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Jairnilson Silva Paim

Reforma Sanitária Brasileira: eppur si muove

"As ciências sociais e humanas operam inteiramente, e por definição, na zona explosiva onde todas as teorias têm implicações políticas diretas e onde o impacto da ideologia, da política e da situação em que os pensadores se encontram é preponderante" 1 (p. 415).

Essa reflexão de um pensador que aos 93 anos produziu um livro preocupado em "como mudar o mundo" 2 pode ser um antídoto contra ideologias justificadoras do status quo (mesmo em nome da democracia) e um convite para pensar as utopias como algo que não tem "topos" hoje, mas pode ter amanhã 3. Ajuda a refletir sobre o que aconteceu com o SUS e lembrar Sergio Arouca que entendia a Reforma Sanitária Brasileira como um "projeto civilizatório". Consequentemente, não é possível escapar das implicações políticas das teorias, muito menos das ideologias em confronto, dos projetos em disputa e das diversas análises para uma situação concreta.

Agradeço o honroso convite dos editores e a leitura atenta, crítica e respeitosa de oito pesquisadores em políticas públicas. Além de criticar, divergir e, eventualmente, concordar com o artigo, os debatedores produziram contribuições substanciais, apontando aspectos não cobertos, lacunas do conhecimento e novas perguntas de investigação. O destaque das teses e a recuperação histórica da "era Vargas" trouxeram mais elementos para compreender a revolução passiva que tem perseguido a sociedade brasileira. No caso da Reforma Sanitária Brasileira, a reforma geral pensada pelo movimento e explicitada enquanto projeto no Relatório Final da 8ªConferência Nacional de Saúde, reduziu-se a uma reforma parcial no seu processo, expressa na versão institucional e administrativa do SUS.

Amélia Cohn aponta como limitante desse processo a estratégia de "ocupação de espaços públicos". Acompanho a sua argumentação quanto às consequências sobre as bases sociopolíticas e às limitações da "transição pactuada". Em outro estudo 4, ressaltei que a via sociocomunitária foi a mais negligenciada, quando comparada com as estratégias legislativo-parlamentar e técnico-institucional. Se o protagonismo dos gestores ajudou a sustentar o processo numa conjuntura adversa, teve como contrapartida a ênfase em aspectos institucionais e administrativos, subsumindo o caráter instituinte do projeto. As origens da Reforma Sanitária Brasileira estão na sociedade civil e não no Estado, governos ou partidos, mas a implementação teve de passar pelo Estado – Legislativo, Executivo e Judiciário. A distinção analítica entre projeto, movimento e processo da Reforma Sanitária Brasileira não é útil apenas para facilitar o encadeamento das evidências numa investigação. Serve, também, para identificar os componentes do projeto, os filtros por que passou e a sua direcionalidade. Mais que isso, ao constatar as idas e vindas do processo, pode potencializar a produção de conhecimento crítico, facilitando a ação do movimento para alterar a correlação de forças na perspectiva do projeto.

A Agenda Estratégica para a Saúde 5, as centenas de cidadãos formados pelo Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) nos últimos anos 6 e a movimentação de milhares de participantes dos congressos da ABRASCO e das Conferências de Saúde sugerem que a Reforma Sanitária Brasileira está viva. Mencionei a participação social como uma das conquistas da Reforma Sanitária Brasileira sem aprofundar, como comenta Sarah Escorel, porque referia outro estudo sobre o SUS. Apesar da sua relevância, as grandes decisões do Estado não passam pelos conselhos e conferências, nem mesmo pelo Parlamento, como adverte Ligia Bahia. Contudo, a articulação de diversas entidades da sociedade civil em torno da Emenda Popular Saúde+10, alcançando quase 2 milhões de assinaturas, e os movimentos do outono-inverno de 2013, reintroduzindo a saúde na agenda política, são sinais de que a Reforma Sanitária Brasileira não é coisa do passado. O emblemático encontro dos moradores da Rocinha com os do Vidigal em direção ao Leblon 7, denunciando que não queriam o teleférico proposto pelo PAC, mas saneamento, saúde e participação, ratifica o conceito ampliado de saúde e as políticas intersetoriais, concebidas pela Reforma Sanitária Brasileira. Não obstante a derrota dos projetos examinados, o minimalismo do Governo Dilma Rousseff na saúde e as respostas diversionistas do Estado ao povo nas ruas, a Reforma Sanitária Brasileira está aí. E, contudo, se move, como teria murmurado Galileu.

O artigo escrito antes da revolta popular que mobilizou mais de 2 milhões de pessoas em 438 municípios 8, defendia a revitalização da sociedade civil no sentido de desequilibrar o binômio da conservação-mudança e ressaltava a força da antítese que emergiria dos movimentos sociais. É claro que cada analista faz a leitura dos fatos e das ações dos atores numa perspectiva autorreferente. Da minha parte vejo nas manifestações a luta pelos direitos assegurados pela Constituição (educação, saúde e participação cidadã) e a extensão de outros (transporte gratuito, saneamento e ética na política e na gestão da coisa pública). São direitos e princípios que constavam nos projetos políticos analisados no texto. Não por coincidência os partidos que governam São Paulo, Rio de Janeiro e a República (e que renegaram tais projetos no governo) foram os mais atingidos pelos protestos 9. Assim, Ana Luiza d'Ávila Viana aponta as responsabilidades do momento, recuperando questões como bem comum e ética.

A aposta nas forças progressistas da sociedade civil não é para ressuscitar as propostas originais da Reforma Sanitária Brasileira. Já se sabe que a história pode se apresentar como tragédia, mas se repete como farsa 10. O estudo do Estado brasileiro realmente existente, não autoriza esperar que ele cumpra o seu dever em relação à saúde sem uma pressão persistente e expressiva da sociedade. Assim, vários debatedores reconheceram que os projetos políticos analisados não foram concretizados, acrescentando outras explicações para o desfecho, tais como a submissão da política social à lógica economicista e os processos de financeirização, mercadorização e desnormatização. Nessa perspectiva, Celia Almeida adverte que a consolidação de uma política democrática não pode ser feita apenas pelo Estado, e resgata a análise das classes sociais para explicar a ideologia e a práxis de novas classes trabalhadoras na estrutura social brasileira.

Cumpre esclarecer que o alívio à pobreza não é ideologia no sentido de falsa consciência para os que priorizam políticas de transferência condicionada de renda. Eles sabem o que fazem. É ideologia enquanto manipulação simbólica e mistificadora, implodindo políticas sociais universais e operando um realinhamento conservador, sob as asas do "lulismo". A questão central, portanto, não é a opção por políticas focalizadas ou universais, posto que um sistema de proteção social abrangente é capaz de integrá-las. A concepção da seguridade inscrita na Constituição já incluía a assistência social articulada à saúde e à previdência. As políticas universais seriam complementadas com intervenções focalizadas para o alcance da equidade, do mesmo modo que o acesso universal e igualitário ao SUS poderia ser balanceado com o recurso à epidemiologia no planejamento de saúde. Entretanto, não é isso que se verificou no Brasil nos últimos 25 anos.

Portanto, privilegiar o enfoque da gênese como ferramenta teórica não significa glorificar o passado, mas analisar objetivamente contradições e conflitos. Questionar o possível que se concretizou não é lamentar os "se" da História que, segundo José Carvalho de Noronha, não tolera tal condicional, mas lembrar que ela não tem fim. Diante de um fenômeno sócio-histórico como a Reforma Sanitária Brasileira e de uma totalidade concreta e complexa como o SUS, faz-se necessário acionar teorias potentes que ajudem a desvendar o que não se encontra nas aparências. Essa escolha teórica é uma aposta política, em vez de "saudade do futuro", como supõe Gilberto Hochman. A Reforma Sanitária Brasileira enquanto processo não terminou, nem tem prazo de validade. Além da "flor viva" que comove Cristiani Vieira Machado, a vitalidade do processo cria espaços para os sujeitos da antítese.

  • 1. Hobsbawm EJ. A era dos impérios, 1875-1914. 13ÂŞEd. São Paulo: Paz e Terra; 2011.
  • 2. Hobsbawm EJ. Cómo cambiar el mundo. Buenos Aires: Crítica; 2011.
  • 3. Manheim K. Ideology and utopia. An introduction to the sociology of knowledge. New York: Harcourt & Brace; 1995.
  • 4. Paim JS. Reforma Sanitária Brasileira: contribuição para a compreensão e crítica. Salvador: EDUFBA/ Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2008.
  • 5. Agenda Estratégica para a Saúde no Brasil: 5 diretrizes de uma política de saúde, 5 estrelas para pobres ou ricos. s.l.: ABRASCO/Associação Paulista de Saúde Pública/Centro Brasileiro de Estudos de Saúde/Conselho Federal de Medicina/Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde/ Rede Unida/Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade; 2011.
  • 6. Amarante P, Costa AM. Diversidade cultural e saúde. Rio e Janeiro: Centro Brasileiro de Estudos de Saúde; 2012. (Projeto Formação em Cidadania para Saúde Coleção Temas Fundamentais da Reforma Sanitária).
  • 7. Antunes C. Os estreantes da Rocinha. Piauí 2013; (83):12.
  • 8. Bava SC. Editorial. Para onde vai o governo? Le Monde Diplomatique 2013; (72):3.
  • 9. Conti MS. Rebelião. Relâmpago, fagulha e incêndio num fim de outono. Piauí 2013; (82):8-9.
  • 10. Marx K. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. In: Marx K, Engels F. Textos. v. 3. São Paulo: Edições Sociais; 1977. p. 199-285.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Out 2013
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