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Resenha

Jones, SH; Adams, TE; Ellis, C; Oliveira, MAO; Jaramillo, NJ. HANDBOOK OF AUTOETHNOGRAPHY (Coleção Queer). 2013. Left Coast Press, Walnut Creek: 736. 978-15-98746-00-6

Autoetnografia

Editado por Stacy Holman Jones, Tony E. Adams e Carolyn Ellis, Handbook of Autoehnography é um livro intrigante, fascinante e revolucionário, no sentido científico, político e sociológico. O livro organizado em quatro seções é composto por 736 páginas distribuídas em 34 capítulos escritos por diferentes autores e apresenta uma nova abordagem metodológica: a autoetnografia, que em linhas gerais tem como objetivo requalificar a relação entre objeto e observador, ressaltando a importância desta interação e da experiência pessoal do pesquisador como forma de construção do conhecimento.

Segundo Jones, Adams e Ellis, o termo “auto-etnografia” foi utilizado inicialmente pelo antropólogo Hayano em 1979, depois, no início dos anos de 1980, esta abordagem metodológica começou a ser desenvolvida e definida como um método de pesquisa, quando compreensões mais sofisticadas e complexas do campo de pesquisa emergiram e sua conexão com a experiência pessoal começou a ser desenvolvida no Departamento de Fenomenologia, Etnometodologia e Sociologia Existencial na pós-graduação da Universidade de Chicago.

A pesquisa social na maior parte das Ciências Sociais busca a impessoalidade, já a autoetnografia emerge para estudar a experiência pessoal, para ilustrar como esta experiência é importante no estudo da vida cultural, não clamando a produzir um método melhor ou mais válido do que outros, mas provendo outra abordagem nos estudos socioculturais. Autoetnografia representa a experiência pessoal no contexto das relações, categorias sociais e práticas culturais, de forma que o método procura revelar o conhecimento de dentro do fenômeno, demonstrando, assim, aspectos da vida cultural que não podem ser acessados na pesquisa convencional.

O método da autoetnografia propõe a pesquisa social numa prática ainda menos alienadora, em que o pesquisador não precisa suprimir sua subjetividade, pois pode “refletir nas consequências do [seu] trabalho, não só para os outros, mas para [si] mesmo também, e onde todas as partes – emocional, espiritual, intelectual, corporal, e moral – podem ter voz e serem integradas” (p. 53).

Existem cinco chaves para a construção da autoetnografia: (1) visibilidade para o si: é o eu do pesquisador se tornando visível no processo, este eu não é separado do ambiente, ele só existe na relação com o outro, é, portanto, o eu conectado com o seu entorno; (2) forte reflexividade: representa a consciência de si e a reciprocidade entre o pesquisador e os outros membros do grupo, o que conduz a uma introspecção guiada pelo desejo de entender ambos; (3) engajamento: em contraste com a pesquisa positivista que assume a necessidade de separação e objetividade, a autoetnografia clama pelo engajamento pessoal como meio para entender e comunicar uma visão crítica da realidade, de forma que engajamento, negociação e hibridez emergem como temas comuns de uma variedade de textos autoetnográficos; (4) vulnerabilidade: a autoetnografia é mais bem-sucedida quando é evocativa, emocionalmente tocante e quando os leitores são tocados pelas histórias que estão lendo, certamente isto traz algumas vulnerabilidades ao explorar a fraqueza, força, e ambivalências do pesquisador, evocando a abertura de seu coração e mente; (5) rejeição de conclusões: a autoetnografia resiste à finalidade e fechamento das concepções de si e da sociedade, pois é concebida como algo relacional, processual e mutável.

Além disso, para Jones, Adams e Ellis é possível escrever autoetnografia com diferentes características: (1) imaginativo-criativa: representa o tipo mais inovador e experimental, publicações neste estilo têm incorporado poesia e diálogos performativos baseados na autobiografia dos pesquisadores; (2) confessional- emotiva: diferente da escrita convencional e científica, esta abordagem busca expor detalhes que provocam reações emocionais nos leitores; (3) realista-descritiva: este estilo busca descrever a experiência do pesquisador por meio de uma narrativa, integrando detalhes que auxiliam o leitor a reconstruir em suas mentes a realidade descrita; (4) analítico-interpretativa: é uma abordagem acadêmica típica comum na pesquisa em ciências sociais, que tende a suportar a análise e a interpretação sociocultural.

A autoetnografia tem sido utilizada, dessa forma, para criticar discursos dominantes e hegemônicos, pautados no poder da colonização ocidental, como, por exemplo, o discurso biomédico, no qual narrativas autoetnográficas de pacientes desafiam o discurso médico que exclui a experiência de seus corpos. O corpo oferece o nexo epistemológico e ontológico, para a emersão de novos insights, é o ponto zero da percepção, o centro onde se define o horizonte do eu. Afirma Pelias, no capítulo Writing Autoethnography, que: “escrevendo sobre mim eu falo a partir do corpo, é uma escola sintonizada no visceral e somático, meu corpo e minha mente trabalham como numa orquestra, como o lugar onde a história é gerada internamente, somaticamente, para se manifestar externamente, semanticamente; eu sou meu corpo falando” (p. 388).

A perspectiva epistêmica da autoetnografia não vai contra a objetividade de outros métodos de pesquisa, uma vez que pode ser mais bem compreendida como uma postura perante um texto, na qual “não existe neutralidade quando escrevemos algo, assim como quando lemos nós trazemos todas as nossas relações para as páginas” (p. 229). Na autoetnografia escreve-se pessoalmente oferecendo emoção, abertura à vulnerabilidade e desafio ao texto ortodoxo que pretende ser objetivo, super-racional e textualmente distanciado. Abrir a vulnerabilidade implica visibilizar o “irracional, particular, privado, e subjetivo”, em contraponto com o racional, universal, público e objetivo.

A pesquisa convencional, mesmo no campo das Ciências Sociais, ditada pela cultura ocidental, dos países industrializados, ricos e colonizadores, constrói com a perspectiva positivista um conjunto de “normas” a serviço do projeto da Modernidade. A etnografia ortodoxa, por exemplo, busca uma descrição objetiva e em terceira pessoa, normalmente construída por um pesquisador branco (homem ou mulher), ocidental e de classe média. A autoetnografia, todavia, parte do pressuposto que o conhecimento não tem como ser neutro nas instituições educacionais e nem fora delas. A persistente valorização da objetividade cria um viés, que é mascarado pela própria objetividade, distorcendo o conhecimento em caminhos opressivos e refletindo a perspectiva conservadora da maioria dos trabalhos acadêmicos. Por isso, uma das propostas da autoetnografia é servir à justiça social, como componente político que visa a explorar e explicitar elementos da iniquidade em tempos e espaços sociais particulares. De forma que na autoetnografia o autor é instigado a ser “a mudança que quer ver no mundo” (Gandhi), ou seja, é um crítico social produtor de atos microssociais que explicita injustiças e produz ambiguamente justiça social.

Assim, conclusivamente, o texto autoetnográfico pretende abrir a perspectiva científica para além da racionalidade objetiva, integrando os aspectos negligenciados pela cultura científica ocidental na produção do conhecimento. Além disso, a autoetnografia busca alcançar dimensões maiores que a de um método científico, propondo, por meio do engajamento e reflexividade, que cada autor viva e escreva sobre a vida de forma honesta, complexa e apaixonada.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2015
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