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O papel decisivo da 15a Conferência Nacional de Saúde na defesa do Sistema Único de Saúde

O artigo de Gadelha não poderia ser mais oportuno, tendo em vista a conjuntura nacional que tende a agravar as condições, que já eram difíceis, de implementação do SUS de acordo com os princípios constitucionais e legais que normatizaram a sua estruturação. O pano de fundo é o que ele denomina, na introdução, como “ascensão de um fascismo social”, aliado ao “fascismo contratual”, e a conjuntura brasileira caracterizada pela recessão econômica e pelo avanço de propostas conservadoras e neoliberais.

O autor chama a atenção para o papel desempenhado pelos processos conferencistas – que duram cerca de um ano, iniciando no nível local de gestão e se estendendo em etapas que se sucedem até a realização das conferências nacionais – não apenas no fortalecimento da participação social, mas do próprio sistema de saúde. Ao fazê-lo, demarca as diferenças fundamentais entre o grupo de conferências formado pela 1a a 7a, sem participação autônoma da sociedade civil; a 8a, de “caráter quase mítico”; os conjuntos que se estendem da 9a a 11a, que demarcaram os princípios que orientaram as políticas de saúde subsequentes; e da 12a a 14a, com menor capacidade de influência sobre as agendas governamentais. Ao final, destaca as peculiaridades do processo conferencista que culminará com a 15a CNS, a ser realizada em Brasília, de 1 a 4 de dezembro deste ano.

Gadelha nos conduz a uma reflexão sobre os dilemas que o SUS enfrenta. Um deles é a dimensão quase estrutural do histórico subfinanciamento público do sistema. Desde a sua criação até tempos futuros, em que análises muito otimistas preveem aumento expressivo do gasto público com saúde, as despesas governamentais com a área apresentam patamares muito baixos se comparadas a outros sistemas que oferecem acesso universal a serviços de saúde. Outro dilema é a tensa articulação do híbrido “organizacional com a proliferação de diversos arranjos público-privado”, cuja estabilidade frágil se agrava no presente. Os cenários futuros possíveis para essa articulação, que, segundo ele, devem ser debatidos durante o processo conferencista deste ano, favorecem a que se indague sobre como a 15a CNS pode colaborar para que no futuro o SUS se caracterize pela “preponderância da institucionalidade estatal sob a égide do direito público; pela universalidade integral com redes regionais de serviços, sob a governança constitutiva e direcional, coordenação federativa, regulação forte e controle social ”. Essa é a questão chave que Gadelha não apenas indaga, mas procura responder, preocupado, como todos devemos estar com as ameaças, sem precedentes, que as propostas de cunho conservador e privatistas representam à própria existência de um sistema de acesso universal à saúde. O exemplo mais candente, mencionado pelo autor, é o da PEC no451/2014 , que obriga todos os empregadores a pagarem planos de saúde suplementar aos seus empregados. A perspectiva de aprovação da PEC é potencializada pelo fato de seu autor ser o poderoso presidente da Câmara de Deputados.

Pode-se discutir criticamente a afirmação, que o autor empresta de Santos & Meneses11. Santos BS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez Editora; 2010., de que estaria em curso em nosso país a ascensão um fascismo social convivendo com democracia liberal. A inadequação do uso do conceito de “fascismo” se refere às características específicas de regimes fascistas, marcadamente o totalitarismo, que não são compatíveis com a democracia liberal. A existência de propostas fascistas de grupos autoritários e conservadores não é novidade no Brasil. Novo, no pós-1988, é o fato desses grupos expressarem suas preferências e propostas na arena política nacional, e receberem apoio explícito ou velado de boa parcela das lideranças políticas e de um conjunto muito ativo de pessoas e grupos que encontram espaço nas mídias tradicionais e novas para manifestar suas opiniões. A ideia de que estaria em constituição um “fascismo contratual” caracteriza mal a gradativa, porém consistente, construção de um consenso politicamente majoritário, de cunho liberal, que argumenta que é indispensável para o crescimento econômico a diminuição da interferência governamental sobre os mecanismos de mercado, inclusive na regulação da provisão, no financiamento e na oferta de bens e serviços sociais. Esse reparo conceitual é importante para que tenhamos claro o que de fato os defensores do SUS enfrentam. É mais fácil isolar politicamente apoiadores de propostas fascistas do que neutralizar pragmáticos conservadores e liberais que argumentam que, dada a crise fiscal, inexistem recursos financeiros governamentais para manter um sistema de acesso universal à saúde e menos ainda para superar o subfinanciamento crônico do sistema.

Porém, independentemente do modo como caracterizemos “o inimigo”, o texto de Gadelha aponta para a necessidade premente de unificação das ações coletivas e individuais na defesa do SUS, especialmente neste ano de conferência nacional e de proliferação de propostas que podem modificar as bases legais e administrativas, que garantem na prática a efetivação dos princípios de universalidade de acesso e integralidade da atenção no sistema de saúde. A defesa de interesse de grupos – de pessoas com patologias, de gestores municipais, de corporações profissionais, de segmentos populacionais, entre outros – é legítima e terá espaço privilegiado na 15a CNS. Entretanto, os processos conferencistas sempre foram o principal espaço de articulação, e de capilarização social, da coalizão político-societal que apoia o fortalecimento do sistema e a ampliação dos controles públicos sobre serviços financiados direta ou indiretamente – mediante isenções fiscais, por exemplo – por recursos financeiros dos governos. A inestimável contribuição do artigo de Gadelha, na inquietante conjuntura atual, é destacar o principal objetivo estratégico a ser perseguido por essa coalizão durante a 15a CNS. Segundo ele (p. 2056), é preciso “(...) mobilizar novos e variados atores, envolver o legislativo, movimentos sociais e o judiciário e – por que não? – o setor privado ”. É a “oportunidade para que possamos resgatar a capacidade de formulação das instituições e atores comprometidos com o SUS ”.

No artigo, Gadelha propõe uma agenda de debates para o processo conferencista em curso. Ele sintetiza de modo contundente as dificuldades que o SUS enfrenta, desde a sua implantação na década de 1990, acrescidas no presente pela ampliação da visibilidade e da ação política de defensores de propostas conservadoras e liberais que podem, caso venham a ser implementadas, afetar as bases fundamentais do sistema definidas naConstituição Federal de 1988 e nas leis e normativas que garantem o acesso universal a serviços e bens de saúde e integralidade da atenção. Aos participantes da 15a CNS cabe a responsabilidade histórica de enfrentar o desafio de reinventar o sistema “para garantir seus princípios e diretrizes”..

Referências

  • 1
    Santos BS, Meneses MP. Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez Editora; 2010.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Out 2015
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