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Decreto que institui a Política Nacional de Participação Social: impactos na saúde

A participação da sociedade civil como componente do processo de formulação, implementação, avaliação e monitoramento das políticas públicas não é tema recente. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu Art. 21 1. Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948. http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm (accessed on 25/Jun/2014).
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dispõe: “Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos”. A Constituição Cidadã de 1988 2. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988. reconhece essa nova institucionalidade, ao dispor no seu Art. 1o, parágrafo único que: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.

Passados 25 anos da promulgação da carta política, o Decreto n o 8.243 3 Brasil. Decreto no 8.243, de 23 de maio de 2014, cria a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social. Diário Oficial da União 2014; 26 mai., de 23 de maio de 2014, cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social, tendo por objetivo a criação, o fortalecimento e a articulação das estruturas democráticas de participação já existentes e sua interface com a administração pública federal e a sociedade civil. O Decreto, portanto, regulamenta matéria constitucional, não se exorbitando de sua função.

Mal recebido e interpretado por alguns setores da sociedade e pelo Poder Legislativo federal, o Decreto n o 8.243/2014 apenas estende aos demais setores da Administração Pública federal o diálogo participativo que o setor da saúde desfruta desde sua 8a Conferência 4. Ministério da Saúde. Relatório da 8a Conferência Nacional de Saúde. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/8_conferencia_nacional_saude_relatorio_final.pdf (accessed on 25/Jun/2014).
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. Ainda no plano constitucional, a participação da comunidade é reconhecida como diretriz orientadora do Sistema Único de Saúde, fruto das conquistas advindas do Movimento da Reforma Sanitária, nas décadas de 1970 e 1980.

Esse ato normativo estabelece instâncias permanentes e temporárias de participação. Dentre as formas permanentes, já conhecidas do setor da saúde estão: conselho de políticas públicas, comissão de políticas públicas, conferência nacional e ouvidoria pública federal. Dentre as instâncias transitórias, destacam-se: mesa de diálogo, fórum interconselhos e os mecanismos participativos, já bastante utilizados pelo Poder Executivo Federal, como audiência pública e consulta pública. O destaque fica para o ambiente virtual de participação social, que se vale das tecnologias de informação e comunicação (TIC) para promover o diálogo entre governo federal e sociedade civil, dada especialmente a abrangência e a complexidade de nossa base territorial e social.

O Decreto inova no campo da participação quando amplia, sobremaneira, a noção de sociedade civil (Art. 2o, I), incluindo dentre os clássicos elementos coletivos do conceito, o cidadão, isoladamente. O conceito de sociedade civil trabalha com uma diversidade de atores sociais, bem como com a pluralidade de práticas e projetos políticos, demonstrando as tensões e contradições existentes no interior dessa sociedade 5. Dagnino E, Olvera AJ, Panfichi A. Para uma outra leitura da disputa pela construção democrática na América Latina. In: Dagnino E, Olvera AJ, Panfichi A, organizadores. A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo: Editora Paz e Terra; 2006. p. 13-91..

É digno de nota o reconhecimento jurídico da ouvidoria pública federal como instância de participação. As ouvidorias públicas, que classicamente são conhecidas como canal de comunicação entre o órgão público e a população, passaram a partir da edição do referido Decreto a ser percebidas como verdadeiros espaços de participação. As informações que chegam por meio das ouvidorias (reclamações, sugestões, dúvidas, queixas, elogios etc.), são importantes insumos que devem ser considerados no processo de tomada de decisão pelo gestor público, pois revelam também os interesses e expectativas de atores da sociedade civil.

Mas são nas modalidades transitórias de participação que o decreto inova, podendo o setor da saúde beneficiar-se dessas inovações trazidas por esse ato normativo.

O Art. 6o, inciso V, apresenta a Mesa de Diálogo. Pela descrição dada pelo Art. 2o, a Mesa de Diálogo é um método alternativo de resolução de conflito. Trata-se de um método de prevenção, mediação e resolução de conflitos.

A Mesa de Diálogo como método de gestão pacífica de conflitos poderá evitar não apenas conflitos sociais nas áreas de políticas públicas, mas também servir como mecanismo participativo de aperfeiçoamento das condições e relações de trabalho. Assim, a Mesa de Diálogo representa um esforço em todos os níveis para gerar um efetivo acesso à justiça, representando um novo mecanismo que pode ser considerado um esforço de mediação, especialmente em vista de suas características de voluntariedade (Art. 14, IV) e natureza tripartite (Art. 14, § único).

As Mesas de Diálogo são entendidas como instância legitimadas para a solução de conflitos sociais pelo próprio meio social, gerando maior conscientização política e participação popular. Boaventura Santos 6. Santos BS. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez Editora; 2005. (p. 157) costuma afirmar que: “não me parece tão pouco que esses mecanismos de resolução dos litígios à margem do controle do Estado sejam intrinsecamente negativos ou atentatórios da democracia. Podem, pelo contrário, ser agentes de democratização da sociedade”.

Os fóruns interconselhos são encontros temporários destinados à apreciação de temas transversais. O Decreto n o 8.243/2014 define sua competência para o diálogo entre representantes de conselhos e comissões de políticas públicas, possibilitando fóruns interconselhos em que se privilegie a intersetorialidade e a transversalidade, o que para as políticas públicas da saúde é benéfico desejável e necessário.

No que se refere à Audiência Pública, deixa o Decreto de corrigir uma falha essencial que dificulta a participação da sociedade civil e é queixa recorrente na área da saúde: a ausência de linguagem simples e objetiva. No entanto, se omissão há ao tratar do tema especificamente em seu Art. 16, nas diretrizes gerais do PNPS (Art. 3o, IV), o Decreto não vacila quando considera direito à informação o uso objetivo e acessível da linguagem e do idioma da população a que se dirige a audiência pública. No que tange à Consulta Pública, o decreto ressalta expressamente o uso da linguagem simples e objetiva no documento objeto da consulta (Art. 17o, II).

A participação da sociedade por meio dos mecanismos de audiência e consultas públicas tem o condão de superar o déficit democrático inerente ao exercício da função normativa pelo Poder Executivo, legitimando assim, mediante a discussão e o diálogo coletivo, o processo de tomada de decisão.

O Decreto inova fortemente na criação do Ambiente Virtual de Participação Social (Art. 2o, X, Art. 6o, IX e Art. 18o). Embora as formas de participação já discutidas possam se dar por meio virtual, como a consulta pública, por exemplo, quis a ato normativo criar uma categoria a mais de diálogo entre a sociedade civil e a Administração federal, por intermédio da Internet.

A opção pelo ambiente virtual possibilita a ampliação do espaço de diálogo e envolve de forma difusa e diversa múltiplos atores e redes sociais que, de outra maneira, dificilmente se concretizaria. Especial atenção é dada à utilização de tecnologias apropriadas aos diferentes tipos de deficiência, possibilitando a inclusão de cidadãos até então excluídos da democracia direta.

Tais ambientes virtuais de participação social, mesmo que inexistentes na saúde, poderão vir a ser de grande utilidade nos debates e na construção de políticas públicas de saúde mais universais e inclusivas, que observem a diversidade e o multiculturalismo da sociedade brasileira. Nesse sentido, a experiência brasileira no fomento da participação da sociedade civil na política pública de saúde consegue realizar as três dimensões participativas descritas por Rousseau 7. Rousseau JJ. Do contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Editora Martins Fontes; 1996.: participação como educação, participação como controle e aceitação das decisões coletivas e participação como integração.

Destaque-se, por fim, que o modelo participativo da saúde brasileira é exemplo no plano internacional, dada a dimensão de sua capilaridade, alcançada em especial por meio da política de indução propiciada pela edição da Lei n o 8.142/1990. Nesse panorama, a recente promulgação do Decreto presidencial representa um passo importante rumo ao fortalecimento de antigos e novos espaços de discussão coletiva, e agora, não apenas no âmbito das políticas de saúde, mas de outras políticas públicas que também guardam interface estreita com a saúde.

  • 1
    Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos de 10 de dezembro de 1948. http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm (accessed on 25/Jun/2014).
    » http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm
  • 2
    Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal; 1988.
  • 3
    Brasil. Decreto no 8.243, de 23 de maio de 2014, cria a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social. Diário Oficial da União 2014; 26 mai.
  • 4
    Ministério da Saúde. Relatório da 8a Conferência Nacional de Saúde. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/8_conferencia_nacional_saude_relatorio_final.pdf (accessed on 25/Jun/2014).
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/8_conferencia_nacional_saude_relatorio_final.pdf
  • 5
    Dagnino E, Olvera AJ, Panfichi A. Para uma outra leitura da disputa pela construção democrática na América Latina. In: Dagnino E, Olvera AJ, Panfichi A, organizadores. A disputa pela construção democrática na América Latina. São Paulo: Editora Paz e Terra; 2006. p. 13-91.
  • 6
    Santos BS. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez Editora; 2005.
  • 7
    Rousseau JJ. Do contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Editora Martins Fontes; 1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2014

Histórico

  • Recebido
    26 Jun 2014
  • Aceito
    30 Jun 2014
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