Introdução
As vacinas, como quaisquer outros produtos biológicos, não estão livres de produzir efeitos indesejáveis e requerem atenção especial porque podem desencadear eventos adversos leves ou graves, esperados ou inusitados e que, se não forem identificados, investigados e acompanhados, levam a prejuízos na adesão ao programa de imunização 1,2.
Evento adverso pós-vacinação (EAPV) é qualquer ocorrência médica indesejada após a vacinação e que não necessariamente possui relação causal com o uso da vacina ou outro imunobiológico 3. Muitos dos eventos são meramente associações temporais, não se devendo à aplicação das vacinas. Assim, quando eles ocorrem, há necessidade de cuidadosa investigação, visando ao diagnóstico diferencial 4.
A vacina sarampo, caxumba e rubéola (SCR) - também conhecida como vacina tríplice viral - é uma vacina combinada que protege contra o sarampo, caxumba e rubéola, sendo pouco reatogênica e bem tolerada. Os eventos adversos decorrentes do uso dessa vacina ocorrem em maior intensidade por reações de hipersensibilidade a qualquer componente presente nela 4 e, dentre os mais graves, está a anafilaxia 5.
Anafilaxia é uma reação aguda de hipersensibilidade, com envolvimento de múltiplos sistemas, de progressão rápida, grave e com risco de morte 6. Sua ocorrência é rara, com uma incidência estimada para a vacina SCR de um caso por 100 mil doses aplicadas 7.
No calendário nacional de vacinação do Ministério da Saúde, a vacina SCR está indicada a partir de um ano de idade 8, e nas campanhas nacionais de seguimento contra o sarampo, o público-alvo é a criança de um a menor de cinco anos 9, de acordo com a situação epidemiológica e acúmulo de suscetíveis ao longo dos anos. Na faixa etária de 10 a 19 anos, estão indicadas duas doses dessa vacina, e dos 20 aos 49 anos, uma dose 8.
Durante a campanha nacional de seguimento contra o sarampo, realizada no ano de 2014, os estados brasileiros começaram a notificar a ocorrência de anafilaxia relacionada à vacina SCR do produtor A e informaram que essa reação estava ocorrendo principalmente em crianças com alergia à proteína do leite de vaca (APLV).
Nessa campanha, foi utilizada a vacina SCR de três produtores distintos, sendo distribuídas 19.169.011 milhões de doses, com o seguinte quantitativo por produtor: 17.657.753 (produtor A), 811.340 (produtor B) e 699.918 (produtor C). A distribuição da vacina SCR do produtor A iniciou-se no Brasil a partir de julho de 2014. A vacina dos demais produtores já era utilizada na rotina.
A Sociedade Brasileira de Alergia e Imunologia, por meio de consulta à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), verificou a presença de lactoalbumina hidrolisada na composição da vacina do produtor A, a qual não constava na bula 10. Rumores em uma comunidade do Facebook (Põe no Rótulo; http://www.facebook.com/poenorotulo?ref=ts&fref=ts) sobre relatos de “alergia a vacina SCR do produtor A, relacionada à presença deste componente” também chamaram a atenção do Ministério da Saúde. Suspeitou-se, então, que os EAPV notificados poderiam estar relacionados à vacina SCR desse produtor. Na análise descritiva realizada anteriormente a este estudo, por meio do sistema de informação de EAPV e e-mails recebidos pelos estados, evidenciou-se que, dos casos notificados nas 27 Unidades Federadas do Brasil, uma parcela das crianças apresentava APLV e as taxas de anafilaxia referentes aos demais produtores encontravam-se dentro do esperado 7.
Verificou-se ainda que o Estado de Santa Catarina apresentou o maior número de casos de anafilaxia (16), distribuídos nos municípios de Araquari (1), Armazém (1), Caçador (1), Florianópolis (2), Jaraguá do Sul (1), Joaçaba (2), Joinville (1), Lindóia do Sul (1), Pomerode (1), São José (3), São Ludgero (1) e Taió (1). Esse estado também apresentou as maiores taxas de anafilaxia por doses distribuídas (2,46) e aplicadas (5,05), que ficaram acima do esperado.
Com isso, propôs-se a realização de um estudo analítico no Estado de Santa Catarina, a fim de testar a hipótese identificada, em análise descritiva, de que as crianças vacinadas com a SCR do produtor A e que apresentaram APLV tiveram anafilaxia.
Os objetivos desta investigação consistem em descrever os casos de anafilaxia relacionados à vacina SCR do produtor A por tempo, lugar e pessoa, avaliar os possíveis fatores de risco associados à anafilaxia pós-vacina SCR desse produtor e propor recomendações.
Método
Realizou-se um estudo analítico do tipo caso-controle não pareado (1:4), no Estado de Santa Catarina. As crianças maiores de um ano a menores de cinco anos que receberam a vacina SCR do produtor A na rotina e na campanha nacional de seguimento contra o sarampo, no período de 14 de julho de 2014 a 12 de janeiro de 2015, e que foram notificadas com anafilaxia foram denominadas casos. Nas mesmas condições, as que não foram notificadas com anafilaxia foram chamadas controles.
O diagnóstico de anafilaxia utilizado para o estudo baseou-se nas seguintes considerações: indispensável o comprometimento de dois ou mais órgãos ou sistemas, incluindo sempre os sistemas cardiovascular e respiratório, bem como sinais e sintomas maiores ou menores e níveis de certeza um ou dois ou três.
Quanto aos sinais e sintomas maiores por sistemas, utilizaram-se: (a) dermatológicos - urticária generalizada ou exantema generalizado; angioedema localizado ou generalizado; prurido generalizado com rash cutâneo; (b) cardiovasculares - hipotensão; sinais de choque (pelo menos três dos seguintes: taquicardia, enchimento capilar maior que três segundos, diminuição da pressão venosa central e diminuição do nível de consciência ou perda de consciência); (c) respiratórios - broncoespasmo; estridor; edema de vias aéreas superiores (lábios, língua, garganta, úvula e laringe); sinais de angústia respiratória (dois ou mais dos seguintes: taquipneia, uso de musculatura acessória, tiragem, cianose e gemência).
Quanto aos sinais e sintomas menores por sistemas, utilizaram-se: (a) dermatológicos - prurido generalizado sem rash cutâneo; sensação de ardência generalizada; urticária no local da aplicação; coceira e vermelhidão nos olhos; (b) cardiovasculares - diminuição da circulação periférica (e, pelo menos, dois dos seguintes: taquicardia, enchimento capilar maior que três segundos, sem hipotensão, diminuição do nível de consciência); (c) respiratórios - tosse seca persistente; rouquidão; dificuldade para respirar sem chiado ou estridor; sensação de aperto na garganta; espirros e rinorreia; (d) gastrointestinais - diarreia; dor abdominal; náuseas e vômitos; (e) laboratório (aumento de mastócitos acima dos valores normais).
No que diz respeito aos níveis de certeza, utilizou-se o seguinte: para todos os níveis de certeza (aparecimento repentino E progressão rápida de sinais e sintomas E comprometimento de múltiplos sistemas - maior que dois); nível um de certeza (maior ou igual a um critério dermatológico maior E maior ou igual a critério cardiovascular maior E/OU maior ou igual a um critério respiratório maior); nível dois de certeza (maior ou igual a um critério cardiovascular maior E maior ou igual a um critério respiratório maior OU maior ou igual a um critério cardiovascular OU respiratório maior E maior ou igual a um critério menor que compromete mais que um sistema diferente - que não seja o sistema cardiovascular ou respiratório - OU maior ou igual a um critério dermatológico maior E maior ou igual a um critério cardiovascular menor E/OU critério respiratório menor); nível três de certeza (maior ou igual a um critério cardiovascular menor OU critério respiratório menor E maior ou igual a um critério menor de dois ou mais sistemas) 4.
Os controles foram selecionados por conveniência, a partir da unidade básica de saúde (UBS) onde os casos tinham recebido a vacina. Quando o domicílio da criança não era encontrado, o responsável legal estava ausente ou ainda ocorria recusa do entrevistado, seguia-se para a próxima casa em que havia uma criança que se encaixava na definição de caso, até quatro controles serem encontrados. Nas casas com mais de uma criança, ficou definido como controle aquela em que a carteira de vacinação foi visualizada primeiramente.
A coleta de dados foi feita por meio de um questionário padronizado semiestruturado, elaborado especificamente para a realização deste trabalho. Nesse questionário, havia variáveis referentes às questões sociodemográficas, vacinas aplicadas, lote da vacina, presença de APLV diagnosticada por médico, presença de EAPV anterior, história de alergia alimentar familiar, aleitamento materno, diagnóstico e tratamento de APLV.
Utilizou-se um Consentimento Verbal Esclarecido, o qual era lido para os pais ou responsáveis legais pela criança. Questionou-se se eles concordavam em responder as perguntas apresentadas. Ainda, durante a leitura do Consentimento Verbal Esclarecido, assegurava-se para os pais ou responsáveis que os dados individualizados não seriam divulgados, garantindo-se, assim, o sigilo das informações prestadas por eles.
Para a análise estatística, utilizou-se o odds ratio (OR) como medida de associação, com intervalo de 95% de confiança (IC95%) e nível de 5% de significância . Para as variáveis categóricas, foi utilizado o teste exato de Fisher e qui-quadrado. Para a análise de dados, foram utilizados os programas Epi Info 7.1.4.0 (Centers for Disease Comtrol and Prevention, Atlanta, Estados Unidos) e Microsoft Office Excel 2010 (Microssoft Corp., Estados Unidos).
Os dados analisados no presente estudo foram obtidos no âmbito das ações de vigilância epidemiológica, de modo que o estudo foi dispensado de apreciação por Comitê de Ética em Pesquisa, em conformidade com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde.
Resultados
Quinze casos e 60 controles (1:4), em 12 municípios do Estado de Santa Catarina, foram incluídos no estudo. O Município de Lindóia do Sul não participou do estudo, uma vez que a criança que teve anafilaxia mudou-se para outro município e não foi localizada, e um caso não pertencia ao Município de São José, sendo do Município de Palhoça (Tabela 1). Essas crianças foram classificadas como perdas.
Tabela 1 Distribuição dos casos e controles vacinados contra sarampo, caxumba e rubéola do produtor A, segundo município de residência. Santa Catarina, Brasil, de julho de 2014 a janeiro de 2015.
Nome dos municípios | Casos | Controles | Total |
---|---|---|---|
Araquari | 1 | 4 | 5 |
Armazém | 1 | 4 | 5 |
Caçador | 1 | 4 | 5 |
Florianópolis | 2 | 8 | 10 |
Jaraguá do Sul | 1 | 4 | 5 |
Joaçaba | 2 | 8 | 10 |
Joinville | 1 | 4 | 5 |
Palhoça | 1 | 4 | 5 |
Pomerode | 1 | 4 | 5 |
São José | 2 | 8 | 10 |
São Ludgero | 1 | 4 | 5 |
Taió | 1 | 4 | 5 |
Total | 15 | 60 | 75 |
Nos casos e controles, foram observadas idades médias de 2,26 anos, com desvio padrão (DP = 0,96) e 2,11 anos (DP = 1,05), respectivamente, e primeiro e terceiro quartis de 1,5 e 3,5 para os casos e controles. Todos os casos e controles residiam na zona urbana dos municípios. Dentre os casos, oito (53,4%) eram do sexo masculino, e dentre os controles, 36 (60%).
Foi verificada APLV em oito (10,6%) crianças. Dentre os casos, sete (46,6%) apresentaram APLV e, dentre os controles, apenas um (1,6%). Em 100% dos casos e controles, apresentou-se diagnóstico médico de APLV (Figura 1). A exclusão do leite de vaca da dieta ocorreu em 100% dos casos e controles com APLV. Dentre os casos, cinco (71,4%) consumiam leite de soja e dois (28,6%) consumiam outro tipo de leite que não o leite de vaca.

Figura 1 Casos e controles vacinados contra sarampo, caxumba e rubéola em municípios, segundo alergia à proteína do leite de vaca (APLV). Estado de Santa Catarina, Brasil, julho de 2014 a janeiro de 2015, Brasil.
Na análise bivariada, referente à anafilaxia e APLV, foi verificado OR = 51,62. Com isso, as crianças que apresentaram anafilaxia tiveram 51,62 vezes mais chance de terem APLV em relação àquelas que não apresentaram o evento. Para as variáveis alergia alimentar familiar, aleitamento materno, EAPV anterior e vacinação simultânea, não houve diferenças estatisticamente significativas (Tabela 2).
Tabela 2 Exposições associadas e não associadas à anafilaxia em crianças vacinadas contra sarampo, caxumba e rubéola em municípios. Estado de Santa Catarina, Brasil, de julho de 2014 a janeiro de 2015, Brasil (N = 75).
Exposições | Casos (n = 15) | Controles (n = 60) | OR | IC95% | Valor de p * |
---|---|---|---|---|---|
APLV | 51,62 | 5,59-476,11 | 0,00002 | ||
Sim | 7 | 1 | |||
Não | 8 | 59 | |||
Alergia alimentar familiar | 1,61 | 0,43-6,05 | 0,48 | ||
Sim | 4 | 11 | |||
Não | 11 | 49 | |||
Aleitamento materno | 0,64 | 0,07-5,78 | 1,00 | ||
Sim | 14 | 54 | |||
Não | 1 | 6 | |||
EAPV anterior | 2,07 | 0,17-24,49 | 0,49 | ||
Sim | 1 | 2 | |||
Não | 14 | 58 | |||
Vacina oral contra poliomielite | 1,14 | 0,22-5,96 | 0,61 | ||
Sim | 13 | 51 | |||
Não | 2 | 9 |
APLV: alergia à proteína do leite de vaca; EAPV: evento adverso pós-vacinação; IC95%: intervalo de 95% de confiança; OR: odds ratio.
* Teste exato de Fisher.
Todos os casos e controles receberam a vacina do produtor A, o qual foi identificado por meio do cartão de vacina da criança. Com referência aos lotes vacinais, dentre os casos, foram aplicados seis lotes diferentes, e entre os controles, sete. Não foi possível identificar 12 cartões de vacina da criança ou cartão espelho da UBS, porque não estavam preenchidos ou estavam com o preenchimento incorreto (Tabela 3).
Tabela 3 Distribuição dos lotes das vacinas entre casos e controles vacinados contra sarampo, caxumba e rubéola em municípios. Estado de Santa Catarina, Brasil, de julho de 2014 a janeiro de 2015.
Lote da vacina | Casos | Controles |
---|---|---|
015N4002 | 5 | 14 |
015N4005 | 4 | 13 |
013N3051B | 2 | 5 |
013N3051A | 2 | 1 |
015N4030B | 1 | 1 |
013N3013A | 1 | 6 |
015N4009 | - | 5 |
Lote errado * | - | 3 |
Sem lote | - | 12 |
Total | 15 | 60 |
* Lote não foi recebido em Santa Catarina ou não existia.
Discussão
Com base nas informações coletadas em entrevista domiciliar, ocorreram 15 casos de anafilaxia em 12 municípios do Estado de Santa Catarina.
A anafilaxia pode ser causada pela vacinação e é um dos eventos adversos mais graves associados a ela 6. Sua ocorrência é rara, com uma incidência estimada de 0,1-1,0 por 100 mil doses distribuídas 11. Em relação à SCR, a incidência é de um caso por 100 mil doses aplicadas 7. As taxas de anafilaxia no estado, quando comparadas à literatura, apresentaram-se acima do esperado, tanto para doses distribuídas quanto aplicadas.
Com relação à idade, a média entre os casos e controles foi semelhante, uma vez que o público participante da campanha encontra-se em uma faixa etária delimitada.
A APLV afeta entre 2% e 7,5% das crianças 12,13,14. No estudo, esse percentual foi de 10,6%, diferindo dos resultados encontrados na literatura.
Um dos principais alimentos responsabilizados por alergia em crianças é o leite, com diagnóstico realizado em bases clínicas 15. A APLV é uma doença frequente dos lactentes e da infância e ocorre frequentemente nos primeiros anos de vida 12,13,16, corroborando os achados do estudo.
O tratamento das crianças com APLV, referido pelos pais ou responsáveis, consistiu em exclusão do leite da dieta. O diagnóstico da APLV deve ser realizado de forma criteriosa, já que seu tratamento se baseia na exclusão completa do leite de vaca e de seus derivados 14,17,18,19.
No período analisado, devido à concomitância da campanha de vacinação, uma parte considerável das crianças recebeu também uma dose da vacina oral contra poliomietite (VOP). A vacina pode ser administrada de forma segura e eficaz simultaneamente com as vacinas tríplice bacteriana (DPT), dupla (DT), antitetânica (TT), bacilo de Calmette-Guérin (BCG), varicela e VOP 20,21.
Não foi encontrada associação estatística referente a aleitamento materno, história de alergia alimentar familiar e EAPV anterior, corroborando estudos já realizados 22.
Em 12 crianças, não foi possível identificar o lote da vacina, uma vez que essa informação não constava em seu cartão espelho ou cartão de vacina.
O leite de vaca é frequentemente utilizado em substituição ao leite materno, logo, as suas proteínas são os primeiros alérgenos alimentares com os quais o lactente tem contato, o que o torna o principal alimento envolvido na gênese alimentar 18. Uma das principais proteínas do leite de vaca implicadas na resposta alérgica é a lactoalbumina, a qual estava presente na composição da vacina. Isso sugere relação do componente na ocorrência da anafilaxia em crianças com APLV, uma vez que foi possível estabelecer estatisticamente essa associação (anafilaxia/APLV).
Como limitação do estudo, pode ter ocorrido viés de memória, uma vez que as mães das crianças que apresentaram anafilaxia após a vacinação tendem a superestimar uma tentativa de explicar a ocorrência do desfecho na recordação de exposições.
Recomenda-se orientar preenchimento do lote, de forma correta, no cartão espelho da unidade de saúde e no cartão de vacina da criança. Também é importante realizar pesquisas que avaliem outras características individuais, além da APLV, que possam ter causado anafilaxia nas crianças vacinadas que não tinham diagnóstico da doença e realizar estudos clínicos para identificar proteínas do leite intactas ou em fragmentos de tamanho suficiente para serem reconhecidos por IgE específicas de pacientes com APLV.