Introdução
O distanciamento social adotado mundialmente nos últimos meses é uma medida de saúde pública recomendada por epidemiologistas e adotada por muitos gestores políticos em contextos pandêmicos, de modo a reduzir a probabilidade de um agente infeccioso se dispersar na população e, consequentemente, retardar a velocidade de transmissão de uma doença 1. Para além do desejável impacto na redução da transmissão, o distanciamento social pode gerar impactos na saúde mental e sexual dos indivíduos que o praticam, diminuindo o suporte social, que particularmente é importante e necessário para uma grande parte da população LBTQ+ 2.
Homens que fazem sexo com homens (HSH) estão entre estas populações para quem as medidas restritivas adotadas pelos governos criaram dificuldades para a execução ou manutenção das práticas afetivas e sexuais 2,3. Recente levantamento 3 apontou que HSH brasileiros e portugueses demonstraram ter dificuldade em ficarem socialmente afastados, uma vez que 53% referiram sexo casual durante o período de distanciamento social, apesar do risco crescente de adquirir o SARS-CoV-2, causador da COVID-19. Além disso, destacou-se o aumento do consumo de álcool e outras drogas nesse grupo 3,4, algumas vezes associadas ao sexo, configurando-se no chemsex5,6, prática sexual sob influência de drogas e substâncias químicas. Largamente relatada entre HSH 7 antes do período pandêmico, tal prática tem o propósito de prolongar, tornar mais prazeroso e potencializar o ato sexual.
O uso de substâncias psicoativas combinadas durante o chemsex aumenta significativamente a exposição às infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), como a prática de sexo anal sem preservativo, troca de parceiros sexuais durante o sexo em grupo, ressecamento, desidratação e perda da sensibilidade, aumentando as chances de lesões e sangramento 8. Por outro lado, a dificuldade de raciocínio, muitas vezes, pode diminuir a capacidade e disposição de usar preservativos, fazer uso correto da profilaxia pré-exposição (PrEP) e adotar medidas protetivas de minimização do risco de se contaminar pelo SARS-CoV-2 8,9.
Uma vez que este cenário de isolamento social nas proporções atuais é uma experiência recente e inédita para a população, em particular o grupo HSH, e diante da ausência de pesquisa sobre esse tema na literatura, nosso objetivo foi investigar os fatores associados à prática do chemsex por HSH durante período de isolamento social, no contexto da pandemia da COVID-19.
Métodos
Trata-se de resultados do projeto intitulado 40tena, derivado da coorte In_PrEP Brazil/Portugal, liderado pelo Instituto de Higiene e Medicina Tropical, Universidade NOVA de Lisboa (IHMT-NOVA), Portugal, e pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil. É um inquérito multicêntrico on-line, aplicado a todos os 26 estados brasileiros e ao Distrito Federal, e de 15 dos 18 distritos de Portugal. Houve uma coleta de dados dinâmica nas duas últimas semanas de abril de 2020, enquanto os dois países vivenciavam medidas sanitárias restritivas, como o distanciamento e isolamento social. O projeto de pesquisa e a apresentação destes manuscritos foram norteados pela ferramenta STROBE (lista de verificação de itens que devem ser incluídos em relatórios de estudos observacionais) e pelo CHERRIES (the Checklist for Reporting Results of Internet E-Surveys).
Participaram da pesquisa 2.361 HSH, sendo 1.651 (69,9%) do Brasil e 710 (30,1%) de Portugal. Para este estudo, foram elegíveis 920 (38,9%) HSH que realizaram a prática do chemsex durante o período de distanciamento e isolamento social.
Os participantes foram recrutados valendo-se de uma adaptação do método respondent driven sampling (RDS) ao ambiente virtual. Nesse método, o próprio participante é responsável por recrutar outros indivíduos da mesma categoria que a sua, utilizando suas redes sociais. Para atender às exigências do método, selecionamos 15 HSH com características diferentes em relação a: localização no país (divididos de acordo com as regiões dos dois países); raça/cor (branca e não branca); idade (jovem, adulto e idoso) e nível de escolaridade. Estes constituíram os primeiros participantes e foram chamados de sementes. Cada participante recebeu o link da pesquisa e foi orientado a convidar/divulgar HSH de sua rede social, até a obtenção de uma amostra significativa. As sementes foram identificadas através de dois aplicativos de encontro baseados em geolocalização (Grindr e Hornet), por chat direto com usuários online, por meio de adaptação à técnica time location sampling (TLS), seguindo métodos anteriores 10,11,12, conforme Figura 1.
Os pesquisadores também utilizaram o impulsionamento na rede social Facebook para se dirigir à população de HSH com idade entre 18 a 60 anos (limite de idade imposto pela rede social). Por meio de uma postagem fixa na página de Internet da pesquisa (https://www.facebook.com/taafimdeque/), acompanhada de um link eletrônico, foi fornecido acesso ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e ao questionário da pesquisa. Incluímos apenas indivíduos que se identificaram como homem (cis ou trans), com 18 anos ou mais de idade e residentes em um dos dois países. Não falantes de português e turistas foram excluídos.
Um formulário de coleta de dados em suas versões português europeu e português brasileiro foi criado e validado (face-conteúdo) por um conjunto de três especialistas dos dois países. Esse formulário foi hospedado em site específico de coleta de dados que só permitia uma resposta por IP (Protocolo de Internet), por motivos de segurança. O instrumento foi dividido em quatro seções com 46 perguntas, em sua maioria de múltipla escolha, sendo algumas delas obrigatórias para prosseguir. As perguntas abordavam:
(1) Informações sociodemográficas (idade; identidade de gênero; escolaridade; orientação sexual; tipo de relacionamento; país; estado; local de residência);
(2) Bem-estar social e coping no período de distanciamento social;
(3) Práticas e atividades sexuais durante a pandemia (prática de sexo casual; sob o efeito de drogas; em grupo; com uso do preservativo; estratégias de proteção; estratégia de busca por parceiros; frequência sexual e medidas de proteção contra a COVID-19);
(4) Práticas e atividades sexuais anteriores à pandemia (uso de PrEP e PEP - profilaxia pós exposição; formas de buscar parceiros; conhecimento sobre ISTs e testagem);
Para descrever os fatores de interesse, foram realizadas análises descritivas das variáveis numéricas e categóricas. Em seguida, foi desenvolvido um modelo multivariado com variáveis previamente (análise bivariada) associadas ao desfecho: “realizou chemsex”. A variável dependente binária foi a prática do sexo sob o efeito (1) ou não (0) de drogas lícitas e/ou ilícitas.
A regressão logística bivariada e multivariada gerou odds ratio (OR) e OR ajustado (ORa) com as variáveis explicativas e os respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%) indicando as chances de envolvimento em chemsex, categorizadas em: sim ou não. Foi levada em consideração a melhor performance do modelo multivariado com aspectos de acurácia, sensibilidade a especificidade (receiver operating characteristic - ROC), provando que o desempenho estatístico desenvolvido foi melhor que o acaso.
O projeto primário obteve as devidas autorizações e aprovações éticas do Brasil e Portugal e devido à adição de perguntas, uma ementa foi submetida e aprovada, permitindo a realização da pesquisa. O consentimento livre e esclarecido foi obtido de forma on-line.
Resultados
A idade média dos participantes foi de 31,03 anos (18-66 anos), e a mediana de parceiros sexuais foi de 2,0 (1 a 32) durante o período de isolamento social. A prática do chemsex no Brasil (69,9%) foi superior à Portugal (30,1%) em mais de duas vezes, e quase a totalidade deles (95%) fez sexo casual. O sexo em grupo foi descrito por 31,4%, e sexo sem preservativo, por 47,6% (Tabela 1).
Tabela 1 Análise descritiva dos fatores investigados durante o período de isolamento e estratégias entendidas/utilizadas como protetoras contra a infecção por COVID-19 pelos homens que fazem sexo com homens (HSH) que praticaram o chemsex. Brasil e Portugal, 2020 (n = 920).
Fatores de interesse | n | % |
---|---|---|
Identidade de gênero | ||
Homem | 911 | 91,0 |
Homem trans ou não-binário | 9 | 9,0 |
País de residência | ||
Brasil | 777 | 84,5 |
Portugal | 143 | 15,5 |
Reside em região metropolitana | ||
Sim | 667 | 72,5 |
Não | 253 | 27,5 |
Tipo de relacionamento | ||
Solteiro | 674 | 24,9 |
Em um relacionamento fixo | 229 | 1,8 |
Em um relacionamento poliamoroso | 17 | 73,3 |
Status sorológico | ||
HIV positivo | 113 | 12,3 |
HIV negativo | 694 | 75,4 |
Não sei | 113 | 12,3 |
Está em isolamento? | ||
Não | 62 | 6,7 |
Parcialmente | 303 | 32,9 |
Sim | 555 | 60,3 |
Há quanto tempo tem estado em isolamento? (dias) | ||
Menos de 29 | 173 | 20,6 |
Entre 30-45 | 537 | 64,1 |
Mais de 45 | 128 | 15,3 |
Como classificaria o impacto que o isolamento social teve na sua vida? | ||
Baixo impacto | 115 | 12,5 |
Médio impacto | 328 | 35,7 |
Alto impacto | 477 | 51,8 |
Com quem costuma fazer sexo? | ||
Parceiro casual | 612 | 66,5 |
Parceiro fixo | 186 | 20,2 |
Parceiro casual/fixo | 122 | 13,3 |
Mora com o seu parceiro sexual? | ||
Não | 782 | 85,0 |
Sim | 138 | 15,0 |
Nesse período de distanciamento social | ||
Fez sexo casual - ocasional? | ||
Sim | 874 | 95,0 |
Buscou sexo pago? | ||
Sim | 47 | 5,1 |
Teve sexo simultaneamente com 2 pessoas ou mais (ménage)? | ||
Sim | 289 | 31,4 |
Teve sexo sem proteção? | ||
Sim | 438 | 47,6 |
Para se proteger da transmissão cruzada do SARS-CoV-2 | ||
Evitou o beijo durante a relação sexual? | ||
Sim | 219 | 23,8 |
Lavou as mãos com água e sabão por pelo menos 20 segundos antes e depois do sexo? | ||
Sim | 386 | 42,0 |
Fez desinfecção do ambiente antes e após o sexo? | ||
Sim | 195 | 21,2 |
Checou se ele também estava em isolamento? | ||
Sim | 480 | 52,2 |
Checou se ele tinha sintomas? | ||
Sim | 438 | 47,6 |
Usou PrEP/Truvada? | ||
Sim | 201 | 21,8 |
Adotou medidas protetivas mais comuns (uso de máscaras; higiene das mãos...)? | ||
Sim | 363 | 39,5 |
Houve ocasiões em que não quis/não pôde adotar ou não adotou nada? | ||
Sim | 352 | 38,3 |
PrEP: profilaxia pré-exposição.
A análise multivariada dos fatores associados à prática de chemsex evidenciou que: HSH que residem no Brasil apresentam 15,4 vezes (IC95%: 10,7-22,1) mais chances de fazer sexo sob o efeito de drogas quando comparado àqueles que vivem em Portugal. Independente de residirem em Portugal ou Brasil, HSH que alegaram não estar em isolamento social apresentaram 4,9 vezes (IC95%: 2,2-10,9) mais chances de praticar o chemsex. Já os HSH que referiram fazer sexo casual durante o distanciamento social apresentaram 52,4 vezes (IC95%: 33,8-81,4) mais chances de fazer sexo sob o efeito de drogas, resultado corroborado pela forte correlação (0,7) entre as variáveis.
Aqueles que relataram fazer sexo grupal no período de distanciamento social apresentaram 2,9 vezes (IC95%: 2,0-4,4) mais chances de desenvolverem a prática do chemsex. Identificamos que os HSH que referiram ocasiões em que não quiseram/não puderam ou não adotaram nenhuma medida protetiva para COVID-19 apresentaram 2,2 vezes (IC95%: 1,7-3,1) mais chances de praticar o chemsex, e aqueles que não apresentaram nenhum tipo de sintoma para a COVID-19 tiveram 1,3 vez (IC95%: 1,1-1,8) mais chance de fazer sexo sob efeito de substâncias psicoativas. Não residir com o parceiro (ORa = 1,8; IC95%: 1,2-2,6) e estar em uso da PrEP (ORa = 2,6; IC95%: 1,8-3,7) também aumentaram substancialmente as chances de se envolver em chemsex (Tabela 2).
Tabela 2 Análise bivariada e multivariada de fatores associados à prática de chemsex durante o período de isolamento social. Brasil e Portugal, 2020.
Fatores | OR | ORa | IC95% | Valor de p |
---|---|---|---|---|
Residente no Brasil ou Portugal? | ||||
Portugal (referência) | ||||
Brasil | 3,5 | 15,4 | 10,7-22,1 | < 0,001 |
Está praticando o distanciamento social? | ||||
Sim (referência) | < 0,001 | |||
Parcial | 2,5 | 1,1 | 0,8-1,4 | 0,823 |
Não | 3,3 | 4,9 | 2,2-10,9 | < 0,001 |
Sexo casual na quarentena? | ||||
Não (referência) | ||||
Sim | 53,4 | 52,4 | 33,8-81,4 | < 0,001 |
Sexo grupal na quarentena | ||||
Não (referência) | ||||
Sim | 7,5 | 3 | 2,0-4,4 | < 0,001 |
Houve ocasiões em que não quis/não pôde adotar ou não adotou nada? | ||||
Não (referência) | ||||
Sim | 0,7 | 2,3 | 1,7-3,1 | < 0,001 |
Na quarentena, apresentou sintomas? | ||||
Sim (referência) | 0,062 | |||
Não | 2,3 | 1,3 | 1,1-1,8 | |
Está em uso de PrEP? | ||||
Não (referência) | ||||
Sim | 1,2 | 2,6 | 1,8-3,7 | < 0,001 |
Reside com o parceiro sexual? | ||||
Sim (referência) | ||||
Não | 0,9 | 1,8 | 1,2-2,6 | < 0,004 |
IC95%: intervalo de 95% de confiança; PrEP: profilaxia pré-exposição; OR: odds ratio; ORa: odds ratio ajustado.
Testes Omnibus: p < 0,001/Nagelkerke R2: 0,589/Percentual geral: 83,1%/Curva ROC: 0,88 (p < 0,001; IC95%: 0,870-0,905).
Discussão
Até a presente data, este foi o primeiro estudo a analisar a prática de chemsex associada a fatores sociodemográficos e comportamentos sexuais durante o período de distanciamento social provocado pela pandemia da COVID-19 no Brasil e em Portugal. Uma parcela significativa (95%) dos HSH que se envolveu em sexo chemsex o fez em sexo com parceiro casual no período de ascensão da curva epidemiológica da pandemia nos dois países (abril de 2020).
Envolver-se em sexo casual foi o fator que mostrou a maior chance para a ocorrência da prática de chemsex nos achados deste estudo, e pode estar relacionado à falsa sensação de segurança na adoção de algumas práticas ditas protetivas para a COVID-19. Corroborando essa hipótese, usuários de PrEP/Truvada tiveram mais chance de se envolver em chemsex, e uma quantidade relevante de HSH (21,8%) praticaram a PrEP/Truvada como uma medida entendida como de proteção para o SARS-CoV-2. Uma possível explicação para a adoção dessa prática pode ser o entendimento incorreto da discussão sobre o potencial de medicamentos profiláticos para o SARS-CoV-2 na mídia popular 13. Alguns HSH podem ter confundido a PrEP enquanto estratégia, ou seja, uma profilaxia pré-exposição, como tendo um mecanismo semelhante para o SARS-CoV-2, o que pode ter motivado a manutenção das relações sexuais durante o curso da pandemia. Também pode ter influência nessa atitude a divulgação de estudos recentes 14,15, em estágio preliminar, realizados no Brasil, investigando o potencial do Tenofovir, um dos antirretrovirais utilizados no Truvada, no Brasil, na diminuição do tempo de internação pelo SARS-CoV-2. Essa é uma situação a ser observada entre HSH que acessam esta tecnologia de cuidado no sistema de saúde, para que haja fortalecimento das ações de educação em saúde. Na ausência de evidência de eficácia para a prevenção da COVID-19, a suposição corre o risco de levar as pessoas em PrEP a negligenciar medidas eficazes de proteção à contaminação pelo SARS-CoV-2 recomendadas pelas organizações sanitárias, durante o isolamento social 3.
Outra medida equivocada foi verificar a presença de sintomas entre os parceiros sexuais. O mecanismo infeccioso da COVID-19 torna essa ação pouco útil, uma vez que, além de ser uma doença com alta taxa de assintomáticos (80%) 16, há transmissão no período de incubação 17 (1 a 14 dias após contato com o vírus); em adição, após a melhoria dos sinais e sintomas, o vírus ainda pode ser encontrado no canal retal por até 15 dias, havendo risco de transmissão através da prática de sexo oral-retal (beijo grego) 18. Tais achados indicam a necessidade de implementação de ações de impacto direcionadas à atenção à saúde sexual dos HSH, a fim de reduzir desconhecimentos e estereótipos em saúde e sensibilizar estes homens ao cuidado da sua saúde.
Nossos resultados mostraram que a prática do chemsex no Brasil foi superior à encontrada em Portugal em mais de duas vezes, o que pode explicar por que residir no Brasil foi associado à maiores chances para a prática do chemsex. Estudos anteriores ao início da pandemia da COVID-19 já mostravam que a prática do sexo sob o efeito de substâncias psicoativas era bastante comum entre HSH brasileiros 19, e a manutenção dessa prática em níveis elevados causa preocupação, podendo reforçar que o isolamento social não teve eficácia no país, sobretudo entre HSH. Apesar de o distanciamento social ser a medida não farmacológica mais efetiva para prevenção da infecção do SARS-CoV-2 neste momento, esta ação ainda vem acontecendo de forma heterogênea e pouco efetiva nos estados brasileiros 20, que veem suas taxas de distanciamento social diminuir enquanto a curva de mortalidade e novos casos apresentam discreto achatamento 21, motivo pelo qual “não praticar o distanciamento social” foi fator associado para se envolver em chemsex.
No entanto, a situação do brasileiro parece ser particularmente emblemática, uma vez que o crescimento contínuo de casos já os obrigava a ficarem restritos no domicílio por um período que, na realização desse estudo, já chegava a mais de 60 dias, o que pressionava a população ao isolamento social. Logo, devido à duração prolongada do período de “quarentena”, momentos de sexo casual com parceiros desconhecidos, sob o efeito de drogas e com múltiplos parceiros, podem ser entendidos como um breve momento de “relaxamento” e fuga da realidade 22,23.
A busca, ainda que hedônica, também perpassa por (re)conhecer seus limites 24 e equilibrar estratégias de redução de danos, ainda que de efetividade duvidosa. Desse modo, a procura por prazer físico pode ser uma resposta a um período prolongado de estresse e isolamento, em que a exaustão mental procura lidar com um perigo “invisível” 25. Em busca de liberar essas tensões, a busca por substâncias psicoativas reflete o desejo por prazer e a liberação das preocupações/busca por controle 26.
Historicamente, períodos de quarentena obrigatória são palco de resistências, sobretudo entre a população masculina, visto que a transgressão de normas pode associar-se à construção social das masculinidades, que podem também influenciar os padrões afetivos e sexuais 27.
De fato, a pandemia provocou um abrupto rompimento na interação social das pessoas, comprometendo os fluxos cotidianos, as práticas e os encontros afetivos e sexuais. Tanto no Brasil quanto em Portugal, nenhuma medida governamental educativa e/ou instrutiva foi tomada para apresentar estratégias alternativas de enfrentamento às repercussões à saúde sexual e reprodutiva imposta com o isolamento social, diferentemente de outros contextos internacionais, como Argentina e Estados Unidos, que divulgaram documentos oficiais com orientações e recomendações de práticas sexuais alternativas, como a masturbação, sexo virtual, sexting (veiculação de mensagens eróticas), além de terem orientado sobre o emprego de medidas de cuidados preventivos a serem empregadas durante a prática sexual 27.
O chemsex é associado por seus praticantes a uma significativa melhoria da qualidade do sexo, devido à diminuição da inibição e aumento da excitação sexual e prazer. Quando se combinam drogas às sessões de sexo, estas podem ter a sua duração prolongada e envolver múltiplos parceiros e práticas sexuais mais desafiadoras, como o fisting e a dupla penetração 28. Corroborando essa assertiva, o menáge ou sexo grupal foi um importante fator associado para envolver-se em chemsex. Esse achado torna-se ainda mais problemático pela sobreposição de exposições, uma vez que o uso de drogas pode diminuir a percepção de risco dos HSH, minimizando a adesão a medidas de prevenção de ISTs, enquanto a reunião de pessoas com diferentes históricos de exposição ao SARS-CoV-2 em um mesmo local por uma quantidade de tempo elevada pode aumentar as chances de contaminação pelo vírus 29.
O uso de tecnologias para facilitar os encontros casuais também pode ter um papel importante nessa prática, uma vez que, de forma fácil, anônima e conveniente, permite que os HSH alinhem seus desejos e práticas aos de outros usuários através de códigos usados em solicitações nas redes sociais, tais como: CF (Chiill Fun, ou “descontração divertida”), ou o uso de emojis (flocos de neve, sorvete, raio) como “código” conhecido pela comunidade HSH para um convite à prática do chemsex30.
Vale ressaltar que os aplicativos, enquanto ambientes de sociabilidade dos HSH, podem aumentar a exposição às ISTs. Por outro lado, eles também podem ser vistos como plataformas para intervenções de redução de danos, configurando-se como ferramentas ambivalentes de risco e proteção 10,11,12. Essas estratégias são ainda mais importantes no cenário brasileiro, quando comparado ao português, já que a implementação delas em Portugal é vista como um modelo até mesmo dentro do contexto da União Europeia, ao passo que, no Brasil, há um proibicionismo vigente, que limita as ações de educação e prevenção voltadas para a vida sexual de uma forma geral.
Diante das necessidades e situação de vulnerabilidade da população de HSH, classicamente às ISTs e agora à contaminação pelo SARS-CoV-2, torna-se relevante o desenvolvimento de estratégias de redução de danos e políticas direcionadas a estes homens, de forma a esclarecer e reforçar a importância do cuidado à saúde. Precisamos entender os motivos que levam à exposição dos homens a estas situações, mesmo em momentos cruciais como o que vivemos. Divulgar informações sobre a prática de sexo e sobre o uso menos nocivo das drogas com um grupo reduzido de pessoas, ou ao menos com menor rotatividade de parceiros sexuais, e estimular a prevenção combinada para ISTs e para a COVID-19 podem ser ações efetivas nesse momento.
Reconhecemos uma série de limitações neste estudo. A primeira refere-se à sua realização em países com diferenças culturais, econômicas e populacionais. A segunda limitação refere-se ao delineamento adotado, uma vez que, por se tratar de um estudo transversal, não foi possível a avaliação de causalidade, nem se a continuidade do isolamento aumentava a ocorrência de práticas sexuais de risco para as ISTs e COVID-19.
Finalmente, o método de coleta de dados online foi baseado em informações autorrelatadas, por amostragem ocasional e, embora a pesquisa tenha sido realizada em todas as regiões dos dois países, a ausência de cálculo amostral dificulta a generalização dos dados e pode ter restringido a amostra de HSH àqueles que possuem mais familiaridade com o uso de ferramentas da Internet.
Conclusão
A ocorrência de chemsex foi elevada, sobretudo no Brasil, onde o isolamento social proposto não sensibilizou os HSH à adesão, diante da opção pelo sexo casual. Parece evidente que a busca pelo prazer se mostrou mais relevante diante das medidas de proteção ao COVID-19 propostas, o que coloca os HSH mais expostos.