Introdução
O mundo vem assistindo à evolução de uma pandemia de causa infecciosa denominada COVID-19, cujo agente etiológico é o coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2). Os primeiros relatos ocorreram em dezembro de 2019 em Wuhan, Província de Hubei, China, como um conjunto de doenças respiratórias agudas e, posteriormente, com disseminação global 1. Até o dia 25 de julho, a Organização Mundial da Saúde (OMS) consolidou um total de 15.538.736 casos confirmados e 634.325 óbitos em decorrência da doença em 216 países. Estados Unidos, Brasil, Índia, Rússia, África do Sul e Peru são os países com o maior quantitativo de casos até o momento (World Health Organization. https://covid19.who.int/, acessado em 10/Mai/2020).
A transmissão do SARS-CoV-2 ocorre principalmente com o contato de gotículas respiratórias oriundas de pacientes contaminados e a doença provocada afeta principalmente os sistemas respiratório, cardiovascular, gastrointestinal e neurológico. Pode ser apresentada desde a forma assintomática até formas graves com importante comprometimento do sistema respiratório. Seu cortejo sintomatológico é composto principalmente por febre, tosse seca e dispneia com possibilidade de complicações, principalmente pneumonia, síndrome respiratória aguda grave (SRAG) e óbito 2,3,4. Trata-se de uma doença complexa e com poucas evidências da melhor forma de tratamento 5.
A presença de múltiplos problemas crônicos de saúde parece estar inter-relacionada com a patogênese da COVID-19, fato também observado em epidemias prévias por outros coronavírus (MERS 6 e SARS 7). Apesar da evolução clínica não ser clara, estudos têm demonstrado relação direta e importante da faixa etária do paciente e a sua carga de morbidades (número e gravidade) com o aumento do risco para a incidência de desfechos clínicos desfavoráveis, tais como internação hospitalar, necessidade de unidade de tratamento intensivo (UTI) e óbito 8. Esses fatores associados à baixa contagem de linfócitos e altos níveis de desidrogenase láctica na admissão hospitalar foram fatores de risco importantes e independentes para a progressão clínica desfavorável nesses pacientes 9.
Aproximadamente 72% dos pacientes internados em UTI por COVID-19 apresentavam doenças crônicas pregressas em comparação àqueles que não necessitaram destes cuidados intensivos (37%) 3. Uma metanálise com oito estudos e dados de mais de 46 mil pacientes chineses mostrou que hipertensão (17%), diabetes (8%), doenças cardiovasculares (5%) e doenças respiratórias crônicas (2%) eram as morbidades mais presentes e com risco aumentado de desenvolver um curso mais sério da infecção por SARS-CoV-2 10. Numa metanálise complementar, observou-se que pacientes com doenças prévias do sistema cardiovascular apresentaram maior risco de formas graves da COVID-19 11.
Determinantes sociais em saúde como sexo masculino e idade avançada parecem estar associados à mortalidade entre pacientes hospitalizados com COVID-19 8. Essa mesma revisão sistemática mostrou que o óbito foi duas vezes mais provável em pacientes com qualquer morbidade em comparação com aqueles sem doenças. Um estudo com 72.314 casos, do Centro de Prevenção e Controle de Doenças da China, mostrou elevada taxa de letalidade naqueles pacientes com morbidades preexistentes: doença cardiovascular (10,5%), diabetes (7,3%), doença respiratória crônica (6,3%), hipertensão (6%) e câncer (5,6%) 12. Um trabalho com pacientes da China e Itália observou que a presença de qualquer uma das morbidades anteriormente relatadas associou-se a um risco 2,4 vezes maior de mortalidade 13.
No Brasil, o primeiro caso de COVID-19 foi notificado na cidade de São Paulo em 25 de fevereiro de 2020. O país apresenta alta taxa de transmissão, sendo a nação latino-americana com o maior número de casos confirmados e mortes 14. Existe preocupação das autoridades sanitárias mundiais em relação ao impacto da pandemia de COVID-19 nos países de média e baixa renda por conta das fragilidades de seus sistemas de saúde, reduzida disponibilidade de leitos de terapia intensiva, número limitado de ventiladores mecânicos e pela prevalência de morbidades/infecção 8,15.
Aliado a esse contexto, o processo de envelhecimento acelerado no Brasil tem ocorrido num cenário de importante magnitude e impacto das doenças crônicas e infecciosas, além de iniquidades socioeconômicas acentuadas 16. Assim, conhecer o contingente de pessoas em risco de COVID-19 grave pode subsidiar ações de prevenção (quando uma vacina estiver disponível, por exemplo) e aumentar a intensidade das estratégias não farmacológicas para maior proteção dos indivíduos em alto risco 17. Dessa forma, o objetivo deste trabalho foi medir a ocorrência de multimorbidade e estimar o número de indivíduos na população brasileira com 50 anos ou mais em risco para COVID-19 grave.
Métodos
Estudo transversal de base nacional. Foram utilizados os resultados da linha de base do Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil), conduzido entre os anos de 2015 e 2016, em 70 municípios localizados nas cinco macrorregiões do Brasil. A amostra delineada é representativa da população brasileira com 50 anos ou mais, sendo composta por 9.412 indivíduos, representando um total de 42.407.714 pessoas na faixa etária no país (população de estudo). Para a composição da amostra utilizou-se a estratificação geográfica por conglomerados em três estágios: municípios, que foram alocados em quatro estratos de acordo com o tamanho da população residente, setor censitário e domicílio. Mais detalhes sobre a metodologia do estudo podem ser obtidos em publicação anterior 16.
O desfecho do presente estudo foi a ocorrência simultânea de duas ou mais morbidades consideradas de risco para COVID-19. Além da multimorbidade (≥ 2 condições), também foi observada a ocorrência 1 morbidade. As seguintes morbidades foram selecionadas 17: doenças cardiovasculares (hipertensão arterial, acidente vascular cerebral, infarto agudo do miocárdio, angina e insuficiência cardíaca), doença renal crônica, doença neurológica crônica (doença de Alzheimer e doença de Parkinson), doença respiratória crônica (enfisema, doença pulmonar obstrutiva crônica e bronquite - medidas juntas na mesma questão), diabetes, artrite, asma, câncer, depressão e obesidade. Com exceção da obesidade caracterizada com base na medida objetiva de peso e altura, as demais condições crônicas foram obtidas por relato do entrevistado à pergunta: “Algum médico já lhe disse que o Sr(a) tem?”. A falta de informação sobre as morbidades foi tratada como ausência dos problemas em investigação. A obesidade foi calculada pelo índice de massa corporal (IMC), obtido pela divisão do peso pela altura ao quadrado (ambos média de duas medidas), e categorizada conforme os seguintes pontos de corte: IMC ≥ 30kg/m2 e IMC ≥ 27kg/m2 para indivíduos com menos de 60 anos e ≥ 60 anos de idade, respectivamente. A classificação do IMC segundo a idade usou os critérios recomendados pela OMS 13,18.
Também foram utilizados os indicadores da gravidade da situação de saúde: autoavaliação do estado de saúde ruim/muito ruim, fragilidade 19 e relato de alguma dificuldade para realizar atividades básicas da vida diária (ABVD) 16. As ABVD consideradas foram: atravessar cômodo ou andar de um cômodo para outro, vestir-se, tomar banho, comer, deitar ou levantar da cama e usar o banheiro.
As variáveis independentes foram sexo (feminino, masculino), região geopolítica do Brasil (Norte, Nordeste, Centro-oeste, Sudeste e Sul), idade (em anos completos: 50-59, 60-69, 70-79, ≥ 80) e escolaridade (nunca estudou, 1-4, 5-8, ≥ 9 anos de estudos).
As análises foram realizadas no software Stata SE 15.0 (https://www.stata.com) e incluíram cálculo de prevalência (%) e número absoluto estimado de pessoas na população. Foram estimadas as prevalências de 1 e ≥ 2 morbidades segundo faixa etária, região e sexo. As estimativas de ocorrência e as projeções populacionais para autoavaliação de saúde ruim/muito ruim, fragilidade e incapacidade para ABVD foram estratificadas por escolaridade. A significância estatística foi avaliada pelo teste de qui-quadrado de Pearson. Os parâmetros amostrais e pesos dos indivíduos foram considerados em todas as análises.
O ELSI-Brasil foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa do Instituto René Rachou, Fundação Oswaldo Cruz (parecer nº 886.754). Todos os participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes do início das entrevistas. Todos os aspectos regulatórios e legais foram cumpridos.
Resultados
Metade da população em estudo era do sexo feminino (53,9%), tinha entre 50 e 69 anos de idade (47,6%) e residia na Região Sudeste (47,2%). Do total, 13,3% nunca estudaram e 26,9% ≥ 9 anos de estudo.
Aproximadamente 34 milhões de brasileiros com ≥ 50 anos de idade têm ≥ 1 morbidade de risco para COVID-19 grave. Percentualmente a ocorrência foi similar entre as regiões, sendo, em números absolutos estimados, maior no Sudeste (≈16,3 milhões) e no Nordeste (≈8 milhões). Pessoas com menos de 60 anos de idade apresentaram menor prevalência de morbidades, mas representaram um maior número de indivíduos em termos absolutos. Metade da população em estudo (52%) apresentou multimorbidade de risco para COVID-19 grave (22.068.747 de pessoas), sendo percentualmente maior no Centro-oeste, Sudeste e Sul do país. Sudeste (≈11 milhões) e Nordeste (≈4,5 milhões) continuaram a apresentar os maiores números absolutos estimados. Observou-se um aumento da prevalência de multimorbidade com o avançar da idade, independentemente da região (Tabela 1).
Tabela 1 Prevalência (%) e número absoluto (n) estimado de morbidade e multimorbidade de risco para COVID-19 grave por idade e região geopolítica do Brasil entre indivíduos de ≥ 50 anos de idade. Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil), 2015-2016.
Variáveis | Norte | Nordeste | Centro-oeste | Sudeste | Sul | Brasil |
---|---|---|---|---|---|---|
% (n) * | % (n) * | % (n) * | % (n) * | % (n) * | % (n) * | |
1 morbidade | ||||||
Idade (anos) | ||||||
50-59 | 36,1 (441.999) | 34,4 (1.639.156) | 27,9 (396.750) | 30,2 (2.859.776) | 30,7 (1.020.662) | 31,5 (6.358.342) |
60-69 | 30,1 (206.546) | 30,5 (918.354) | 26,7 (216.554) | 25,7 (1.533.634) | 23,3 (488.281) | 26,7 (3.363.370) |
70-79 | 23,3 (75.163) | 33,4 (565.905) | 21,9 (88.647) | 22,6 (705.484) | 17,0 (186.498) | 24,4 (1.621.698) |
≥ 80 | 25,6 (31.376) | 36,5 (274.795) | 22,0 (35.114) | 24,8 (365.417) | 32,3 (160.067) | 28,9 (866.769) |
Geral | 32,0 (755.084) | 33,2 (3.398.210) | 26,4 (737.065) | 27,3 (5.464.311) | 26,4 (1.855.508) | 28,8 (12.210.178) |
Multimorbidade (≥ 2) | ||||||
Idade (anos) | ||||||
50-59 | 40,1 (490.735) | 37,3 (1.777.758) | 45,8 (651.119) | 45,0 (4.253.316) | 43,5 (1.448.564) | 42,7 (8.621.492) |
60-69 | 56,3 (386.856) | 50,6 (1.524.325) | 62,7 (508.788) | 61,6 (3.676.159) | 66,8 (1.402.914) | 59,6 (7.499.043) |
70-79 | 52,6 (169.731) | 53,0 (897.013) | 67,6 (273.107) | 65,8 (2.049.850) | 73,3 (804.459) | 63,2 (4.194.161) |
≥ 80 | 64,3 (78.742) | 50,0 (376.614) | 64,2 (102.685) | 61,1 (898.320) | 60,2 (297.690) | 58,4 (1.754.051) |
Geral | 47,8 (1.126.064) | 44,8 (4.575.710) | 54,9 (1.535.700) | 54,4 (10.877.644) | 56,3 (3.953.628) | 52,0 (22.068.747) |
* n = número estimado para a população brasileira.
Dentre as mulheres, as morbidades mais prevalentes foram doenças cardiovasculares, obesidade, artrite e depressão. Ter pelo menos uma das morbidades de risco para COVID-19 grave foi mais prevalente entre as mulheres na Região Sudeste (89,5%) e menor na Região Nordeste (84,1%). A Região Sul apresentou a maior prevalência de doenças cariovasculares (63,3%); a Sudeste registrou maior prevalência de obesidade (48,6%) e depressão (36,1%) e a Região Norte mostrou a maior prevalência de artrite (37,7%) entre as mulheres (Figura 1a). A prevalência de uma ou mais morbidades de risco para COVID-19 grave foi de 86,4% para as mulheres e de 74,3% para os homens. Ter uma ou mais das morbidades de risco para COVID-19 grave foi mais prevalente entre as mulheres na Região Sudeste (89,5%) e menor na Região Centro-oeste (81,6%).

Figura 1 Prevalência das morbidades de risco para COVID-19 grave, presença de uma morbidade e multimorbidade segundo região geopolítica do Brasil e estratificadas por sexo entre indivíduos de ≥ 50 anos de idade. Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil), 2015-2016.
Em relação à multimorbidade, foi observada uma maior prevalência nas mulheres (59,4%), sendo mais prevalente na Região Sul (67%), já dentre os homens a prevalência de multimorbidade foi de 43,5%, com maior prevalência na Região Sudeste (47,3%) (Figura 1). Entre os homens, as morbidades mais prevalentes foram doenças cardiovasculares, obesidade, diabetes e artrite. A maior prevalência de doenças cardiovasculares (54,1%) e obesidade (36%) foi observada na Região Centro-oeste, e diabetes (16,7%) e artrite (15,4%) foram mais prevalentes entre os homens na Região Norte (Figura 1b).
As morbidades mais prevalentes, no Brasil, relacionadas à COVID-19 grave entre os indivíduos com idade ≥ 50 anos foram as doenças cardiovasculares (56%), obesidade (39%), artrite (21%) e depressão (18,5%), com pouca variação entre as regiões do país. Quando estratificado por idade, as morbidades mais prevalentes em todas as idades foram doenças cardiovasculares e obesidade (Figura 2). Em relação ao sexo, as mulheres apresentaram as maiores prevalências das morbidades individuais em relação aos homens, exceto para câncer (Figura 2).

Figura 2 Prevalência de morbidades de risco para COVID-19 grave segundo grupos de idade estratificados por sexo entre indivíduos de ≥ 50 anos de idade. Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil), 2015-2016.
As maiores diferenças na prevalência entre os sexos foram para artrite e depressão. As mulheres apresentaram uma prevalência de 25% a 31,1% entre o menor e o maior estrato de idade para artrite, já entre os homens as prevalências foram 9% e 16,4%, respectivamente. Em relação à depressão, as mulheres apresentaram uma prevalência em média de 25,2%, e os homens mostraram uma prevalência de 10,6% (Figura 2).
A prevalência de multimorbidade de risco para COVID-19 grave somada aos indicadores de saúde foi, percentualmente, similar entre as regiões sendo, absolutamente, maior no Nordeste e Sudeste do país. Aproximadamente um total de 2.412.355, 3.656.104 e 4.774.649 de indivíduos apresentaram multimorbidade de risco para COVID-19 grave e, também, fragilidade, autoavaliação ruim da saúde e incapacidade para ABVD, respectivamente (Tabela 2).
Tabela 2 Prevalência de morbidade e multimorbidade de risco para COVID-19 grave de acordo com autopercepção de saúde, fragilidade e incapacidade para atividades básicas da vida diária (ABVD) estratificadas por região geopolítica entre indivíduos de ≥ 50 anos de idade. Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil), 2015-2016.
Variáveis | Norte | Nordeste | Centro-oeste | Sudeste | Sul | Brasil |
---|---|---|---|---|---|---|
% | % | % | % | % | % | |
(IC95%) | (IC95%) | (IC95%) | (IC95%) | (IC95%) | (IC95%) | |
n * | n * | n * | n * | n * | n * | |
1 morbidade | ||||||
Saúde ruim/Muito ruim | 4,1 | 3,7 | 1,3 | 1,4 | 1,4 | 2,1 |
(2,8-6,2) | (2,8-5,0) | (0,6-2,9) | (1,0-2,0) | (0,9-2,1) | (1,7-2,6) | |
97.812 | 379.093 | 37.070 | 290.462 | 96.305 | 900.741 | |
Fragilidade | 1,6 | 3,8 | 0,6 | 1,4 | 1,5 | 1,9 |
(0,6-4,2) | (2,5-5,6) | (0,3-1,3) | (1,0-2,1) | (0,8-2,8) | (1,5-2,6) | |
36.860 | 345.383 | 17.410 | 266.806 | 104.253 | 770.711 | |
Incapacidade ABVD | 3,0 | 4,9 | 3,9 | 3,1 | 2,5 | 3,5 |
(1,5-5,9) | (4,1-5,9) | (2,3-6,7) | (2,4-4,0) | (1,7-3,7) | (3,0-4,1) | |
71.335 | 504.437 | 109.795 | 621.169 | 178.301 | 1.485.037 | |
Multimorbidade | ||||||
Saúde ruim/Muito ruim | 10,8 | 9,7 | 9,5 | 7,5 | 9,3 | 8,6 |
(9,2- 12,5) | (8,0-11,7) | (6,2- 14,4) | (6,3-8,9) | (7,4-11,6) | (7,7-9,6) | |
253.775 | 986.880 | 266.595 | 1.495.267 | 653.586 | 3.656.104 | |
Fragilidade | 6,4 | 6,6 | 5,4 | 6,1 | 5,8 | 6,1 |
(4,7-8,5) | (5,4-8,1) | (4,2-7,0) | (5,3- 7,0) | (4,0-8,2) | (5,6-6,8) | |
143.261 | 603.444 | 145.539 | 1.133.256 | 386.856 | 2.412.355 | |
Incapacidade ABVD | 10,7 | 11,9 | 9,4 | 11,0 | 12,1 | 11,3 |
(9,0-12,6) | (10,6-13,2) | (6,5-13,2) | (9,6-12,6) | (10,2-14,1) | (10,4-12,2) | |
251.891 | 1.214.073 | 261.823 | 2.202.181 | 844.680 | 4.774.649 |
IC95%: intervalo de 95% de confiança.
* n = número estimado para a população brasileira.
As associações segundo escolaridade mostraram que quanto menor a escolaridade, maiores as prevalências e números absolutos estimados. Por exemplo, 18,4% das pessoas que nunca estudaram apresentaram multimorbidade + incapacidade para ABVD, já estes valores passaram para 6,4% entre aqueles com ≥ 9 anos de estudos. Todas as diferenças segundo escolaridade foram estatisticamente significativas (Tabela 3).
Tabela 3 Prevalência de morbidade e multimorbidade de risco para COVID-19 grave de acordo com autopercepção de saúde, fragilidade e incapacidade para atividades básicas da vida diária (ABVD) estratificadas por escolaridade entre indivíduos de ≥ 50 anos de idade. Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil), 2015-2016.
Variáveis | Escolaridade (anos de estudos) | |||
---|---|---|---|---|
Nunca estudou | 1-4 | 5-8 | ≥ 9 | |
% | % | % | % | |
(IC95%) | (IC95%) | (IC95%) | (IC95%) | |
n * | n * | n * | n * | |
1 morbidade | ||||
Saúde ruim/Muito ruim | 4,2 | 2,7 | 1,5 | 0,7 |
(3,3-5,3) | (1,9-3,6) | (0,9-2,3) | (0,5-1,2) | |
234.162 | 431.717 | 134.855 | 85.950 | |
Fragilidade | 4,8 | 1,9 | 2,1 | 0,6 |
(3,3-6,9) | (1,4-2,5) | (1,3-3,3) | (0,4-1,1) | |
231.635 | 285.917 | 179.809 | 67.867 | |
Incapacidade ABVD | 6,5 | 3,7 | 3,6 | 1,6 |
(5,2-8,0) | (3,0-4,6) | (2,7-4,8) | (1,1-2,3) | |
361.966 | 601.348 | 327.997 | 181.165 | |
Multimorbidade | ||||
Saúde ruim/Muito ruim | 13,7 | 10,5 | 7,1 | 4,7 |
(11,7-15,9) | (9,2-12,0) | (5,5-9,2) | (3,8-5,6) | |
764.252 | 1.691.027 | 648.972 | 529.459 | |
Fragilidade | 10,9 | 7,6 | 5,1 | 2,6 |
(9,2-12,9) | (6,5-8,8) | (4,2-6,2) | (1,8-3,7) | |
529.415 | 1.132.640 | 438.458 | 278.692 | |
Incapacidade ABVD | 18,4 | 13,2 | 9,2 | 6,4 |
(16,2-20,7) | (12,0-14,5) | (7,6-11,0) | (5,4-7,6) | |
1.024.966 | 2.135.352 | 834.155 | 729.779 |
IC95%: intervalo de 95% de confiança.
* n = número estimado para a população brasileira.
Discussão
Nossos resultados evidenciaram a magnitude da ocorrência de múltiplas morbidades associadas ao risco de desenvolvimento de formas clinicamente graves de COVID-19 entre brasileiros no processo de envelhecimento. Estima-se que, pelo menos 34 milhões de indivíduos com ≥ 50 anos apresentaram alguma das morbidades avaliadas, destacando-se o considerável quantitativo de pessoas em risco de COVID-19 grave, representando, assim, um número maior que o total da população dos países da América do Sul, exceto Colômbia e Argentina. Somente 40 países do mundo apresentam população maior que a estimativa anteriormente apresentada. Já a multimorbidade afetou metade da população em estudo, sendo maior nas regiões mais ao sul do país, embora o Nordeste e o Sudeste tenham apresentado os maiores números absolutos de indivíduos com ≥ 2 morbidades. Doenças cardiovasculares e obesidade foram as condições mais frequentes independentemente do sexo. A gravidade da situação de saúde (incapacidades funcionais, fragilidade ou autoavaliação ruim/muito ruim da saúde) associada à multimorbidade foi, também, frequente na amostra, tanto em termos relativos (> 6%) quanto em número estimado na população (> 2,4 milhões).
A multimorbidade é um problema de saúde pública no Brasil considerando sua magnitude, complexo manejo clínico, impacto para a sociedade e para o sistema de saúde. Soma-se a isso a escassez de evidências científicas, sobretudo aquelas oriundas de ensaios clínicos randomizados 20,21. Essa área ainda precisa de avanços na forma de sua mensuração epidemiológica no país, mas é evidente que sua ocorrência é alta principalmente em idosos 22,23. Essa combinação de diferentes problemas de saúde tende a criar processos inflamatórios, aumentando a susceptibilidade a diferentes problemas de saúde inclusive doenças infecciosas agudas 24. Um estudo realizado na cidade de Manaus, Amazonas, em 2015, encontrou maior ocorrência de dengue no último ano entre pessoas com multimorbidade 25.
Apesar do conhecimento ainda incipiente sobre o mecanismo biológico que aumenta o risco de infecções entre pessoas com multimorbidade, este parece estar associado ao aumento da inflamação e à diminuição da capacidade de resposta imunológica do corpo 26,27,28. Não obstante, torna-se relevante a compreensão mais detalhada desse processo considerando-se a identificação das diferenças segundo os padrões de morbidades 29.
Dada a atual falta de tratamento/vacina para a prevenção da COVID-19 e de evidências epidemiológicas sobre a maior gravidade do novo coronavírus entre pessoas com multimorbidade, a adoção de intervenções não farmacológicas torna-se fundamental para a prevenção de casos graves da infecção 30,31. Os nossos achados evidenciaram um grande contingente de pessoas em risco de COVID-19 grave em todas as regiões do país, apesar das diferenças relativas e absolutas na ocorrência dos problemas. Mesmo quando especificamos para indivíduos com multimorbidade e situação de saúde grave, o número é alto reforçando a necessidade de proteger toda a nossa população e, principalmente, as pessoas em processo de envelhecimento e em situação de vulnerabilidade. O Sistema Único de Saúde (SUS) e a atenção primária à saúde, por intermédio da coordenação do cuidado pela Estratégia Saúde da Família, continuarão a ter papel relevante para amenizar as iniquidades sociais em saúde por meio da prevenção da infecção pelo vírus e o manejo de condições crônicas e multimorbidade durante e após a pandemia, protegendo especialmente a população mais pobre 30,31.
Os resultados identificam uma maior ocorrência dos desfechos entre grupos de menor escolaridade, ratificando a iniquidade social e seu impacto na saúde dos idosos brasileiros 16. As desigualdades em saúde no Brasil podem ser observadas nas diferenças das prevalências de condições crônicas e multimorbidade, no acesso e uso de serviços de saúde, e na qualidade de vida 22,32,33. A multimorbidade é mais prevalente em mulheres, idosos, pessoas com menor escolaridade e desempregados 22,34. Além disso, apesar dos avanços no acesso e uso de serviços de saúde entre a população brasileira, ainda persistem importantes desigualdades sociais e geográficas. O uso de serviços de saúde está diretamente associado a características individuais, como maior escolaridade e ter plano de saúde 32,35. Embora presentes antes da pandemia, as desigualdades em saúde podem aumentar com a presença da COVID-19, gerar riscos de desfechos diferentes ao contrair a doença e agravamento do quadro em indivíduos com o mesmo nível de morbidade.
O trabalho tem algumas limitações. A forma de obtenção do diagnóstico das condições foi autorreferida (exceto obesidade), o que pode subestimar a ocorrência das doenças devido às dificuldades de acesso ao diagnóstico, principalmente para pessoas de posições socioeconômicas menos favorecidas 23. Outra limitação refere-se ao uso de morbidades consideradas de risco para COVID-19 grave. Esse ainda é um tema com informações incipientes, sendo possível que com melhores evidências científicas possamos selecionar de formas mais embasadas as morbidades associadas à COVID-19 grave. Além disso, somente foram selecionadas as condições relacionadas ao risco de COVID-19 grave disponíveis no estudo ELSI-Brasil 17.
Este estudo baseia-se nas evidências iniciais do efeito da presença de morbidades crônicas no potencial risco de infeção por SARS-CoV-2, principalmente nos seus desfechos clínicos negativos. Apesar das evidências ainda serem incipientes, os achados até agora são unânimes na importância da relação entre condições crônicas e COVID-19 grave 9. Assim, o estudo da epidemiologia da multimorbidade relacionada à COVID-19 grave na população brasileira, sobretudo em idosos, pode representar uma etapa importante para a definição de estratégias e ferramentas para o cuidado da população com riscos acumulados, tanto do ponto de vista demográfico, socioeconômico e de situação de saúde. Os achados reforçam a importância de medidas diferenciadas em um país de dimensões continentais.