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Entre intenções e contingências, antigos programas e demandas por novas práticas de atenção nutricional no Sistema Único de Saúde

Entre intenciones y contingencias, viejos programas y demandas de nuevas prácticas de atención nutricional en el Sistema Único de Salud brasileño

A análise empreendida por Santos et al. 11. Santos SMC, Ramos FP, Medeiros MAT, Mata MM, Vasconcelos FAG. Avanços e desafios nos 20 anos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Cad Saúde Pública 2021; 37 Suppl 1: e00150220. partiu do olhar sobre as produções da área técnica gestora da Política Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) no âmbito do Ministério da Saúde. Optou-se aqui por dialogar com sua produção mediante alguns aspectos que foram pouco explorados, mas são necessários para a construção de um mosaico de análises que permita um olhar abrangente sobre a complexidade da implementação desta política.

É preciso considerar que as realizações e não realizações da Coordenação-Geral da Política de Alimentação e Nutrição/Coordenação-Geral de Alimentação e Nutrição (CGPAN/CGAN) foram condicionadas pelos contextos político-institucionais dos diferentes governos nessa trajetória e que envolveram a necessária defesa de sua sustentabilidade institucional, presente tanto na formação da agenda e nos processos de formulação e atualização da PNAN, quanto nas estratégias prioritárias implementadas 22. Alves KPS. Entre a transição institucional e a transição nutricional: descortinando a trajetória da nutrição em saúde pública à atenção nutricional no Sistema Único de Saúde [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019.. Apesar de o artigo apontar alguns elementos nesse sentido, a análise empreendida apresenta limitações no tocante a aspectos que relacionem a implementação da PNAN ao contexto geral do Sistema Único de Saúde (SUS), como seu subfinanciamento, conflitos interfederativos sobre as responsabilidades para garantia do direito à saúde, disputas sobre modelos assistenciais, entre outros.

Explorar tais aspectos contribuiria para se compreender por que, na análise dos autores, as ações da CGAN para implementação da diretriz de organização da atenção nutricional, presente na segunda versão da PNAN, foram consideradas equivalentes àquelas para implementação da diretriz de prevenção e controle de agravos nutricionais da primeira versão da política, embora as diretrizes apresentem diferenças significativas em suas intencionalidades e recomendações sobre práticas no SUS.

No processo de atualização da PNAN, a CGAN precisava demarcar seu papel frente à política e sistema nacionais de segurança alimentar e nutricional (SAN), além da contínua defesa de seu lugar no Ministério da Saúde, em que, naquele momento, as diretrizes para organização das Redes de Atenção à Saúde (RAS) e a atualização da Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) davam o tom da gestão. Nesse cenário, a nova PNAN reafirmou seu compromisso intersetorial e reforçou seu papel intrassetorial 22. Alves KPS. Entre a transição institucional e a transição nutricional: descortinando a trajetória da nutrição em saúde pública à atenção nutricional no Sistema Único de Saúde [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019.. Assim, sua primeira diretriz aponta caminhos para a organização da atenção nutricional no SUS, detalhados nas diretrizes seguintes, e a última diretriz aborda a articulação e cooperação para SAN 33. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília: Ministério da Saúde; 2012..

A primeira diretriz trata sobre organização e oferta dos cuidados relativos à alimentação e nutrição nas RAS, e, embora dê mais ênfase às práticas no âmbito da atenção básica enquanto ordenadora das redes e coordenadora do cuidado, reconhece que tal organização também é necessária no âmbito da atenção especializada ambulatorial e hospitalar, indicando, entre outras questões: sua transversalidade com relação a outras políticas específicas; a necessidade de elaboração de protocolos e normas técnicas, incluindo a normatização de critérios para promover a equidade e a regulação do acesso a alimentos para fins especiais; a interação do acompanhamento clínico e nutricional com os serviços de produção de refeições e de terapia nutricional nos hospitais 33. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília: Ministério da Saúde; 2012..

Outra diferença importante entre as duas versões foi o reconhecimento dos cuidados às pessoas com necessidades alimentares especiais como demanda para a atenção nutricional no SUS, por conta das reivindicações de grupos organizados atuantes em espaços de participação social 44. Gabe KT, Jaime PC, Silva KC. Políticas públicas de alimentação e nutrição voltadas para necessidades alimentares especiais. In: Jaime PC, organizadora. Políticas públicas de alimentação e nutrição. Rio de Janeiro: Atheneu; 2019. p. 145-54.. Esse reconhecimento pode contribuir para ampliar as ofertas de atenção nutricional no SUS para outros públicos, além daqueles que geralmente são priorizados por critérios epidemiológicos.

Por alguns anos, a indução do Ministério da Saúde para a organização das RAS temáticas promoveu a ampliação da oferta de atenção especializada nos municípios por meio da criação de serviços como centros de atenção psicossocial, residências terapêuticas, centros de reabilitação, unidades de pronto atendimento e ainda leitos hospitalares para condições específicas. Além de fomentar estratégias para ampliação e qualificação dos serviços de atenção básica, objetivando maior resolutividade frente à crescente diversidade e intensidade das demandas de saúde da população 55. Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Implantação das Redes de Atenção à Saúde e outras estratégias da SAS. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.. Todavia, de acordo com as fontes exploradas por Santos et al. 11. Santos SMC, Ramos FP, Medeiros MAT, Mata MM, Vasconcelos FAG. Avanços e desafios nos 20 anos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Cad Saúde Pública 2021; 37 Suppl 1: e00150220., não houve ações da CGAN para induzir e/ou apoiar a organização e a qualificação da atenção nutricional nos serviços de atenção especializada. Mesmo que as diretrizes para organização de uma linha de cuidado às pessoas com obesidade incluam recomendações para estes serviços, ocorreu apenas a atualização dos critérios de habilitação para hospitais que realizam cirurgia bariátrica. E, apesar de o latente problema da judicialização para garantia do acesso às fórmulas nutricionais ser reconhecido, as ações sobre ele estiveram à margem da agenda prioritária.

Compreende-se que o apoio técnico e financeiro do Ministério da Saúde para atenção nutricional na atenção especializada poderia oferecer a gestores e profissionais parâmetros para planejamento da oferta de cuidados, qualificação da assistência e otimização de recursos. Por exemplo, a adoção de protocolos oficiais do SUS poderia prevenir conflitos de interesse na prescrição, compra e dispensação de fórmulas nutricionais, pois, na ausência deles, pode ocorrer uso de recomendações produzidas pelas próprias fabricantes destes insumos ou por associações científicas financiadas por elas.

Ainda no escopo da atenção especializada, cabe lembrar que, para as unidades de produção de alimentos/refeições em serviços de saúde, não há qualquer direcionamento ou apoio específico do Ministério da Saúde, elas se orientam tão somente pelos regulamentos técnicos de boas práticas e normas próprias, quando existentes. Além de sua contribuição direta para a recuperação e manutenção da saúde das pessoas e dos trabalhadores, as compras públicas de alimentos para os serviços do SUS poderiam contribuir para sistemas alimentares locais saudáveis e sustentáveis.

Para indivíduos hospitalizados, a alimentação pode ser o único elo com sua vida fora desse ambiente, sendo mais do que um veículo de nutrientes. O princípio da PNAN que reconhece a alimentação como elemento de humanização das práticas de saúde corrobora estudos que reivindicam uma prática mais flexível e humanística da alimentação hospitalar, que explore seus aspectos simbólicos e sensoriais 33. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.,66. Diez-Garcia RW, Padilha M, Sanches M. Alimentação hospitalar: proposições para a qualificação do Serviço de Alimentação e Nutrição, avaliadas pela comunidade científica. Ciênc Saúde Colet 2012; 17:473-80.,77. Corbeau J. Alimentar-se no hospital: as dimensões ocultas da comensalidade. In: Canesqui AM, Diez Garcia RW, organizadoras. Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 227-38..

Sobre a atenção básica, cumpre ressaltar que as equipes se deparam com uma complexa situação de saúde de indivíduos, famílias e comunidades que projeta a inovação de práticas de atenção nutricional que extrapolam aquelas fomentadas pela CGAN. A criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) contribuiu nesse sentido, possibilitando a criação de estratégias que tensionam as práticas clássicas da chamada nutrição em saúde pública e incluem a experimentação da atenção nutricional com base em uma clínica ampliada e compartilhada, assim como as ressignificações da educação alimentar e nutricional em diálogo com as necessidades de cada território 88. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Contribuições dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família para a atenção nutricional. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.,99. Cruz PJSC. O agir crítico em nutrição na atenção primária à saúde e suas potencialidades à luz da concepção da educação popular. Ciênc Educ (Bauru) 2020; 26:e20036..

O lócus institucional da CGAN no Ministério da Saúde impõe barreiras para ampliação de seus mecanismos de indução de práticas para toda a RAS. Ao mesmo tempo, a perpetuação de alguns programas parece contribuir para sua estabilidade institucional, o que pode permitir seus investimentos no apoio às práticas locais emergentes em resposta às novas demandas de atenção nutricional no SUS 22. Alves KPS. Entre a transição institucional e a transição nutricional: descortinando a trajetória da nutrição em saúde pública à atenção nutricional no Sistema Único de Saúde [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019..

Tais demandas se constituem pela necessidade de responder ao quadro de saúde-doença da população brasileira por meio de práticas de cuidado em saúde condizentes com os princípios de universalidade, integralidade e equidade. Desta forma, um apontamento importante no caminho de análise sobre a implementação da PNAN é que, além de avaliar a execução de suas diretrizes, se necessita de também olhar se há coerência entre as práticas desenvolvidas e os princípios desta política que sustentam seu diálogo com a SAN e a humanização do SUS 33. Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília: Ministério da Saúde; 2012..

Agradecimentos

Às editoras do número temático pela oportunidade de compartilhar nossas reflexões. À Ruben Mattos (in memoriam) por encorajar nossos estudos na área de políticas de saúde no Brasil.

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    Santos SMC, Ramos FP, Medeiros MAT, Mata MM, Vasconcelos FAG. Avanços e desafios nos 20 anos da Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Cad Saúde Pública 2021; 37 Suppl 1: e00150220.
  • 2
    Alves KPS. Entre a transição institucional e a transição nutricional: descortinando a trajetória da nutrição em saúde pública à atenção nutricional no Sistema Único de Saúde [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2019.
  • 3
    Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Política Nacional de Alimentação e Nutrição. Brasília: Ministério da Saúde; 2012.
  • 4
    Gabe KT, Jaime PC, Silva KC. Políticas públicas de alimentação e nutrição voltadas para necessidades alimentares especiais. In: Jaime PC, organizadora. Políticas públicas de alimentação e nutrição. Rio de Janeiro: Atheneu; 2019. p. 145-54.
  • 5
    Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Implantação das Redes de Atenção à Saúde e outras estratégias da SAS. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.
  • 6
    Diez-Garcia RW, Padilha M, Sanches M. Alimentação hospitalar: proposições para a qualificação do Serviço de Alimentação e Nutrição, avaliadas pela comunidade científica. Ciênc Saúde Colet 2012; 17:473-80.
  • 7
    Corbeau J. Alimentar-se no hospital: as dimensões ocultas da comensalidade. In: Canesqui AM, Diez Garcia RW, organizadoras. Antropologia e nutrição: um diálogo possível. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2005. p. 227-38.
  • 8
    Departamento de Atenção Básica, Secretaria de Atenção à Saúde, Ministério da Saúde. Contribuições dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família para a atenção nutricional. Brasília: Ministério da Saúde; 2017.
  • 9
    Cruz PJSC. O agir crítico em nutrição na atenção primária à saúde e suas potencialidades à luz da concepção da educação popular. Ciênc Educ (Bauru) 2020; 26:e20036.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2021
  • Revisado
    04 Jun 2021
  • Aceito
    14 Jun 2021
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