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Distribuição dos capitais científicos entre docentes permanentes de Ciências Sociais e Humanas e de Epidemiologia do campo da Saúde Coletiva

Distribution of scientific capital among tenured professors in the Social and Human Sciences and Epidemiology in the Collective Health field

Distribución de los capitales científicos entre docentes permanentes de Ciencias Sociales y Humanas y de Epidemiología en el campo de la Salud Colectiva

Resumo:

A Saúde Coletiva tem se organizado a partir de três subcampos disciplinares: Epidemiologia; Política, Planejamento e Gestão e Ciências Sociais e Humanas. A partir do referencial sociológico da teoria dos campos de Bourdieu, analisou-se a distribuição de um conjunto de capitais científicos entre dois desses grupos de agentes científicos. Os dados foram extraídos do currículo Lattes de 191 docentes que fazem parte do corpo permanente dos Programas de Pós-graduação em Saúde Coletiva avaliados como de excelência pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), sendo 38 das Ciências Sociais e Humanas e 153 da Epidemiologia, sendo consolidados em um banco de dados em Excel. As dimensões analisadas foram: capital herdado ou adquirido, capital escolar, capital de poder político ou econômico, capital de poder universitário, capital de prestígio científico e capital de notoriedade intelectual. Apresentou-se o perfil da população de estudo com relação aos capitais estudados, assim como uma análise estratificada destes capitais considerando os dois grupos, além de uma análise de correspondência múltipla. Os dois grupos apresentam distribuição semelhante na maioria dos capitais, conformando um grupo de grande prestígio científico. A exceção se dá justamente nos capitais de publicação e citação, considerados centrais para a aferição de maior prestígio e reconhecimento. A predominância numérica da Epidemiologia também pode possibilitar maior ocupação nas instâncias decisórias de aferição de prestígio. Conclui-se que equilíbrio do campo se dá na afirmação da alteridade, permitindo que distintos capitais tenham espaço mais destacado na aferição de prestígio científico.

Palavras-chave:
Saúde Coletiva; Domínios Científicos; Ciências Humanas; Ciências Sociais; Epidemiologia

Abstract:

Scientific capital in the Collective Health field has been organized in three subfields: Epidemiology; Policy, Planning, and Management; and Social and Human Sciences. Based on Bourdieu’s field theory as the sociological reference, the study analyzed the distribution of a set of scientific capital between two of these groups of scientific agents. The data were extracted from the Lattes database of resumés for 191 tenured faculty members of Graduate Studies Programs in Collective Health assessed as excellent by the Brazilian Graduate Studies Coordinating Board (CAPES), of which 38 were in the Social and Human Sciences and 153 in Epidemiology, all consolidated in an Excel database. The dimensions analyzed were inherited or acquired capital; academic capital; political or economic power capital; university power capital; scientific prestige capital; and intellectual notoriety capital. The results presented a profile of the study population in relation to the various forms of capital, as well as a stratified analysis of these forms of capital considering the two groups and a multiple correspondence analysis. The two groups present similar distribution in most of the forms of capital, shaping a group with major scientific prestige. The exception is precisely in publication and citation, considered central forms of capital for measuring high prestige and recognition. The numerical predominance of Epidemiology may also allow greater occupation of decision-making spheres for measuring prestige. The conclusion is that the field’s balance occurs in the affirmation of otherness, allowing distinct forms of capital to have more outstanding space in the measurement of scientific prestige.

Keywords:
Public Health; Scientific Domains; Humanities; Social Sciences; Epidemiology

Resumen:

La Salud Colectiva se ha organizado a partir de tres subáreas disciplinarias: Epidemiología; Política, Planificación y Gestión; y Ciencias Sociales y Humanas. A partir del marco de referencia sociológico de la teoría de los campos de Bourdieu, se analizó la distribución de un conjunto de capitales científicos entre dos de esos grupos de agentes científicos. Los datos se extrajeron del currículo Lattes, compuesto por 191 docentes que forman parte del cuerpo permanente de los Programas de Posgrado en Salud Colectiva, evaluados como de excelencia por la Coordinación de Perfeccionamiento de Personal de Nivel Superior (CAPES), siendo 38 de Ciencias Sociales y Humanas y 153 de Epidemiología , registrando la información en un banco de datos en Excel. Las dimensiones analizadas fueron: capital heredado o adquirido, capital escolar, capital de poder político o económico, capital de poder universitario, capital de prestigio científico y capital de notoriedad intelectual. Se presentó el perfil de la población de estudio, en relación con los capitales estudiados, así como un análisis estratificado de estos capitales, considerando los dos grupos, además de un análisis de correspondencia múltiple. Los dos grupos presentan una distribución semejante en la mayoría de los capitales, constituyendo un grupo de gran prestigio científico. La excepción se produce justamente en los capitales de publicación y citación, considerados centrales para la evaluación de un mayor prestigio y reconocimiento. La predominancia numérica de la Epidemiología también puede posibilitar una mayor ocupación en las instancias decisorias de evaluación de prestigio. Se concluye que el equilibrio de esta área se produce en la afirmación de la alteridad, permitiendo que distintos capitales tengan un espacio más destacado en la evaluación del prestigio científico.

Palabras-clave:
Salud Colectiva; Dominios Científicos; Ciencias Sociales; Epidemiología

Introdução

A análise da conformação e dinâmica da Saúde Coletiva encontra na categoria de campo de Pierre Bourdieu uma ancoragem teórica reconhecida. A Saúde Coletiva constitui campo científico marcado por arranjos inter(trans)disciplinares conformados num determinado contexto histórico de lutas políticas, delineadas pelo movimento sanitário brasileiro e pela constituição e defesa do Sistema Único de Saúde (SUS). Esse posicionamento analítico coincide com os de vários outros autores que vêm se dedicando aos estudos históricos, epistemológicos e sociológicos da Saúde Coletiva 11. Nunes ED. Saúde coletiva: história recente, passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. 2ª Ed. São Paulo: Hucitec Editora/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. p. 19-40.,22. Luz MT. Complexidade do campo da Saúde Coletiva: multidisciplinaridade, interdisciplinaridade, e transdisciplinaridade de saberes e práticas - análise sócio-histórica de uma trajetória paradigmática. Saúde Soc 2009; 18:304-11.,33. Nunes ED, Ferreto LE, Oliveira ALO, Nascimento JL, Barros NF, Castellanos MEP. O campo da Saúde Coletiva na perspectiva das disciplinas. Ciênc Saúde Colet 2010; 15:1917-22.,44. Bosi MLM. Produtivismo e avaliação acadêmica na Saúde Coletiva brasileira: desafios para a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. Cad Saúde Pública 2012; 28:2387-92.,55. Deslandes SF. Fórum: legitimidade, expansão e sustentabilidade das Ciências Sociais e Humanas em Saúde Coletiva. Introdução. Cad Saúde Pública 2012; 28:2363-6..

Considerando-a como campo científico, a Saúde Coletiva pode ser entendida como um mundo social dotado de leis próprias e de certa autonomia em relação a outros campos. Está organizada por relações objetivas que permitem uma determinada forma de distribuição dos capitais 66. Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp; 2004. considerados distintivos, capazes de definir posições de poder no interior do campo. Trata-se de um espaço de autonomia e, também, de disputas concorrenciais internas e externas em torno da autoridade científica, vista como a capacidade de falar e atuar legitimamente (de maneira autorizada e com autoridade) sobre os temas e objetos considerados relevantes. A autoridade científica é entendida como, simultânea e inseparavelmente, poder social e capacidade técnica 66. Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp; 2004..

O campo da Saúde Coletiva tem se organizado a partir de “três espaços e formações disciplinares11. Nunes ED. Saúde coletiva: história recente, passado remoto. In: Campos GWS, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Junior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. 2ª Ed. São Paulo: Hucitec Editora/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2009. p. 19-40. (p. 8) ou núcleos de conhecimento 77. Bosi MLM, Prado SD. Alimentação e nutrição em saúde coletiva: constituição, contornos e estatuto científico. Ciênc Saúde Colet 2011; 16:7-17., aqui traduzidos como subcampos disciplinares 88. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora UFSC; 2013.: Epidemiologia; Política, Planejamento e Gestão e Ciências Sociais e Humanas. Tal consolidação, embora consensual, não é exaustiva nem inteiramente fiel às dinâmicas em curso e à inclusão de áreas temáticas e saberes interdisciplinares, atuantes na produção de conhecimento e práticas desse campo.

A relação entre esses subcampos é forjada a partir de um ethos interdisciplinar e comprometido com a complexidade. Entretanto, essa marca epistêmica não apaga as disputas políticas que convoca uma visada autoreflexiva e crítica, com o compromisso de identificar iniquidades e problematizar seus mecanismos, para assim enfrentá-los. O projeto de produção inter(trans)disciplinar se fortalece à medida que conhecemos nossas dinâmicas internas e como se distribuem e acumulam os capitais científicos que conferem distinção aos seus agentes.

O movimento de Reforma Sanitária Brasileira que lançou os alicerces da Saúde Coletiva agregou a liderança de vários epidemiologistas vinculados ao planejamento e organização dos serviços de saúde 99. Almeida Filho N, Barreto ML. Epidemiologia & saúde: fundamentos, métodos e aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011.. Durante o final da década de 1980, mas sobretudo nos anos 1990, a atuação do subcampo Política, Planejamento e Gestão foi marcante, dado o contexto de consolidação do SUS e a necessidade de mecanismos técnicos, de gestão e políticos 1010. Loyola MAR. A Saga das Ciências Sociais na área da Saúde Coletiva: elementos para reflexão. Physis (Rio J.) 2008; 18:251-75.. Vale destacar que a Política, Planejamento e Gestão sempre congregou epidemiologistas bem como cientistas sociais, evidenciando certa porosidade entre os subcampos. A partir dos anos 1990, se consolida uma política de ciência que, priorizando o incremento da produção nacional no cenário global, se dedica a desenvolver formas de quantificação bibliométrica da produção científica brasileira. Os programas de pós-graduação e instituições científicas em geral passam a se organizar buscando êxito diante dos parâmetros estruturantes de produtividade 1010. Loyola MAR. A Saga das Ciências Sociais na área da Saúde Coletiva: elementos para reflexão. Physis (Rio J.) 2008; 18:251-75.. Tal cenário será um dos elementos para a reafirmação do domínio da Epidemiologia na Saúde Coletiva, seja pela tradição cultivada desde os fundadores da epidemiologia brasileira, formados nas universidades Americanas, na produção de papers e cooperação internacional, seja pelos seus modos de produção científica em associação 33. Nunes ED, Ferreto LE, Oliveira ALO, Nascimento JL, Barros NF, Castellanos MEP. O campo da Saúde Coletiva na perspectiva das disciplinas. Ciênc Saúde Colet 2010; 15:1917-22.,99. Almeida Filho N, Barreto ML. Epidemiologia & saúde: fundamentos, métodos e aplicações. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2011.,1111. Camargo Jr. KR, Coeli CM, Caetano R, Maia VR. Produção intelectual em saúde coletiva: epistemologia e evidências de diferentes tradições. Rev Saúde Pública 2010; 44:394-8..

Assim, a estrutura da Saúde Coletiva como campo científico pode ser analisada pela dinâmica da relação de forças entre os protagonistas em disputa, interna e externa ao campo. Internamente, essa relação é definida pela posição que cada agente ou instituição vai ocupar na estrutura de distribuição dos capitais científicos. Essa posição se consolida a partir dos capitais que cada integrante conseguiu acumular ao longo das lutas anteriores daquele campo. São, antes de tudo, espaços de disputa entre os agentes em torno do capital que mais confere prestígio; e por definir as formas de manutenção das hierarquias de autoridade e suas respectivas “taxas de conversão”, ou seja, de ter o poder de modificar os pesos relativos atribuídos para os critérios que sustentam tal ordenação hierárquica 1212. Bourdieu P, Wacquant L. Una invitación a la sociologia reflexiva. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores; 2005..

Todo campo, e a Saúde Coletiva não é exceção, transita entre três dinâmicas: as de manutenção das regras favoráveis aos grupos dominantes que disputam espaços nas instâncias de reprodução do campo (participação em bancas de concursos, definição de regras de admissão aos novos integrantes, definição de regras de avaliação e aferição de mérito); as de subversão das formas estabelecidas de distribuição de poder, internas e externas ao campo; e entre todas as formas de concessão e negociação entre os agentes em disputa 88. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora UFSC; 2013..

O capital científico é reconhecido no interior do campo a partir dos critérios e propriedades definidas. Poderíamos pressupor, a partir do quadro teórico da análise de campo, que na Saúde Coletiva também atuam duas formas de poder que correspondem a duas espécies de capital: o poder temporal (capital político), um poder institucional e institucionalizado, associado à ocupação de posições nas instituições científicas, que está ligado ao poder sobre os meios de produção (contratos, créditos, postos, editais) e de reprodução (poder de nomear, definir regras de carreira); e, um poder de “prestígio” pessoal, conferido pelo reconhecimento dos pares da originalidade e contributo (capital “puro”), que permite uma espiral de acumulação que na carreira científica traduz a possibilidade de “fazer um nome” - importante emblema da distinção e reconhecimento 66. Bourdieu P. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp; 2004.,88. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora UFSC; 2013.,1313. Bourdieu P. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: Bourdieu P, editor. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1987. p. 183-202.,1414. Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Editora Brasiliense; 1990..

Uma carreira científica considerada exitosa, portanto, traduz um processo contínuo de acumulação, desde seu início e mesmo antes dele, ainda que haja exceções. Começa, grosso modo, a partir da posse de certos capitais sociais e econômicos herdados por sua classe social, que permitirão cursar escolas de prestígio, estudos de línguas etc., e que garantirão o ingresso em boas universidades. Diz respeito também às redes de contatos pessoais que garantirão cartas de recomendação, oportunidades de participação em pesquisas e outros convites que podem redundar em prestígio. O ingresso na carreira daquele campo é a iniciação de um aprendizado específico que será essencial ao acúmulo futuro de capitais. O domínio e o adequado uso das categorias de pensamento, dos esquemas de percepção, enfim, de um sistema de valores, em outros termos, o domínio de um habitus científico, permitirá que determinados indivíduos sejam mais bem-sucedidos na obtenção de resultados favoráveis na carreira científica 1313. Bourdieu P. Campo do poder, campo intelectual e habitus de classe. In: Bourdieu P, editor. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva; 1987. p. 183-202.,1414. Bourdieu P. Coisas ditas. São Paulo: Editora Brasiliense; 1990.. O habitus constitui tais esquemas de apreciação, julgamento e classificação. Sua inculcação atua como um gradativo domínio das “regras do jogo” daquele campo.

Todavia, a demarcação dos capitais científicos que definirão a posição desses agentes (e as carreiras individuais) não é inteiramente definida de forma autônoma pelo campo. Políticas de desenvolvimento econômico e tecnológico, critérios de avaliação definidos por agências nacionais e estaduais de fomento à pesquisa e aos programas de pós-graduação (nicho essencial de pesquisa e docência) são agentes externos-internos indutores e preponderantes nessa eleição. Os modelos internacionais de produção científica, bem como seus critérios de mensuração e avaliação constituem outro rol de fatores externos que definem dinâmicas internas aos campos científicos brasileiros. São copiados e naturalizados com a pretensão de que assim participaremos de uma ciência global, balizada pelos Estados Unidos e pela Europa 1515. Alves T, Czeresnia D. A institucionalização da epidemiologia como disciplina na Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Hist Ciênc Saúde-Manguinhos 2003; 10:525-48..

Analisamos então, a partir do referencial sociológico da teoria dos campos de Pierre Bourdieu, a distribuição de um conjunto de capitais científicos entre dois grupos de agentes científicos operantes no campo da Saúde Coletiva brasileira: pesquisadores da Epidemiologia e das Ciências Sociais e Humanas que fazem parte do corpo permanente dos Programas de Pós-graduação em Saúde Coletiva avaliados como de excelência pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), instância responsável pela avaliação e ranqueamento dos cursos de pós-graduação no Brasil. Esse texto integra um projeto que foca a conformação e posição das Ciências Sociais e Humanas no campo da saúde e toma como contraponto a posição hegemônica da Epidemiologia.

Entendemos que conhecer as diferenças e particularidades dos subcampos da Saúde Coletiva nos possibilita ampliar a discussão sobre a constituição, a estrutura e a dinâmica das relações de força no campo da Saúde Coletiva, assim como possibilita a defesa de critérios que sejam mais igualitários na distribuição dos capitais de distinção, o que nos fortalece como campo.

Metodologia

Participantes

Consideramos os profissionais que integram o corpo de docentes permanentes dos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva melhor avaliados (notas 6 e 7) pela CAPES no quadriênio de 2014-2017. Nesse período nove programas ocupavam estes estratos (três programas com nota 7 e seis com a nota 6). Ao considerar apenas o “topo” da hierarquia aplicada aos programas de pós-graduação, acreditamos que as variações possivelmente muito díspares entre a distribuição dos capitais científicos tratados seriam amenizadas. Por um lado, tal decisão permite evidenciar se houver distinções significativas entre os dois subcampos num patamar considerado de grande acúmulo de capitais acadêmicos; todavia não permite analisar as configurações da Saúde Coletiva como totalidade, nem aprofundar a análise sobre os níveis de desigualdades existentes entre os estratos mais altos e os mais baixos.

A identificação dos docentes permanentes foi realizada na Plataforma Sucupira da CAPES (https://sucupira.capes.gov.br) através do caminho: “Coleta CAPES”; “Docentes”; “Instituição Superior de Ensino”, “Programa” e “Categoria”. A obtenção da listagem dos docentes ocorreu em novembro de 2018 e novamente checada em janeiro de 2019. Considerando os nove programas analisados, identificamos um total de 334 inscrições de docentes permanentes (um mesmo docente poderia estar em mais de um programa).

O currículo Lattes dos pesquisadores-docentes desses programas foi a fonte básica para averiguação da inserção em cada subcampo da Saúde Coletiva (Epidemiologia; Ciências Sociais e Humanas; Política, Planejamento e Gestão; e Outros). Reconhecendo que a classificação da filiação docente é uma questão delicada, dadas as interfaces e campos transitivos entre as disciplinas, cada currículo foi analisado de forma independente por duas pesquisadoras. Tomamos como critério de inclusão a autoclassificação, contida na apresentação inicial do currículo Lattes. Nos casos em que permanecia dúvida, o segundo critério de inclusão foi a vinculação da produção do pesquisador na área de referência (Ciências Sociais e Humanas ou Epidemiologia). Foram examinados os artigos informados, atentando para os títulos dos trabalhos e revistas, e para as publicações nas quais tais artigos foram publicados. Nas poucas situações de persistência de dúvida de classificação, três outras pareceristas (duas cientistas sociais e uma epidemiologista) atuaram na classificação final.

Após a classificação foram registrados 191 docentes permanentes dentre os dois grupos estudados, sendo 38 das Ciências Sociais e Humanas e 153 da Epidemiologia.

Variáveis estudadas

Nosso plano analítico inicial encontra-se sintetizado sob a forma de uma matriz, publicado em artigo anterior 1616. Deslandes S, Maksud I. Capitais científicos em saúde coletiva: proposta de análise inspirada nas fontes utilizadas na obra Homo academicus. Saúde Soc 2019; 28:324-336. que tomou como base a obra de Bourdieu, Homo Academicus88. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora UFSC; 2013.. Inclui um primeiro nível de capitais prévios, adquiridos (ou não) por pertencimento à determinada classe social. Esses capitais (escolares, de poder político ou econômico) exercem certa esfera de influência e determinação na disposição inicial de qual posição esse sujeito irá ocupar no campo. O conjunto de capitais propriamente científicos, que se apresentam como “puro” (ou de prestígio e notoriedade) e político, refletem a habilidade e manejo na realização de atividades, ocupação de espaços institucionais e produções consideradas como as mais adequadas pelo campo.

Na presente análise exercitou-se o enquadramento dos dados numa aplicação mais concisa da complexa construção teórica de Bourdieu, que se expressa nas seguintes dimensões e variáveis: capital herdado ou adquirido: sexo; curso de graduação; ano de obtenção do título de graduação. capital escolar: estudos em outros países; domínio dos idiomas inglês, francês, espanhol, outros (“lê e escreve bem”). capital de poder político ou econômico: cargos de gabinete ou consultoria em ministério; consultoria internacional. Capital de poder universitário: atuação na direção de instituto/faculdade, pró-reitoria, reitoria; coordenação de programa de pós-graduação em Saúde Coletiva; participação em banca de concurso de professores/pesquisadores; atuação em coordenação de comissão ou GT (Grupo Temático) da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). capital de prestígio científico: participação em Comitê Assessor do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); direção de grupo de pesquisa credenciado no diretório CNPq; atuação profissional em instituições estrangeiras; prêmios; citações totais recebidos no Scopus; bolsas ou estadias no exterior; bolsas de produtividade do CNPq; participação em cooperações científicas internacionais; produção científica em revistas A1 e A2; produção científica em revistas B1 e B2; capítulos e livros publicados em editoras universitárias; orientação de teses; supervisão de pós-doutorado; editoria de revista científica. Capital de notoriedade intelectual: publicação de artigos em jornais não científicos de prestígio; publicação de artigos em revistas de debate intelectual; participação em programas de TV. Tais capitais possuem uma sinergia e influem nas dinâmicas de acumulação.

Coleta e processamento dos dados

As informações de interesse foram extraídas do currículo de cada docente, obtidos na Plataforma Lattes do CNPq (https://lattes.cnpq.br/) e consolidadas em um banco de dados no software Excel (https://products.office.com/) para a limpeza e processamento das variáveis.

A maioria das informações sobre os capitais desses professores levou em conta um período mais recente (2009-2018). Entretanto, algumas variáveis consideraram toda a vida profissional por serem definidoras de um capital social herdado tais como sexo; curso de graduação; ano de obtenção do título de graduação; estudos em outros países; domínio do idioma inglês, espanhol, francês, outros. A variável bolsa produtividade do CNPq é referida na base Lattes quanto à sua vigência atual.

As citações totais recebidas no Scopus e a Direção de grupo de pesquisa credenciado no diretório CNPq se apresentam nas suas respectivas bases sem possibilidade de recorte temporal. Para obter o número total de citações do pesquisador na base Scopus (https://www.scopus.com/search/form.uri?display=basic#author), consultamos o nome de cada professor no período entre outubro e novembro de 2019. Quando o mesmo autor foi encontrado mais de uma vez com grafias diferentes de citação, consideramos o maior número de citações. Por não permitir recorte temporal de consulta, os professores com mais tempo de carreira podem ter escores mais favoráveis.

Para coletar informações sobre “Direção de laboratório de pesquisa credenciado no CNPq” recorremos ao site do diretório dos grupos de pesquisa no Brasil, do CNPq. O percurso se deu primeiro em “censos”, depois “busca textual”, “pesquisadores” e por fim, o nome do pesquisador que estava sendo consultado no momento. Essa busca foi feita durante o ano de 2019 e os dados coletados são referentes ao censo mais recente que a plataforma dispunha, de 2010 e que pode ser encontrado no site: http://dgp.cnpq.br/buscagrupo/.

Análise de dados

A primeira etapa da análise envolveu a descrição do perfil da população de estudo com relação aos capitais estudados, considerando-se a amostra como um todo. Na sequência, foi realizada uma análise estratificada destes capitais considerando os dois subcampos da área de saúde alvos deste estudo (Ciências Sociais e Humanas e Epidemiologia). Utilizou-se o teste qui-quadrado (χ2) para identificar diferenças estatisticamente significativas (valor de p < 0,05). Por fim, realizou-se uma análise de correspondência múltipla (ACM) para identificar o padrão de relação entre os capitais estudados, bem como a importância relativa de cada uma das variáveis que compõem o conjunto dos capitais.

A ACM é parte de um conjunto mais amplo de técnicas denominado Análise Geométrica de Dados, que busca descrever e analisar as relações entre um grande número de variáveis categóricas por meio de medidas espaciais como a distância euclidiana e a dispersão ao longo de eixos principais 1717. Greenacre M. Correspondence analysis in practice. New York: Chapman and Hall/CRC; 2017.. Os conceitos principais da ACM são os perfis de linha ou coluna e a distância qui-quadrado. Segundo Bertoncelo 1818. Bertoncelo E. O uso da análise de correspondência múltipla nas ciências sociais: possibilidades de aplicação e exemplos empíricos. http://www.anpocs.com/index.php/encontros/papers/40-encontro-anual-d-anpocs/st-10/st16-7/10296-o-uso-da-analise-de-correspondencias-multiplas-nas-ciencias-sociais-possibilidades-de-aplicacao-e-exemplos-empiricos?format=html (acessado em 29/Mai/2020).
http://www.anpocs.com/index.php/encontro...
, nas Ciências Sociais, a ACM subsidia uma “concepção relacional do social”, tal como visto nos estudos sobre classe social e distinção simbólica de Pierre Bourdieu. Essa lógica relacional indica que as práticas sociais não têm significado em si mesmas, mas apenas em oposição ou em relação com outras.

Inicialmente, realizou-se uma ACM com o conjunto de variáveis que representam cada um dos capitais avaliados na pesquisa. Para a identificação do número de dimensões a serem consideradas, observou-se o percentual de contribuição de cada dimensão para a inércia total. Como a primeira e a segunda dimensões somadas contribuíram com 62,7% da inércia, optou-se por restringir a análise a estas primeiras duas dimensões. O scree plot corroborou o uso de duas dimensões. Para os cálculos das inércias e das posições das variáveis, graficamente, utilizou-se a Matriz de Burt, que considera as tabulações cruzadas entre todas as duplas de variáveis 1717. Greenacre M. Correspondence analysis in practice. New York: Chapman and Hall/CRC; 2017.. Para a definição do modelo final, as variáveis que apresentaram valores de contribuição para a inércia total ≥ 1/Q (sendo Q, o número de variáveis incluídas na análise) foram consideradas “ativas”. As demais foram introduzidas no modelo como variáveis “suplementares” 1717. Greenacre M. Correspondence analysis in practice. New York: Chapman and Hall/CRC; 2017.. As relações entre as categorias das variáveis ativas foram apresentadas graficamente. A análise dos dados foi realizada no software estatístico Stata, versão 15 (https://www.stata.com).

Resultados

A Tabela 1 apresenta a descrição da população de estudo segundo os capitais herdado ou adquirido, escolar, de poder político/econômico e de poder universitário. Cerca de 60% dos pesquisadores que participam dos cursos de pós-graduação em Saúde Coletiva avaliados com nota 6 e 7 pela CAPES no último quadriênio são mulheres. Em termos do capital herdado, cerca de 3/4 tem graduação em cursos da área da saúde ou biológicas e 2/3 concluiu sua graduação até o final da década de 1980. Em termos do capital escolar, grande parte dos pesquisadores teve oportunidade de estudar no exterior e domina o idioma inglês, enquanto apenas 12,3%, 6,4% e 2,1% dos mesmos domina o idioma espanhol, francês ou outro, respectivamente. Em termos do capital político/econômico, cerca de 20% e quase 10% dos pesquisadores reportam consultorias internacionais e participação em gabinete e assessoria a ministérios, respectivamente. Grande parte dos pesquisadores detém algum tipo de capital de poder universitário. Cerca de 70% já participou de bancas de concurso para professores, enquanto cerca de 25% e 10% dos mesmos já coordenou o programa de pós-graduação ou coordenou comissões ou GT da Abrasco. Parcela menor de professores também já participou da gestão da instituição universitária ou instituto de pesquisa.

Tabela 1
Descrição dos capitais herdado ou adquirido, escolar, de poder político e econômico e de poder econômico na população de estudo.

O perfil do conjunto de pesquisadores com relação ao capital de prestígio científico e de notoriedade intelectual consta na Tabela 2. Como pode ser visto, apenas cerca de 10% dos pesquisadores já participou de algum comitê científico assessor do CNPq, apesar de em torno de 40% deles coordenar grupo de pesquisa credenciado no diretório de grupos de pesquisa e cerca de 55% ter bolsa de produtividade em pesquisa da instituição. Cerca de 30% dos pesquisadores têm algum tipo de atuação em instituição de pesquisa estrangeira e/ou tem parcerias internacionais. A experiência internacional também se manifesta através do indicador de bolsa de estudos ou estadia no exterior (23%). Cerca de 3/4 da amostra é editor de revistas científicas e já recebeu prêmios ao longo da carreira. Em termos de produtividade acadêmica, observa-se que perto de 90% e 60% dos docentes publicam pelo menos um artigo/ano em revistas A1 ou A2 e B1 ou B2, respectivamente, enquanto aproximadamente 70% já publicou livros ou capítulos de livros em editoras universitárias. O número de citações ao longo da vida variou entre 1 e 39.198, tendo boa parte dos pesquisadores (48,6%) mais de mil citações ao longo da vida profissional. Quase a totalidade já orientou teses de doutorado e 47,1% alunos de pós-doutorado. Já em termos de capital de notoriedade intelectual, em torno de 40% dos pesquisadores já participou de programas de televisão, enquanto uma parcela menor (20%) já publicou textos em jornais de prestígio e/ou em revistas de grande mídia não acadêmicas.

Tabela 2
Descrição dos capitais de prestígio político e de notoriedade intelectual na população de estudo.

As Tabelas 3 e 4 apresentam o perfil dos vários capitais de acordo com o subcampo da Saúde Coletiva (Ciências Sociais e Humanas e Epidemiologia). Percebe-se uma maior heterogeneidade de formação dos integrantes das Ciências Sociais e Humanas com relação aos de Epidemiologia, embora 42,1% dos docentes do subcampo de Ciências Sociais e Humanas tenha feito graduação em cursos pertencentes às grandes áreas das Ciências Humanas e da Linguística, Letras e Artes, quase 58% fizeram em áreas de formação bem diversas, com destaque para as Ciências da Saúde e Biológicas (31,6%). Na Epidemiologia, o grupo se mostra mais homogêneo, já que 83% optaram por cursos das Ciências da Saúde e das Ciências Biológicas. Em termos do capital escolar, apesar de ambas as subáreas terem grande percentual de pesquisadores que estudaram no exterior e com domínio do idioma inglês, as Ciências Sociais e Humanas agregam muito mais professores com domínio do francês do que a Epidemiologia. Outro resultado que chama a atenção é a semelhança entre as áreas no que tange aos indicadores de capital de poder político/econômico e a maioria dos relativos aos capitais de poder universitário, com exceção à participação em comissões e GT da Abrasco, muito mais comum entre os pesquisadores das Ciências Sociais e Humanas (Tabela 3).

Tabela 3
Descrição dos capitais herdado ou adquirido, escolar, de poder político e econômico e de poder econômico segundo área de atuação do docente no campo da Saúde Coletiva.
Tabela 4
Descrição dos capitais de prestígio político e de notoriedade intelectual segundo área de atuação do docente no campo da Saúde Coletiva.

Em termos do capital científico (Tabela 4), também chama a atenção que não se observaram diferenças estatisticamente significativas entre as subáreas em 11 dentre os 14 indicadores estudados. Entretanto, percebe-se uma nítida vantagem da Epidemiologia no que concerne ao número de citações na base Scopus e ao volume de publicação científica em revistas altamente qualificadas, enquanto a Ciências Sociais e Humanas tem destaque na produção de livros por editoras universitárias, reconhecidamente qualificadas. Por fim, também vale ressaltar que em termos de notoriedade, as diferenças entre as subáreas só se manifestaram com relação à participação dos profissionais em programas de televisão, mais frequente entre os pesquisadores das Ciências Sociais e Humanas.

A Figura 1 apresenta as relações entre os diversos indicadores de cada um dos capitais estudados, representadas através das distâncias e proximidades com relação às coordenadas do gráfico. A Figura 1 contempla apenas as variáveis ativas (Material Suplementar, Tabela S1: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static//arquivo/suppl-e00278620_2243.pdf). Como pode ser visto, percebe-se uma aglomeração entre os indicadores de capital científico. A maior parte destes indicadores se encontra em torno do centroide do gráfico indicando que estes não têm grande participação na inércia total do modelo. Ao se observar a correspondência entre as categorias dos indicadores que mais participam da inércia da dimensão 1, nota-se que não orientar doutorado se correlaciona com não ter estudado no exterior, ter formação em ciências agrárias, engenharias, exatas e da terra, ter um número menor de citações no Scopus, não ter bolsa de produtividade e não ser editor de revista científica. O mesmo ocorrendo com relação às categorias complementares destas variáveis. Ao dedicar atenção à dimensão 2, percebe-se a clara importância da formação em ciências sociais ou ciências humanas, domínio de francês e outros idiomas diferente de espanhol e inglês, ter menor número de publicações em revistas A1 e A2 e participar na Abrasco na inércia do eixo, e como estes indicadores se aproximam da subárea Ciências Sociais e Humanas. Por outro lado, percebe-se que um maior número de citações, não publicar livros ou capítulos de livros se vinculam mais à subárea Epidemiologia.

Figura 1
Mapa de correspondência dos capitais científicos entre docentes permanentes de Ciências Sociais e Humanas e de Epidemiologia do campo da Saúde Coletiva, considerando apenas as variáveis ativas na análise de correspondência múltipla.

Discussão

Foi possível perceber que o grupo estudado é majoritariamente oriundo das graduações em Ciências da Saúde e Biológicas e de gerações mais maduras, graduadas há mais de 30 anos, mas há baixa participação nas altas carreiras universitárias de direção de instituto ou faculdade, pró-reitoria/reitoria. O grupo mostra grande influência na renovação de novas gerações de pesquisadores com alta participação em bancas de seleção de novos professores universitários. Destacaram-se os capitais de elevado de prestígio científico como as bolsas de produtividade e editoria de revistas científicas. Todavia menos de 1/3 do grupo revela capitais de prestígio “internacional”, expressos na atuação em instituições estrangeiras, cooperações científicas internacionais e estadias no exterior. Há alto percentual dos que publicam um ou mais artigos nas revistas A1, A2 e que amealham muitas citações, indicando a posse de capitais estratégicos para avaliações bem-sucedidas dos programas e carreiras individuais.

Observa-se que a maioria dos capitais está, em geral, igualmente distribuída entre docentes das Ciências Sociais e Humanas e Epidemiologia. Possivelmente se tivéssemos analisado a totalidade dos programas da área de Saúde Coletiva, e não somente um grupo vinculado a programas de excelência o quadro seria diferente. Todavia, a análise percentual foi feita entre grupos de tamanhos muitos distintos, com maioria dos docentes da Epidemiologia. Consequentemente todos os percentuais que estão próximos, diluem diferenças importantes no número absoluto de bolsas, cargos, participações etc., confirmando uma presença e atuação maciça da Epidemiologia em todas as esferas de poder desse campo. Uma diferença que acaba por definir a ocupação de instâncias estratégicas capazes de definir as regras decisórias de manutenção das posições do campo 88. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora UFSC; 2013.. Essa diferença, por exemplo, recai sobre a concessão de bolsas de produtividade na área, conforme Barata & Goldbaum 1919. Barata RB, Goldbaum M. Perfil dos pesquisadores com bolsa de produtividade em pesquisa do CNPq da área de saúde coletiva. Cad Saúde Pública 2003; 19:1863-76., que mostraram haver concentração de bolsas entre os epidemiologistas.

Apesar de dispormos de um rol de capitais de classe herdados muito reduzido, e, portanto, limitador da análise, observamos que a distribuição dos capitais escolares entre os dois grupos se aproxima quanto à oportunidade de estudos no estrangeiro, mas se distingue no domínio de línguas com maior domínio para as Ciências Sociais e Humanas. Não saber da profissão dos pais, religião, bairro onde morou, escolas em que estudou no Ensino Médio, nos limita de demarcar um mapeamento de pertencimento de origem social e capitais culturais 88. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora UFSC; 2013..

No que concerne ao capital de poder político, poucos docentes assumiram cargos de gabinete ou consultoria em Ministério ou de consultoria internacional, indicando que as esferas de influência de alto escalão nacional e internacional não constituem um perfil típico do grupo, mas que certamente podem agregar distinção aos que o detém. A inclusão dos participantes de Política, Planejamento e Gestão provavelmente mudaria esse cenário pois seus profissionais em geral acumulam maior capital burocrático. A limitação do presente estudo indica a necessidade de ampliar análises futuras, com uma perspectiva mais abrangente, contemplando os três subcampos.

O capital de notoriedade intelectual, capital que se situa entre as fronteiras internas ao campo científico e as externas da divulgação jornalística e de mídias de comunicação social e científica, os professores da subárea de Ciências Sociais e Humanas tiveram maior destaque, especialmente na participação de programas de TV. Todavia, vale lembrar que esse capital gozava de pouco prestígio na cultura científica na análise original do Homo Academicus88. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora UFSC; 2013.. Essa lógica parece fazer menos sentido nos dias atuais, com o reconhecimento da necessidade da comunicação científica para o grande público. Tal capital é também conjuntural. Na eclosão de uma epidemia, como a de COVID-19, as mídias jornalísticas, por exemplo, convocam uma maior participação de epidemiologistas.

O capital de poder universitário, tipo de capital específico para os cargos de poder político-administrativo, demonstrou-se bem distribuído entre as duas subáreas, com maior acúmulo para as Ciências Sociais e Humanas na coordenação de programas de pós-graduação em Saúde Coletiva e coordenação de comissão ou GT da Abrasco, denotando maior engajamento na gestão acadêmica e na liderança de ativismo técnico-científico. Todavia, a dedicação de tempo para acumular esse capital pode subtrair de seus agentes o investimento no capital de prestígio científico.

No grupo central dos capitais de prestígio científico, as orientações de doutorandos, capital estratégico para a formação de equipe, consolidação de status acadêmico e possibilidades de publicação, bem como oportunidade de inculcação de um habitus científico e do exercício de administração das carreiras dos novatos 88. Bourdieu P. Homo academicus. Florianópolis: Editora UFSC; 2013. figurou como capital igualmente distribuído, obviamente pela inserção desses agentes em um programa de pós-graduação. Outro capital relevante para a ocupação de posições de destaque no campo é o de edição de revistas científicas, que também se mostrou bem distribuído entre as duas subáreas.

O capital das bolsas e estadias no exterior tampouco diferiu nos dois grupos de docentes das Ciências Sociais e Humanas e Epidemiologia. Todavia essas oportunidades parecem desdobrar-se de forma diferente entre os dois grupos. Na atuação profissional em instituições estrangeiras, registra-se ligeiramente maior destaque de docentes das Ciências Sociais e Humanas que os da Epidemiologia. Esse capital se confirma em relação à participação em cooperações científicas internacionais (não aferida aqui a natureza ou região de origem dessas parcerias). Esse tipo de capital pode potencialmente levar à acumulação de outros capitais, tais como a participação em pesquisas multicêntricas, publicação conjunta e recebimento de financiamento internacional. Este dado, num grupo de programas de excelência, merece ser problematizado frente a outras análises que consideraram o conjunto de programas de pós-graduação. Loyola et al. 2020. Loyola MA, Corrêa MCDV, Guimarães ERB. Cooperação internacional na área da Saúde Coletiva: propostas para um debate. Ciênc Saúde Colet 2010; 15:2007-20. analisaram até a primeira década dos anos 2000 a cooperação internacional que se distribuía de forma desigual, tanto entre as regiões do país (concentrando-se nos programas com mais recursos e nas regiões Sudeste e Sul) e entre as diferentes subáreas de conhecimento. Em sua análise, tais ações se concentraram predominantemente na Epidemiologia (33%) e Planejamento (17%), em contraste com uma fraca participação das Ciências Humanas (8,7%). Os efeitos positivos da cooperação internacional já são conhecidos, restando-nos indagar sobre seus efeitos na produção acadêmica e na prática (sobre as instituições, serviços e políticas de saúde), bem como se tais relações se pautaram em relações simétricas de cooperação ou de subordinação aos centros internacionais.

Contudo, tais acúmulos não parecerem repercutir igualmente no capital de publicações e citações e nestes residem as principais desigualdades da distribuição dos capitais científicos dentre esses dois grupos. As citações recebidas no Scopus bem como as publicações em revistas bem classificadas no Qualis da área (A1 e A2), indicaram diferença expressiva no acúmulo do capital de prestígio científico, apontando largo predomínio dos docentes da Epidemiologia. Essa desigualdade se mostra exatamente em relação a um dos capitais em torno do qual mais se atribui distinção e consagração na cultura científica brasileira das últimas décadas.

Importante problematizar que a eleição de artigos em revista de impacto como elemento de maior distinção ignora a pluralidade de modelos, discursos científicos e “pretensões intelectuais” reunidos na Saúde Coletiva 44. Bosi MLM. Produtivismo e avaliação acadêmica na Saúde Coletiva brasileira: desafios para a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. Cad Saúde Pública 2012; 28:2387-92.,2121. Caponi S, Rebelo F. Sobre juízes e profissões: a avaliação de um campo disciplinar complexo. Physis (Rio J.) 2005; 15:59-82.. Bosi 44. Bosi MLM. Produtivismo e avaliação acadêmica na Saúde Coletiva brasileira: desafios para a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais. Cad Saúde Pública 2012; 28:2387-92., ao consultar o WebQualis Saúde Coletiva em 2012 (http://www.qualis.capes.gov.br/webqualis), confirma que do conjunto dos periódicos incluídos nos estratos superiores (A1 e A2), menos de 5% publicam pesquisas qualitativas e de Ciências Sociais e Humanas. Confirmando a importância da publicação em livros para o subcampo de Ciências Sociais e Humanas e reafirmando a tradição dessa forma de publicação (só recentemente valorizada pelas instituições de fomento e avaliação), quase a totalidade dos docentes das Ciências Sociais e Humanas dos programas analisados teve capítulos e livros publicados em editoras universitárias. O reconhecimento dos livros constituiu importante mudança nas regras de conversão dos capitais do campo, ratificando a necessidade de equilíbrio interno e a alteridade das expressões da produtividade de seus agentes.

A ACM nos indica elementos de diferenciação que definem as disposições em relação entre esse espaço estruturado de acumulação sinérgica entre capitais e a posição dinâmica que cada um dos agentes ocupa. Indica que o grupo analisado já possui um acúmulo - o que o credenciou para compor os quadros de programas de excelência. Todavia, mesmo nesse nicho aparecem posições mais subalternas que se definem também com igual sinergia.

Essa conformação parece acompanhar a dinâmica do campo desde suas origens, quando seus fundadores, através de seus capitais culturais prévios e adquiridos por meio de diplomas, puderam obter a concessão de bolsas e financiamentos para pesquisadores de instituições do campo, como a Fundação Ford, a Fundação Rockfeller, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), e a Fundação Kellog 2020. Loyola MA, Corrêa MCDV, Guimarães ERB. Cooperação internacional na área da Saúde Coletiva: propostas para um debate. Ciênc Saúde Colet 2010; 15:2007-20.,2222. Vieira-da-Silva LM. O campo da Saúde Coletiva: gênese, transformações articulações com a Reforma Sanitária. Salvador: EdUFBA/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018.. Vários agentes fundadores do campo puderam realizar formação internacional, concluindo mestrado e doutorado no exterior. Uma análise anterior do campo mostrou que, já naquela época, ambos os grupos de pesquisadores, de epidemiologia e de Ciências Sociais e Humanas, possuíam capitais científicos e políticos equivalentes, com pequenas variações em relação à posição política, ao capital burocrático universitário, ao capital burocrático institucional e à geração 2222. Vieira-da-Silva LM. O campo da Saúde Coletiva: gênese, transformações articulações com a Reforma Sanitária. Salvador: EdUFBA/Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2018..

Os resultados deste estudo devem ser compreendidos em seus pontos fortes e suas limitações. O principal ponto forte refere-se à possibilidade de examinar a distribuição de cada grupo de capitais e ao mesmo tempo olhar a conformação de certas posições ocupadas pelos diferentes agentes desse campo. Em contrapartida, a principal limitação deste estudo refere-se à especificidade da população estudada, profissionais que integram o corpo de docentes permanentes dos programas de pós-graduação em Saúde Coletiva mais bem pontuados (notas 6 e 7) pela CAPES no quadriênio de 2014-2017, não viabilizando a extrapolação destes resultados para os demais programas. A escassez de indicadores para compor o capital herdado também deve ser mencionada. Outra limitação foi a má qualidade de preenchimento de alguns campos do currículo Lattes (entrevistas em mídias, por exemplo, são menos valorizadas). A inclusão de apenas o nome com mais citação na base Scopus evita a inclusão equivocada de homônimos, mas pode ter diminuído os escores de citação entre alguns docentes.

Conclusão

O estudo mostra que nos grupos de pesquisadores ligados a programas de excelência, a distribuição da maioria dos capitais é muito semelhante entre as duas subáreas da Saúde Coletiva aqui estudadas, conformando um grupo até certo ponto homogêneo e de excelência. Entretanto, essa homogeneidade se altera quando considerada a formação em graduação. Ela se evidencia no subcampo da Epidemiologia, mas nas Ciências Sociais e Humanas há expressiva heterogeneidade, indicando não apenas a diversidade disciplinar deste subcampo, como o potencial de um maior tensionamento de forças de poder internas, entre os agentes, além de desafio para o reconhecimento de “pares” e identificação de pertencimento de “corpo”. Uma questão que permanece em aberto, merecendo estudos posteriores é discutir quem são os que têm tido maior “êxito” nas Ciências Sociais e Humanas em Saúde, considerado o trânsito, maior ou menor, com as ciências sociais e humanidades em suas trajetórias.

Outra diferença entre os subcampos se dá justamente nos capitais de publicação e citação considerados centrais para a aferição de maior prestígio e reconhecimento. Vale ponderar que tais critérios têm mudado na avaliação dos programas de pós-graduação, a exemplo da inclusão de livros e capítulos no sistema de pontuação. Entretanto esses capitais ligados ao modelo produtivista ainda têm destaque na avaliação das carreiras individuais.

Com relação, ainda, ao capital de prestígio científico, os resultados indicam uma boa resposta do campo à estratégia adotada no país de internacionalização da ciência, cabendo refletir as tendências futuras de ação ou refração do campo à essas demandas internas-externas.

A predominância numérica, permitindo uma ocupação mais maciça nas instâncias decisórias, bem como coesa ao espírito de corpo do subcampo da Epidemiologia também merece destaque. Se hoje as relações são solidárias e comprometidas com a valorização da diversidade de produções, historicamente a presença massiva dos quadros de Epidemiologia nas posições que definiam os parâmetros avaliativos repercutiu na lógica de conversão de capitais, ou seja, na possibilidade de valorizar os capitais mais próximos daqueles já acumulados pelo grupo. A diversidade de fazeres científicos no campo da Saúde Coletiva tem convocado seus diferentes agentes a olhar de forma questionadora sobre a ideia de se ter medidas iguais para aquilatar a todos. Nesse sentido, o equilíbrio do campo se dá na afirmação da alteridade, permitindo que distintos capitais tenham espaço mais destacado na aferição de prestígio científico.

Agradecimentos

Agradecimentos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (FAPERJ) pelo financiamento do estudo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2020
  • Revisado
    02 Mar 2021
  • Aceito
    19 Mar 2021
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