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A pandemia de COVID-19 em territórios rurais e remotos: perspectiva de médicas e médicos de família e comunidade sobre a atenção primária à saúde

La pandemia de la COVID-19 en territorios rurales y remotos: perspectiva de médicas y médicos de familia y comunitarios sobre la atención primaria en salud

Introdução

A pandemia da doença causada pelo SARS-CoV-2, denominada COVID-19 11. Wang C, Horby PW, Hayden FG, Gao GF. A novel coronavirus outbreak of global health concern. Lancet 2020; 395:470-3., em abril de 2020, havia atingido todos os estados brasileiros, incluindo territórios rurais e remotos 22. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico Especial - COE-COVID19 2020; (17). https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/May/29/2020-05-25---BEE17---Boletim-do-COE.pdf.
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,33. Codeço CT, Villela D, Coelho F, Bastos LS, Carvalho LM, Gomes MFC, et al. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e socioeconômica. Relatório nº 4. 2ª Ed. http://covid-19.procc.fiocruz.br (acessado em 10/Mai/2020).
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. Esses espaços são caracterizados a partir de múltiplos critérios, como tamanho da população, densidade demográfica, oferta de serviços, participação na agricultura, divisão administrativa e aglomerado de habitações 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,55. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv100643.pdf (acessado em 01/Mai/2020).
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. Incluem populações de áreas rurais, remotas e povos tradicionais, como indígenas, quilombolas, povos das florestas, ribeirinhos, entre outros, chamados de populações do campo, floresta e águas (PCFA) 4,6.7.

Segundo a tipologia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a classificação de urbano e rural considera a densidade demográfica na escala municipal. Para definição de territórios remotos, utiliza-se critério de acessibilidade a centros urbanos e acesso dos municípios a bens e serviços complexos 55. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv100643.pdf (acessado em 01/Mai/2020).
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. Nessa classificação, 45% dos municípios brasileiros têm baixo grau de urbanização, 28% não apresentam população em ocupação densa, considerando-os rurais, e 8% são considerados remotos 55. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Classificação e caracterização dos espaços rurais e urbanos do Brasil: uma primeira aproximação. http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv100643.pdf (acessado em 01/Mai/2020).
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A Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCFA) contempla povos e comunidades desses territórios, que têm seus modos de vida, produção e reprodução social relacionados predominantemente com a terra. São populações negligenciadas, com piores indicadores socioeconômicos, desenvolvimento humano e saúde 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,66. Departamento de Apoio à Gestão Participativa, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.,88. Targa LV, Wynn-Jones J, Howe A, Anderson MIP, Lopes JMC, Lermen Jr. N, et al. Declaração de Gramado pela saúde rural nos países em desenvolvimento. Rev Bras Med Fam Comunidade 2014; 9:292-4.,99. Ranscombe P. Rural areas at risk during COVID-19 pandemic. Lancet 2020; 20:545.. Assim, a saúde rural brasileira deve ser inclusiva, refletindo a diversidade de sua gente, conforme prevê a PNSIPCFA.

Povos indígenas destacam-se nas PCFA, com pior índice de desenvolvimento humano e pobreza. Sofrem com acesso precário à saúde, elevada mortalidade infantil, prevalência de tuberculose, verminose, diarreia e infecções respiratórias. O racismo institucional e a perda progressiva de territórios também resultam em insegurança alimentar e desassistência 33. Codeço CT, Villela D, Coelho F, Bastos LS, Carvalho LM, Gomes MFC, et al. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e socioeconômica. Relatório nº 4. 2ª Ed. http://covid-19.procc.fiocruz.br (acessado em 10/Mai/2020).
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,1010. Mendes AM, Leite MS, Langdon EJ, Grisotti M. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Rev Panam Salud Pública 2018; 42:e184..

A saúde em locais rurais ou remotos, ligada ao modo de vida no território e à preservação da biodiversidade, abriga populações em condição de vulnerabilidade, em extrema pobreza, aonde muitas políticas públicas não chegam 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,77. Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde Debate 2018; 42(n.spe 1):302-14.,88. Targa LV, Wynn-Jones J, Howe A, Anderson MIP, Lopes JMC, Lermen Jr. N, et al. Declaração de Gramado pela saúde rural nos países em desenvolvimento. Rev Bras Med Fam Comunidade 2014; 9:292-4.,1111. Worley P. Why we need better rural and remote health, now more than ever. Rural Remote Health 2020; 20:5976.. A pandemia de COVID-19 revela essas iniquidades. A heterogeneidade dos cenários nas regiões do Brasil reforça a necessidade de diferentes organizações e oferta de serviços de saúde, envolvendo a logística para distribuição de insumos, a organização do processo de trabalho e o sistema de financiamento diferenciado 33. Codeço CT, Villela D, Coelho F, Bastos LS, Carvalho LM, Gomes MFC, et al. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e socioeconômica. Relatório nº 4. 2ª Ed. http://covid-19.procc.fiocruz.br (acessado em 10/Mai/2020).
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,44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,77. Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde Debate 2018; 42(n.spe 1):302-14..

O Ministério da Saúde 1212. Ministério da Saúde. Protocolo de manejo clínico do coronavírus (COVID-19) na atenção primária à saúde. Versão 8. http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/20200422_ProtocoloManejo_ver08.pdf (acessado em 27/Abr/2020).
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, no protocolo de manejo da COVID-19, sublinha o quanto a atenção primária à saúde (APS) é estratégica em surtos e epidemias, considerando os atributos essenciais - acesso, integralidade, longitudinalidade, coordenação do cuidado - e derivados - abordagem familiar e comunitária e competência cultural 1313. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura/Ministério da Saúde; 2002.. No contexto da COVID-19 entre as PCFA, esses atributos são tanto desafio como garantia do cuidado com essas populações. Nesses locais, serviços de APS são os únicos da rede de atenção à saúde (RAS) e devem lançar mão de formas criativas de atuação, aprofundando o uso desses atributos 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,77. Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde Debate 2018; 42(n.spe 1):302-14.,1111. Worley P. Why we need better rural and remote health, now more than ever. Rural Remote Health 2020; 20:5976..

As(os) médicas(os) de família e comunidade (MFCs) e demais profissionais da APS têm papel de guardiãs(ões) dos atributos 88. Targa LV, Wynn-Jones J, Howe A, Anderson MIP, Lopes JMC, Lermen Jr. N, et al. Declaração de Gramado pela saúde rural nos países em desenvolvimento. Rev Bras Med Fam Comunidade 2014; 9:292-4.,1111. Worley P. Why we need better rural and remote health, now more than ever. Rural Remote Health 2020; 20:5976.. O presente artigo traz a perspectiva de MFCs, de diferentes regiões do Brasil, com vivências no cuidado às PCFA no Sistema Único de Saúde (SUS). Objetiva descrever desafios dos MCFs e sinalizar propostas de atuação a partir dos atributos da APS, considerando-os como eixo das práticas em localidades rurais e remotas na pandemia da COVID-19. Limita-se a panorama sucinto, reconhecendo que o conceito de saúde rural possui discussão aprofundada. A saúde indígena, com subsistema e especificidades próprios, será integrada nesta discussão às PCFA e sinalizada no texto.

Desafios

Casos e óbitos pela COVID-19 já ocorrem no interior do Brasil. Amazonas e Amapá, marcadamente rurais ou remotos, despontam com incidência e mortalidade elevadas e colapso de seu sistema de saúde. A crença de que COVID-19 é “doença de cidade grande” cria obstáculos a mudanças de comportamento e prevenção nas PCFA 33. Codeço CT, Villela D, Coelho F, Bastos LS, Carvalho LM, Gomes MFC, et al. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e socioeconômica. Relatório nº 4. 2ª Ed. http://covid-19.procc.fiocruz.br (acessado em 10/Mai/2020).
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,99. Ranscombe P. Rural areas at risk during COVID-19 pandemic. Lancet 2020; 20:545., mas o alcance em regiões longínquas como as dos rios Negro e Solimões revela que o isolamento geográfico das PCFA não detém disseminação da doença 22. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico Especial - COE-COVID19 2020; (17). https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/May/29/2020-05-25---BEE17---Boletim-do-COE.pdf.
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,33. Codeço CT, Villela D, Coelho F, Bastos LS, Carvalho LM, Gomes MFC, et al. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e socioeconômica. Relatório nº 4. 2ª Ed. http://covid-19.procc.fiocruz.br (acessado em 10/Mai/2020).
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Questões geográficas e climáticas, como o período de chuvas na Amazônia, prejudicam o trânsito terrestre e transporte fluvial, dificultando a circulação de usuários, profissionais e insumos 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,77. Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde Debate 2018; 42(n.spe 1):302-14.,88. Targa LV, Wynn-Jones J, Howe A, Anderson MIP, Lopes JMC, Lermen Jr. N, et al. Declaração de Gramado pela saúde rural nos países em desenvolvimento. Rev Bras Med Fam Comunidade 2014; 9:292-4., trazendo desafios ao acesso aos serviços. No semiárido, período de estiagem prejudica acesso à água, à higiene e à alimentação. No Sul-Sudeste, o inverno aumenta a aglomeração e o uso de lenha em ambientes domésticos, agravando doenças respiratórias.

Há dificuldade de fixação de profissionais de saúde, principalmente médicos, nesses territórios, o que compromete a longitudinalidade. O Programa Mais Médicos (PMM) permitiu superar parcialmente a carência nas PCFA, mas enfrenta desafios devido a mudanças no perfil profissional e a desinvestimentos. Após encerramento da colaboração cubana no PMM, territórios indígenas foram especialmente comprometidos 77. Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde Debate 2018; 42(n.spe 1):302-14.,1414. Anderson MIP. Médicos pelo Brasil e as políticas de saúde para a Estratégia Saúde da Família de 1994 a 2019: caminhos e descaminhos da atenção primária no Brasil. Rev Bras Med Fam Comunidade 2019; 14:2180..

A escassez de profissionais é agravada com seu afastamento por COVID-19. Enfermeiros, técnicos, agentes comunitários de saúde ou agentes indígenas de saúde por vezes são os únicos prestadores de cuidados nessas localidades. O isolamento geográfico e a necessidade de escopo ampliado de práticas aumenta o risco de síndrome de esgotamento profissional 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,1111. Worley P. Why we need better rural and remote health, now more than ever. Rural Remote Health 2020; 20:5976..

O perfil sanitário-epidemiológico desfavorável das PCFA aumenta o risco de morte por COVID-19 22. Ministério da Saúde. Boletim Epidemiológico Especial - COE-COVID19 2020; (17). https://www.saude.gov.br/images/pdf/2020/May/29/2020-05-25---BEE17---Boletim-do-COE.pdf.
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. Doenças negligenciadas e infectoparasitárias frequentes entre PCFA, bem como problemas derivados da vulnerabilidade social, como alcoolismo, violência e transtornos mentais 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,77. Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde Debate 2018; 42(n.spe 1):302-14., que se sobrepõem ao risco de COVID-19, se agravam potencialmente com isolamento social, demandando que as equipes de APS mantenham a integralidade.

Mesmo o suporte a casos leves de COVID-19 pelas equipes da APS 1212. Ministério da Saúde. Protocolo de manejo clínico do coronavírus (COVID-19) na atenção primária à saúde. Versão 8. http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/20200422_ProtocoloManejo_ver08.pdf (acessado em 27/Abr/2020).
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esbarra em problemas estruturais de acesso a água, produtos de higiene, saneamento e segurança alimentar 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,77. Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde Debate 2018; 42(n.spe 1):302-14.. A tentativa de contenção da pandemia por bloqueios fluviais na Amazônia 33. Codeço CT, Villela D, Coelho F, Bastos LS, Carvalho LM, Gomes MFC, et al. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e socioeconômica. Relatório nº 4. 2ª Ed. http://covid-19.procc.fiocruz.br (acessado em 10/Mai/2020).
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piorou a oferta de insumos e medicamentos, onde cronicamente já faltam analgésicos, equipamentos de proteção individual (EPI) e material para estabilização de pacientes graves 77. Pessoa VM, Almeida MM, Carneiro FF. Como garantir o direito à saúde para as populações do campo, da floresta e das águas no Brasil? Saúde Debate 2018; 42(n.spe 1):302-14.,88. Targa LV, Wynn-Jones J, Howe A, Anderson MIP, Lopes JMC, Lermen Jr. N, et al. Declaração de Gramado pela saúde rural nos países em desenvolvimento. Rev Bras Med Fam Comunidade 2014; 9:292-4., restringindo a capacidade no cuidado a pessoas com COVID-19. A escassez de recursos humanos e de centros de tratamento intensivo em áreas rurais e remotas dificulta o acesso a esses cuidados, exigindo que as equipes façam a coordenação do cuidado 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018. para a remoção precoce dos pacientes graves na RAS.

Relações de parentesco, vizinhança e amizade estão presentes no trabalho, na vida e em noções de pertencimento e sociabilidade em ambientes rurais 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,1515. Langdon EJ, Wiik FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev Latinoam Enferm 2010; 18:459-66. e representam desafios das equipes de APS na orientação familiar e comunitária. Conviver em grupos constitui vida, trabalho e lazer das PCFA, dificultando o distanciamento social recomendado no contexto da COVID-19. Nessas localidades, é comum o sinal de telefone/internet funcionar em apenas um ponto da comunidade, compartilhado por todos moradores, constituindo a principal forma de acesso à informação, comprometendo a privacidade dos usuários 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018..

Peculiaridades como núcleo familiar ampliado, forma das habitações e vida comunitária 1010. Mendes AM, Leite MS, Langdon EJ, Grisotti M. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Rev Panam Salud Pública 2018; 42:e184. facilitam a disseminação de COVID-19. Indígenas aldeados na dependência de municípios-sede dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas para serviços essenciais, como saque de benefícios, agravam essas vulnerabilidades 33. Codeço CT, Villela D, Coelho F, Bastos LS, Carvalho LM, Gomes MFC, et al. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e socioeconômica. Relatório nº 4. 2ª Ed. http://covid-19.procc.fiocruz.br (acessado em 10/Mai/2020).
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,1010. Mendes AM, Leite MS, Langdon EJ, Grisotti M. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Rev Panam Salud Pública 2018; 42:e184..

As orientações de como lavar as mãos frequentemente, utilizar máscaras e álcool em gel são interpretadas pelas PCFA conforme suas especificidades culturais, exigindo comunicação culturalmente competente 99. Ranscombe P. Rural areas at risk during COVID-19 pandemic. Lancet 2020; 20:545.,1111. Worley P. Why we need better rural and remote health, now more than ever. Rural Remote Health 2020; 20:5976.. Ademais, materiais informativos e campanhas não alcançam indígenas se não estiverem disponíveis nos idiomas nativos.

Considerações finais

A coordenação do cuidado permite minimizar os desafios e problemas da saúde rural, respondendo aos obstáculos de acesso, perfil sanitário-epidemiológico e assistência, articulando apoio de programas estaduais e federal nas RAS, educação permanente, participação popular e articulação intersetorial 1313. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura/Ministério da Saúde; 2002..

O protocolo direciona ações para pandemia - medidas de precaução/contenção, uso/descarte de EPI, fast track, monitorização dos grupos de risco, isolamento e vigilância, identificação precoce, avaliação de risco, testagem de suspeitos, estabilização e remoção adequada de casos graves 1212. Ministério da Saúde. Protocolo de manejo clínico do coronavírus (COVID-19) na atenção primária à saúde. Versão 8. http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/20200422_ProtocoloManejo_ver08.pdf (acessado em 27/Abr/2020).
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. Porém, nas áreas remotas há necessidade de identificação e transferência ágil de pacientes graves, antes de suporte ventilatório invasivo, sendo essencial garantir e pactuar acesso e transporte a urgências e internação, sobretudo terapia intensiva e exames.

O manejo do coronavírus na APS deve sublinhar a continuidade do cuidado por meio do uso de comunicação remota 1212. Ministério da Saúde. Protocolo de manejo clínico do coronavírus (COVID-19) na atenção primária à saúde. Versão 8. http://189.28.128.100/dab/docs/portaldab/documentos/20200422_ProtocoloManejo_ver08.pdf (acessado em 27/Abr/2020).
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,1616. Greenhalgh T, Koh GCH, Car J. Covid-19: a remote assessment in primary care. BMJ 2020; 368:m1182.,1717. Sarti TD, Lazarini WS, Fontenelle LF, Almeida APSC. Qual o papel da atenção primária à saúde diante da pandemia provocada pela COVID-19? Epidemiol Serv Saúde 2020; 29:e2020166.. Equipes de saúde rurais têm sido bem-sucedidas nessas ferramentas, possibilitando também a longitudinalidade 1111. Worley P. Why we need better rural and remote health, now more than ever. Rural Remote Health 2020; 20:5976.. Contudo, localidades remotas têm maiores dificuldades, como instabilidade de telefone/Internet e realização de visitas domiciliares. Barreiras de acesso digital têm sido superadas, por exemplo, pelo contato por rádio e participação das lideranças comunitárias na organização do cuidado 1111. Worley P. Why we need better rural and remote health, now more than ever. Rural Remote Health 2020; 20:5976..

Pensando a integralidade, educação permanente e matriciamento são estratégicos na implementação de ações de manejo da COVID-19, assegurando qualificação dos profissionais em todas etapas do cuidado. Supervisão do PMM, teleconsultoria, educação a distância em parceria com instituições de ensino superior, além de formação específica para atuação em territórios rurais ou remotos 1414. Anderson MIP. Médicos pelo Brasil e as políticas de saúde para a Estratégia Saúde da Família de 1994 a 2019: caminhos e descaminhos da atenção primária no Brasil. Rev Bras Med Fam Comunidade 2019; 14:2180., englobam matriciamento do Núcleo de Apoio à Saúde da Família e possibilitam adaptar protocolos quando não há médicos ou enfermeiros, ampliando capacidade resolutiva das RAS.

A abordagem comunitária possibilita a estruturação do processo de trabalho, incluindo território/comunidade 99. Ranscombe P. Rural areas at risk during COVID-19 pandemic. Lancet 2020; 20:545.,1111. Worley P. Why we need better rural and remote health, now more than ever. Rural Remote Health 2020; 20:5976.,1717. Sarti TD, Lazarini WS, Fontenelle LF, Almeida APSC. Qual o papel da atenção primária à saúde diante da pandemia provocada pela COVID-19? Epidemiol Serv Saúde 2020; 29:e2020166.. Vigilância e notificação precisam ser reforçadas, evitando invisibilização das PCFA, sobretudo indígenas - inclusive não aldeados, pela mobilidade característica dessa população 33. Codeço CT, Villela D, Coelho F, Bastos LS, Carvalho LM, Gomes MFC, et al. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e socioeconômica. Relatório nº 4. 2ª Ed. http://covid-19.procc.fiocruz.br (acessado em 10/Mai/2020).
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. É momento para (re)iniciar diagnóstico comunitário, mapear recursos do território para distanciamento/isolamento social, pontos para fornecimento de alimentos, água e produtos de higiene e casas/instituições com pessoas em condições de risco/vulnerabilidade. Além disso, deve-se identificar crenças, medos, angústias e mitos que envolvem a doença e podem levar ao atraso no diagnóstico e encaminhamento precoce.

A COVID-19 aprofunda a insegurança alimentar. As PCFA têm papel na produção alimentar e na garantia de que alimentos cheguem até os territórios rurais e remotos. A abordagem comunitária pode lançar frentes intersetoriais, envolvendo atividades produtivas/econômicas. Fortalecimento de redes solidárias é primordial para evitar disseminação do coronavírus e dar suporte a comunidades atingidas. Redes alternativas para produção/venda/transporte de alimentos podem otimizar seu acesso durante a pandemia e evitar maior contaminação das PCFA 1818. Oliveira T, Abranches M, Lana R. (In)Segurança alimentar no contexto da pandemia por SARS-CoV-2. Cad Saúde Pública 2020; 36:e00055220..

A participação popular, por meio da inclusão de lideranças, bem como agentes comunitários de saúde (ACS) e agentes indígenas de saúde (AIS) na organização das ações, são cruciais no cuidado das PCFA em ações de elo com o território 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,66. Departamento de Apoio à Gestão Participativa, Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa, Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.. A perspectiva dialógico-comunitária desses e de outros atores possibilita encontrar estratégias de isolamento social compatíveis com modos de vida, entendimento do corpo e adoecimento 1515. Langdon EJ, Wiik FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev Latinoam Enferm 2010; 18:459-66.. Como exemplo, no Tocantins, há plano proposto por ativistas indígenas e MFC 1919. Eurilio L. Em carta, indígenas do TO cobram autoridades sobre plano de combate ao coronavírus nas comunidades. Gazeta do Cerrado 2020; 31 mar. https://gazetadocerrado.com.br/em-carta-indigenas-do-to-cobram-autoridades-sobre-plano-de-combate-ao-coronavirus-nas-comunidades/.
https://gazetadocerrado.com.br/em-carta-...
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Compreender e legitimar o modo de vida das PCFA e suas visões do que é saúde, doença e cuidado é ter competência cultural 1313. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura/Ministério da Saúde; 2002.. Esse atributo derivado da APS potencializa ações de educação em saúde para mudanças de comportamento necessárias à contenção do coronavírus, qualificando os cuidados e reduzindo iniquidades raciais e étnicas 44. Savassi LCM, Almeida MM, Floss M, Lima MC, organizadores. Saúde no caminho da roça. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.,1111. Worley P. Why we need better rural and remote health, now more than ever. Rural Remote Health 2020; 20:5976.,1515. Langdon EJ, Wiik FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev Latinoam Enferm 2010; 18:459-66.. Ademais, reconhece heterogeneidade e diferenças de poder nas comunidades, principalmente em povos tradicionais 1515. Langdon EJ, Wiik FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Rev Latinoam Enferm 2010; 18:459-66.. Além disso, há melhoria da saúde de povos indígenas, em risco de genocídio e etnocídio, o que perpassa pelo fortalecimento das políticas indigenistas e dos órgãos ambientais, com garantia dos seus direitos 33. Codeço CT, Villela D, Coelho F, Bastos LS, Carvalho LM, Gomes MFC, et al. Risco de espalhamento da COVID-19 em populações indígenas: considerações preliminares sobre vulnerabilidade geográfica e socioeconômica. Relatório nº 4. 2ª Ed. http://covid-19.procc.fiocruz.br (acessado em 10/Mai/2020).
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,1010. Mendes AM, Leite MS, Langdon EJ, Grisotti M. O desafio da atenção primária na saúde indígena no Brasil. Rev Panam Salud Pública 2018; 42:e184..

Este artigo traz contribuições a uma perspectiva premente sobre a COVID-19. Na visão dos autores, a pandemia nas PCFA intensifica desafios e vulnerabilidades anteriores. Porém, ações de fortalecimento dos atributos da APS e do SUS, conclamando a responsabilidade de governos, profissionais de saúde e sociedade, podem representar a chave para o enfrentamento e a recuperação dos valores de solidariedade e cidadania.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2020
  • Revisado
    17 Jun 2020
  • Aceito
    21 Jun 2020
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