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A tragédia da mineração e do desenvolvimento no Brasil: desafios para a saúde coletiva

La tragedia de la minería y el desarrollo en Brasil: desafíos para la salud colectiva

O dia 5 de novembro de 2015 ficará marcado como uma das maiores tragédias socioambientais do país. Outros desastres também ocorreram. Em 1984, um incêndio na Vila Socó, Cubatão, Estado de São Paulo, matou oficialmente 98 pessoas após o vazamento num gasoduto da Petrobrás. Porém, estima-se que mais de 500 perderam suas vidas. Restos de corpos carbonizados, sem documento nem memória ou reconhecimento.

Na tragédia de Mariana, Minas Gerais, mais de 70 milhões de metros cúbicos de lama de rejeitos da mineração de ferro vazaram após o rompimento da barragem de Fundão pertencente à Samarco, uma joint-venture da brasileira Vale e da anglo-australiana BHP Billiton. No caminho da lama mortal, 17 corpos foram encontrados, pelo menos 2 permanecem desaparecidos, com mais de 1.200 pessoas desabrigadas. A grande maioria dos mortos é de trabalhadores terceirizados (12). Dos cinco outros mortos soterrados, duas são crianças (5 e 7 anos) e três entre 60 e 73 anos, revelando a vulnerabilidade de crianças e idosos.

Além de destruir vilarejos como Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, a lama percorreu 663km ao longo dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce, chegando à foz deste e afetando seu ecossistema marinho em área de reprodução de espécies marinhas. Foram atingidos 35 municípios em Minas Gerais e quatro no Espírito Santo, com cerca de 1,2 milhão de pessoas afetadas pela falta d’água que temem a contaminação da água do rio Doce, já que ela voltou a ser fornecida para consumo humano. Na bacia do rio, 11 toneladas de peixes mortos foram recolhidas e talvez cinco espécies tenham sido extintas, com décadas sendo estimadas para a recuperação da área. Além das populações urbanas, dentre os mais atingidos encontram-se pescadores, ribeirinhos, o povo indígena Krenak, agricultores e assentados da reforma agrária 11. Milanez B, Santos RSP, Wanderley LJM, Mansur MS, Pinto RG, Gonçalves RJAF, et al. Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos econômicos, políticos e sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG). http://www.ufjf.br/poemas/files/2014/07/PoEMAS-2015-Antes-fosse-mais-leve-a-carga-vers%C3%A3o-final.pdf (acessado em 18/Dez/2015).
http://www.ufjf.br/poemas/files/2014/07/...
. Pesquisa da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) 22. Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária. Tragédia em Mariana: produção agropecuária em áreas atingidas está comprometida. https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/8410974/tragedia-em-mariana-producao-agropecuaria-em-areas-atingidas-esta-comprometida (acessado em 19/Dez/2015).
https://www.embrapa.br/busca-de-noticias...
revelou que a área de 1.430 hectares atingida pela lama nos municípios de Mariana, Barra Longa e Rio Doce não apresenta mais condições para o desenvolvimento de atividades agropecuárias, pois a camada superior depositada impede a fertilidade do solo e demorará anos de investimento para sua recuperação.

A mineração de ferro não produz só bilhões de dólares e “progresso”: ela está repleta de perigos, mortes e destruição socioambiental. Trabalhadores morrem e adoecem; grandes áreas são desmatadas; caminhões e trens circulam atropelando pessoas e animais; as usinas de beneficiamento geram poluição atmosférica; aquíferos formados em regiões ferríferas são contaminados e destruídos; em tempos de crise hídrica a água consumida é enorme, inclusive pelos minerodutos; a quantidade de rejeitos é gigantesca e acumulada em barragens; e o rompimento delas com lamas com diferentes graus de toxicidade podem se transformar em grandes tragédias. Em Minas Gerais, os acidentes graves com barragens vêm se repetindo com frequência: 2001, 2003, 2007, 2008, 2014, com mortes e destruição ambiental. Mariana foi uma tragédia anunciada.

Como essa tragédia pode ser compreendida pela saúde coletiva e quais desafios ela implica?

A primeira e, na nossa concepção, mais importante é compreender o desastre com base na determinação social da saúde com um enfoque socioambiental crítico que relacione as iniquidades em saúde com os processos de desenvolvimento econômico, suas contradições, conflitos e injustiças ambientais 33. Porto MF, Rocha DF, Finamore R. Saúde coletiva, território e conflitos ambientais: bases para um enfoque socioambiental crítico. Ciênc Saúde Coletiva 2014; 19:4071-80.. Em outras palavras, pensar as iniquidades em saúde em conexão com as desigualdades sociais, espaciais e ambientais no contexto do atual capitalismo globalizado.

Essa perspectiva permite o diálogo da saúde coletiva com outros campos relevantes frente à atual crise socioambiental, como a ecologia política e a economia ecológica, numa aproximação entre abordagens transdisciplinares, estruturalistas e construtivistas que colocam a promoção da saúde em articulação com lutas emancipatórias por direitos humanos, sociais e territoriais, bem como por outras economias e sociedades mais solidárias, justas e ambientalmente mais sustentáveis.

Como afirma a nota da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) 44. Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Nota da Abrasco sobre a tragédia da mineração em MG: SAMARCO-VALE-BHP. É preciso questionar a ideia de progresso e crescimento econômico a qualquer custo. http://www.abrasco.org.br/site/2015/11/nota-da-abrasco-sobre-a-tragedia-da-mineracao-em-mg-samarco-vale-bhp/ (acessado em 15/Dez/2015).
http://www.abrasco.org.br/site/2015/11/n...
, o Brasil é o segundo maior exportador de minério de ferro, sendo a Vale a maior empresa mundial neste ramo, além de grande financiadora de partidos e políticos que, após eleitos, atuam parcial e irresponsavelmente como legisladores e gestores. Isso fortalece a crescente autorregulação das empresas e o enfraquecimento do Estado na regulação e fiscalização. O caso do licenciamento ambiental da barragem rompida da Samarco é tragicamente exemplar e demonstra a enorme assimetria entre a velocidade dos investimentos e a incapacidade/cumplicidade do Estado.

A ampliação da produção de minério de ferro, ferro gusa e aço bruto, assim como os produtos de exportação do agronegócio, marcam a reprimarização da economia neoextrativista brasileira das últimas duas a três décadas. O mercado de commodities possui baixo valor agregado, explora de forma degradante trabalhadores e natureza e é extremamente volátil: o preço da tonelada de minério de ferro variou de 12 dólares em 2000 para 50 em 2008, 177 em 2011 e, a partir de 2012, caiu até retornar aos 50 dólares em outubro de 2015.

A megamineração é pautada pela concentração do capital financeiro entre grandes corporações transnacionais, inclusive a Vale. Ela é viabilizada pela enorme quantidade de áreas mineradas, com tecnologias que permitem a produção do minério de ferro mesmo em menores concentrações, o que amplia a quantidade de rejeitos a serem armazenados. As melhores soluções socioambientais deveriam reduzir a quantidade de rejeitos, como a separação eletromagnética ou a empilhagem a seco, restringindo ou mesmo eliminando a existência das barragens. Mas por que elas continuam a ser adotadas em países como o Brasil?

Em primeiro lugar, porque a vida e o meio ambiente valem pouco, caracterizando o que economistas chamam de externalidades negativas. O risco ou existência de desastres, mortes e destruição ambiental não são incorporados no preço do minério. As poucas multas de órgãos ambientais que a Samarco pagou após descumprimentos e acidentes foram irrisórias. A segunda razão é a crise pós-boom: com a queda dos preços do ferro no mercado internacional puxada fortemente pela China, as empresas de mineração reduzem investimentos em inovações tecnológicas, custos operacionais e trabalhistas, fato que explica o crescimento da terceirização e corte de trabalhadores em empresas como a Vale e a Samarco. Paradoxalmente, em tempos de crise aceleram-se projetos de aumento da produção para manter níveis de lucro e pagamento aos acionistas. Há uma forte correlação entre aumento de acidentes e períodos pós-boom em empresas mineradoras 11. Milanez B, Santos RSP, Wanderley LJM, Mansur MS, Pinto RG, Gonçalves RJAF, et al. Antes fosse mais leve a carga: avaliação dos aspectos econômicos, políticos e sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG). http://www.ufjf.br/poemas/files/2014/07/PoEMAS-2015-Antes-fosse-mais-leve-a-carga-vers%C3%A3o-final.pdf (acessado em 18/Dez/2015).
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Diversos artigos e relatórios após o desastre revelam que problemas ocorreram desde a gestão, licenciamento, fiscalização, monitoramento, até a vigilância e o sistema de emergência, incluindo uma espécie de “apagão” do Sistema Único de Saúde (SUS) local, estadual e federal. As principais ações pós-desastre tiveram a Samarco na coordenação, inclusive em questões de serviço social e saúde mental das mais de 600 pessoas que perderam suas casas e foram morar em pousadas e hotéis.

O desastre, portanto, é sistêmico, tecnológico e social. Reflete uma das armadilhas de nosso modelo de desenvolvimento pautado na exportação de commodities no qual são peças do mesmo tabuleiro a megamineração, o poderio das corporações, a cumplicidade e fragilidade do Estado, o modelo “faroeste” de gestão ambiental, e as dificuldades dos trabalhadores e comunidades de se organizarem e participarem na defesa de seus direitos.

Para reverter o atual padrão, tem-se de enfrentar o lamaçal que vulnerabiliza as instituições que regulam, fiscalizam e deixam de impor mais precaução e prevenção aos empreendimentos. A aplicação do princípio da precaução na defesa da vida deveria forçar o abandono de tecnologias não seguras. É necessário fortalecer os sistemas de emergência e preparação de desastres junto aos órgãos de defesa civil e o SUS, além da vigilância ambiental da água para consumo humano. Além disso, os responsáveis das empresas causadoras e dos órgãos públicos omissos deveriam ser penalizados financeira, civil e criminalmente. Todavia essas transformações não são fáceis. Mesmo com toda a comoção nacional, poucas semanas após a tragédia foi aprovado, de forma escandalosa, por ampla maioria na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, o Projeto de Lei no2.946/15, enviado pelo governador Pimentel que flexibiliza o licenciamento ambiental.

Não há muita saída: a saúde coletiva precisa valorizar a vida e a natureza com mais democracia e justiça ambiental. A economia ecológica diria: reduzir o metabolismo social insustentável pela enorme extração de matérias primas e produção de rejeitos do produtivismo e consumismo de nossa civilização por meio de outras economias mais solidárias, justas e sustentáveis. A ecologia política diria: enfrentar com mais democracia e luta por direitos os inúmeros conflitos ambientais e a enorme assimetria de poder entre, de um lado, setores, corporações, instituições e países que mais se beneficiam com esse comércio injusto e, de outro, comunidades e trabalhadores que mais sofrem ou sofrerão com a destruição da vida e do meio ambiente.

E a saúde coletiva, o que pode dizer ou fazer? Por exemplo, alinhavar esforços e mobilizações que mantenham viva a memória do desastre, a sede por justiça, a busca consequente por conhecimento, a comunicação de informações confiáveis e o apoio às instituições públicas compromissadas e responsáveis. Quais territórios e populações foram atingidos? Quais os níveis de contaminação e os efeitos à saúde presentes e esperados na população exposta, em especial no solo e na qualidade da água para consumo humano? Como os ecossistemas e a biodiversidade foram afetados? Como apoiar a revitalização da bacia do rio Doce e a reconstrução dos territórios? Quais atividades econômicas, sociais e culturais na região são mais saudáveis e sustentáveis nessa reconstrução, incluindo a agricultura familiar e agroecológica, o artesanato, o turismo ecológico e histórico-cultural? Como reduzir a periculosidade da mineração?

Nesse momento, inúmeras iniciativas estão sendo construídas por instituições, grupos acadêmicos, movimentos sociais e comunidades atingidas. É necessário aumentar a sinergia entre elas e evitar que certas práticas institucionais e políticas bloqueiem seu potencial transformador.

Afinal, a saúde coletiva poderia se perguntar: desenvolvimento para que, para quem e de que forma? Se for farsa, como diria Marx, a repetição vira tragédia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2015
  • Aceito
    06 Jan 2016
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