentivos estatais à expansão dos mercados privados. A redução da pobreza é fundamental; porém, o descaso com a consolidação de políticas universais solapa a ideia de construção de um Estado Social, voltado à promoção do bem-estar e da igualdade, o que pode reiterar as desigualdades em médio e longo prazo.

A segunda questão que merece reflexão refere-se à identificação pelo autor de dois projetos políticos de transformação social formulados na transição democrática, articulados em torno do PMDB e do PT, que teriam sido derrotados nas eleições de 1989 e não mais retomados nas décadas posteriores, mesmo por governos de esquerda. Apesar de esse resgate ser interessante, cabe assinalar que a diversidade de visões e interesses naquele momento provavelmente transcendia os referidos projetos, mesmo dentro dos dois partidos. No contexto atual da democracia brasileira, a pluralidade é ainda mais evidente, expressando-se nas instituições representativas – dadas as características do multipartidarismo de coalizão – e nos mecanismos de participação direta, formais (conselhos e conferências públicas) ou espontâneos (movimentos nas ruas). O desafio consiste na construção e legitimação de um projeto coletivo de transformação da sociedade, no cenário de uma democracia mais densa, porém marcada pelo acesso diferenciado dos grupos sociais ao poder, como é usual nas nações capitalistas.

A terceira questão, relacionada às anteriores, concerne à pertinente afirmação do autor de que a Reforma Sanitária não foi encampada como projeto político por nenhum governo do atual período democrático. Cabe indagar: em que momento ela foi assumida pelo conjunto da sociedade brasileira? Qual é atualmente a base social de apoio ao SUS?

Se no interior do "movimento sanitário" dos anos 1980 provavelmente havia maior diversidade interna do que as conquistas formais permitem inferir, o "movimento sanitário" no período de implantação do SUS tem que ser compreendido de forma mais ampla e difusa, ao abarcar milhares de gestores, técnicos, profissionais e conselheiros de saúde em todo o país.

Porém, a compreensão das dificuldades em conformar uma base de apoio político-social que transcenda os limites setoriais requer a identificação das coalizões de atores e interesses que sustentam ou se opõem ao SUS. Vivemos o paradoxo de defender um sistema de saúde universal que se destaca no cenário latino-americano e, ao mesmo tempo, ter que admitir suas contradições, para enfrentá-las nos planos estrutural e político-institucional.

Enfim, o artigo de Paim provoca a crítica e suscita reflexões sobre os motivos dos nossos fracassos. Como disse o historiador Eric Hobsbawm 5 (p. 133): "os vencedores pensam que a história terminou bem porque eles estavam certos, ao passo que os perdedores perguntam por que tudo foi diferente, e esta é uma questão muito mais relevante".

Ainda mais relevante e oportuna neste momento da história brasileira em que outra geração sai às ruas para buscar a flor viva e, novamente, expõe os espinhos da nossa sociedade.

  • 1. Thompson EP. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar Editores; 1978.
  • 2. Esping-Andersen G. The three worlds of Welfare Capitalism. Princeton: Princeton University Press; 1990.
  • 3. Castro J. A descoberta da fome. http://www.josuedecastro.com.br (acessado em 05/Jul/2013).
  • 4. Viana ALA, Machado CV. Capitalismo e estado social: qual o sentido do SUS? A doença holandesa da política social brasileira. Jornal do Brasil 2013; 14 mai. http://www.jb.com.br/plataforma-politicasocial/noticias/2013/05/14/capitalismo-e-estadosocial-qual-o-sentido-do-sus/ (acessado em 05/ Jul/2013).
  • 5. Hobsbawm E. Tempos Interessantes: uma vida no século XX. São Paulo: Companhia das Letras; 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Out 2013
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