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Transgressões e concessões do cuidado: práticas de resistência nas internações pediátricas de longa duração

Transgressions and concessions of care: resistance practices in long-term pediatric hospitalizations

Transgresiones y concesiones de cuidado: prácticas de resistencia en hospitalizaciones pediátricas de larga duración

Resumos

As internações de longa duração de crianças e adolescentes com condições crônicas complexas de saúde implicam em inúmeras restrições às experiências comuns da infância. Muitos deles nascem, crescem e até morrem no hospital, sem nunca terem conhecido seus lares. A experiência de cuidado deste grupo foi acionada por meio de uma investigação narrativa. Convidamos trabalhadores de um hospital pediátrico público dedicado ao atendimento de perfil clínico complexo para que contassem histórias que marcaram sua memória. A evocação da dimensão afetiva do cuidado apontou para o tensionamento dos limites normativos instituídos. A flexibilização das regras do hospital era feita em nome de um benefício para a criança ou o adolescente. Analisamos estas situações, que aqui denominamos como transgressões e concessões, para discutir aspectos importantes das microrrelações e cultura nas cenas de cuidado. Sobressaem-se mecanismos de resistência, em um esforço para suplantar ou reparar um ambiente muitas vezes identificado como desumanizador.

Palavras-chave:
Doença Crônica; Criança; Pessoal de Saúde; Empatia; Narrativa


Long-term hospitalizations of children and adolescents with complex chronic health conditions imply many restrictions to common childhood experiences. Many of them are born, grow up, and even die in the hospital without ever having known their homes. The care experience of this group was triggered by a narrative investigation. Workers from a public pediatric hospital dedicated to the care of complex clinical profiles were invited to tell stories that marked their memory. The evocation of the affective dimension of care pointed to the tensioning of the established normative limits. Hospital rules were made more flexible to benefit children and adolescents. These situations, which are called transgressions and concessions in this study, were analyzed to discuss important aspects of the micro-relationships and culture of care. Resistance mechanisms stand out in an effort to overcome or repair an environment often considered dehumanizing.

Keywords:
Chronic Disease; Child; Health Personnel; Empathy; Narrations


Las hospitalizaciones de larga duración de niños y adolescentes con condiciones de salud crónicas complejas implican numerosas restricciones en las experiencias infantiles. Muchos nacen, crecen e incluso mueren en el hospital sin haber conocido sus hogares. La experiencia de cuidado de esta población fue tema de una investigación narrativa. Les pedimos a los trabajadores de un hospital pediátrico público, dedicado a la atención de perfil clínico complejo, que nos contaran historias que les habían marcado. La evocación de la dimensión afectiva del cuidado apuntó a la tensión de los límites normativos establecidos. La flexibilización de las normas del hospital se hizo en beneficio del niño o adolescente. Analizamos estas situaciones que llamamos transgresiones y concesiones para discutir los aspectos importantes de las microrrelaciones y la cultura en las escenas de cuidado. En estas, destacan los mecanismos de resistencia en un esfuerzo por superar o reparar un ambiente identificado muchas veces como deshumanizador.

Palabras-clave:
Enfermedad Crónica; Niño; Personal de Salud; Empatía; Narrativa


Introdução

Este artigo se debruça sobre histórias contadas no âmbito de uma pesquisa em um hospital público situado no Município do Rio de Janeiro, Brasil. Uma instituição de média e alta complexidade, que tem como característica distintiva o atendimento a bebês, crianças e adolescentes com diversas condições genéticas e malformações, muitos demandando uso de tecnologia para a manutenção das funções vitais e permanecendo em internações prolongadas ou recorrentes. Algumas crianças nascem, vivem e morrem sem ter podido conhecer suas próprias casas. Partimos do entendimento de que essas histórias se perpetuam e criam um amálgama de memória coletiva que tem repercussões na prática do cuidado e na própria subjetividade dos atores presentes na cena. Partimos do reconhecimento deste grupo - trabalhadores, familiares e crianças - como pertencente a uma comunidade de afeto, termo que, explorado por Raquel Paiva 11. Paiva R. A comunidade do afeto. Revista Matrizes 2012; 1-2:63-75., pressupõe uma rede de alianças baseadas na honra e na generosidade. “Por esta trilha, a partir da investigação da vinculação afetiva se compreende uma vetorização da relação entre os indivíduos movidos muito mais por esta determinante que pelos tradicionais laços de parentesco, territoriais e até mesmo legais22. Paiva R, Malerba JP, Custódio L. "Comunidade gerativa" e "comunidade de afeto": propostas conceituais para estudos comparativos de comunicação comunitária. ANIMUS 2013; 24:244-61. (p. 251).

Em nosso estudo, tomamos os processos de narrativização como promotores de conexões entre memória e experiência do grupo em questão. Como nos lembra Benjamin 33. Benjamin W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Benjamin W , organizador. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. v. 1. 3ª Ed. São Paulo: Editora Brasiliense; 1987. p. 197-221., o narrador é antes de tudo um sujeito da e na cultura. Ao enunciarmos cultura aqui, assumimos uma relação entre um campo compartilhado de valores, moralidades, ideias de mundo e suas negociações.

As narrativas, neste artigo, são compreendidas como perspectiva teórica e método. Deslocam-se epistemologicamente da posição de uma simples técnica para coletar depoimentos. Isso porque não estão prontas para serem colhidas e nem se reduzem a falas ou depoimentos sobre algo que a priori se sabe. As narrativas são processos que contemplam dimensões interativas entre um convite realizado, um encontro marcado e um aceite para narrar. Para Castellanos 44. Castellanos MEP. A narrativa nas pesquisas qualitativas em saúde. Ciênc Saúde Colet 2014; 19:1065-76. (p. 1068), “a narrativa é considerada uma forma universal de construção, mediação e representação do real que participa do processo de elaboração da experiência social, colocando em causa a natureza da cultura e da condição humana”.

Nessa direção, as narrativas têm entre seus elementos fundamentais o espaço e o tempo. O espaço evocado não se limita ao interior do hospital, apesar de a maioria das histórias narradas aí se iniciar. O cuidado e as relações construídas em internações, por exemplo, transbordam para outros cenários. Quanto ao tempo, além de remeter a transformações na instituição, reveste-se de um caráter de duração que não acompanha a marcação do calendário. Safra 5 afirma que no tempo existencial a experiência parece eternizar-se. Aponta: “O tempo histórico-social apresenta a experiência humana em termos de presente, passado e futuro. O tempo existencial supera essas noções e coloca a experiência humana em um para além. É a experiência vivida em um agora, que não tem como referência, necessariamente, o passado ou o futuro, mas é vivenciado como um eterno55. Safra G. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida: Idéias & Letras; 2004. (p. 79).

A personagem que emerge como ponto central é a criança ou adolescente que aqui chamaremos de “cliente preferencial”, seguindo análise de Tanabe 66. Tanabe RF. Corpos híbridos - a tecnologia incorporada na vida: explorando as relações de cuidado de crianças com condições crônicas complexas em terapia intensiva [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2020., que identifica um grupo de crianças e famílias que gozam de atenção e acessos privilegiados dentro do hospital. O tempo prolongado de convivência parece ser o fator preponderante para alçá-los a essa categoria, embora outros fatores relacionais entrem nesta equação, como a gravidade do quadro da criança e a possibilidade de esta se comunicar, solicitando e despertando a afeição da equipe.

Assumimos que as histórias vividas na instituição, que tem por especialidade o cuidado de crianças e adolescentes com condições de saúde complexas, raras e crônicas, constituem-se em um importante patrimônio imaterial a ser valorizado e preservado. Este trabalho de resgate de histórias permite recuperar aspectos cotidianos e afetivos das microrrelações que se perdem silenciosamente com o passar do tempo, e que de outro modo seguiriam apenas como memórias particulares daqueles que participaram dos acontecimentos na ocasião. O resgate dessas histórias evidencia um natural entrecruzamento de biografias, intra e extramuros. Os eventos vão ganhando espessura, nuances e destaques renovados por meio de uma tessitura coletiva a partir de distintos narradores.

A escolha pelas narrativas - compreendendo-as como um trabalho prolongado e de elaboração sobre um tempo de memória e experiência - permitiu o surgimento de enredos inesperados. Para este artigo, elegemos no centro da análise aqueles relatos nos quais as regras institucionais são “deixadas de lado” ou são negociadas em nome de um benefício para a criança ou o adolescente. Estas situações, que aqui chamaremos de transgressões e concessões, ao serem analisadas em seus múltiplos significados, podem elucidar aspectos importantes das microrrelações e cultura nas cenas de cuidado.

Um caminho metodológico

As narrativas que subsidiam a escrita deste artigo são oriundas de uma pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz, nº 26984919.0.0000.5269) e que, em sua primeira etapa, convidou trabalhadores a compartilhar histórias que os tivessem marcado. Perguntamos especificamente sobre atendimentos e pacientes que tivessem ficado em suas memórias. O acervo reunido e analisado contou com 29 entrevistas, resultando em mais de 40 horas de gravação. Todos os trabalhadores escutados fazem ou já fizeram parte de um mesmo hospital, situado no Município do Rio de Janeiro e integrante da rede do Sistema Único de Saúde (SUS), tendo como público mulheres, crianças e adolescentes. Para esta pesquisa, foram mobilizados aqueles que se organizam em torno do eixo pediátrico da atenção, tendo participado trabalhadores de diferentes categorias e inserções, inclusive aposentados. Além dos profissionais que atuam na beira do leito, na assistência direta, incluímos aqueles que compõem os bastidores do hospital, como trabalhadores da cozinha, manutenção e serviços gerais. Estes últimos, que normalmente não são escutados nas pesquisas acadêmicas, foram considerados por terem o potencial de enunciar outras reflexões e olhares sobre o cuidado hospitalar.

As entrevistas foram realizadas, em razão da pandemia da COVID-19, preferencialmente com a mediação de plataformas digitais, embora tenha sido possível realizar cinco delas presencialmente, e o material obtido foi gravado e transcrito na íntegra. Os trabalhadores foram selecionados a partir de indicações que levaram em conta o seu tempo na instituição, além de aspectos relacionais, tendo sido, por exemplo, apontados por seus pares como “tendo muitas histórias, além de disposição e satisfação em contá-las”. Ao serem contactados para a entrevista, mostraram-se lisonjeados e verdadeiramente emocionados.

Foram entrevistadas 29 pessoas, sendo 7 homens e 22 mulheres. O dado, que parece indicar um maior reconhecimento das trabalhadoras mulheres na posição de produtoras de um cuidado para além do físico, deve ser colocado em perspectiva quando consideramos a realidade específica do hospital onde a pesquisa se deu. A instituição conta com uma maioria feminina nos seus quadros, mesmo nas posições tradicionalmente associadas ao masculino, como corpo médico/cirúrgico e cargos de gestão. As pesquisadoras responsáveis pela coordenação do estudo são, também, mulheres.

A equipe de pesquisa buscou, sempre que possível, arranjos nos quais estivessem presentes duas ou mais entrevistadoras. Quando o tempo de encontro se aproximava de duas horas, havia a sugestão de marcação de um segundo dia de conversa, sempre na modalidade (presencial ou remota) que melhor atendesse ao entrevistado. Ao término, perguntou-se se todas as histórias e todos os assuntos tratados poderiam ser utilizados pelas pesquisadoras, explicitando-se os produtos esperados. A concordância foi unânime. O áudio da entrevista foi oferecido a todos os participantes, sendo que apenas dois de fato solicitaram seu envio.

Considerando a dimensão performática da interação 77. Berns U. Performativity. In: Jannidis F, Hühn P, Pier J, Schmid W, Schönert J, editores. The living handbook of narratology. Hamburgo: Hamburg University; 2009. p. 370-83., Baumann & Briggs 88. Baumann R, Brigss C. Poética e performance como perspectivas críticas sobre a linguagem e a vida social. Ilha - Revista de Antropologia 2006; 8:185-229. tratam da relação narrador-audiência. Os autores afirmam que a audiência teria papel ativo na seleção feita pelo narrador na organização da forma e conteúdo a ser apresentado. No caso do nosso estudo, temas delicados como os que envolvem comportamentos desviantes da norma institucional só puderam surgir porque foi criada uma ambiência de confiança. É importante destacar que as pesquisadoras têm uma inserção na cena hospitalar da atenção integral à saúde, operando a partir de uma posição contra-hegemônica, distinta do padrão normalizado de atuação, o que parece ter contribuído para o compartilhamento desse tipo de relato.

Teoricamente ancoradas no entendimento das narrativas como processos de cultura, acionamos o cuidado como política e lugar da interdependência 99. Kittay E. Love's labor: essays on women, equality and dependency. Nova York/Londres: Routledge; 1999.,1010. Kittay E. Centering justice on dependency and recovering freedom. Hypatia 2015; 30:285-91.. Com Rezende & Coelho 1111. Rezende CB, Coelho MC. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2010., entendemos também as emoções como produtos da cultura, uma gramática aprendida que dá forma à circulação de afeto, às trocas e construções de vínculos que se desenvolvem em uma dada comunidade.

Ganha relevo em nossa discussão a dimensão do trabalho emocional 1212. Hochschild AR. The managed heart: commercialization of human feeling. Berkeley: University of California Press; 1983. envolvido nos processos de cuidado. A regulação emocional está presente nas diferentes esferas do cotidiano e se refere ao gerenciamento dos estados afetivos para atender às demandas da vida social. A ambiência do hospital, como a de outras instituições, envolve regulação das emoções para garantir o êxito no desempenho das atividades e a manutenção do emprego 1313. Bonfim MC, Gondim SMG. Trabalho emocional: demandas afetivas no exercício profissional. Salvador: EdUFBA; 2010..

O artigo foi organizado com base em três eixos de interpretação, não excludentes entre si e que dialogam com a literatura. Não se teve a pretensão de esgotar as possibilidades de entendimento das narrativas estudadas, mas ofereceu-se aqui algumas possibilidades de análise.

Transgressões e concessões como movimento de vida

Um hospital que abriga crianças e adolescentes em situação acrescida de vulnerabilidade - da saúde, social, afetiva -, especialmente se estivermos falando de um tempo anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e às discussões e ações de humanização, transformar-se-ia facilmente em um depósito de corpos tristes.

Nessa perspectiva de análise, o corpo é compreendido como algo que está vulnerável ao encontro com os outros corpos. Quando um encontro é favorável, esse corpo experimenta uma espécie de “alegria” que aumenta a sua potência de ação. (...) Por outro lado, quando o encontro impõe limites à expansão da vida, ele é experimentado como algo ‘triste’, ou seja, como algo que diminui a potência do corpo para agir1414. Mansano SRV. O trabalho imaterial afetivo na área da saúde. Perspectivas en Psicología: Revista de Psicología y Ciencias Afines 2014; 11:86-92. (p. 88).

Essa tristeza, concretizada na pobreza de recursos e possibilidades, afeta crianças, famílias e equipe. É, portanto, um ato de rebeldia a produção de vida e investimento afetivo em um local como este, ato esse possível quando crianças e adolescentes são vistos como sujeitos. É preciso transgressão das regras para que se insira nessa realidade sombria um registro de pessoalidade.

Goffman 1515. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva; 1974. explicita que as instituições podem contribuir com a desumanização das relações e pessoas ao promover rituais de despersonalização. Não queremos aqui equiparar as condições do hospital, ainda que em um momento pré-humanização, às dos manicômios, prisões e conventos aos quais o autor se refere. Ainda assim, pensamos que o conceito pode nos ajudar a discutir e compreender um cenário que nos foi apresentado nos relatos de trabalhadores mais antigos na instituição.

As narrativas parecem estabelecer um “antes” e um “depois”. Entretanto, apesar de estarmos nomeando alguns acontecimentos como pré ou pós-ECA ou pré e pós-humanização, devemos considerar que esses tempos se imiscuem. A existência de um marco legal não implica automaticamente que os direitos que nele estão inscritos sejam imediata e efetivamente garantidos na prática. O passado pode se atualizar nas condutas de cuidado e é fundamental que estejamos atentos.

Goffman 1515. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva; 1974. afirma que, ao entrar nos domínios da instituição total, o indivíduo sofre uma série de rebaixamentos, degradações, humilhações e profanações do eu: “O seu eu é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado1515. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Editora Perspectiva; 1974. (p. 24). Quando o indivíduo em questão é uma criança e estamos em um cenário pré-ECA, o afastamento dos pais ou de seus cuidadores habituais já representa uma séria mortificação. Soma-se a isso a restrição de movimento imposta pela hospitalização e toda a quebra do cotidiano, atividades e papéis aos quais essa criança ou adolescente está habituada - isso se ela experimentou outros contextos de vida para além do hospital. O próprio profissional, ao ser admitido em uma instituição, passa por um processo de aculturação por meio do qual deverá internalizar os comportamentos, atitudes e mesmo as emoções que dele serão esperados.

Eu nunca recebi orientação diretamente, ‘Não, você não pode botar criança no colo para dar [de] mamar’, (...) mas, quando eu cheguei, esse era o método que era usado. Você está chegando num lugar (...) então você tem que seguir a cartilha para não ser diferente. E quando eu tentava ser diferente, eu era criticada”.

O que se reporta na fala da entrevistada é a perspectiva mecanicista que aloca as tarefas técnicas como domínio da racionalidade, segregadas necessariamente das emoções, tratando-as como polos excludentes entre si. A moralidade asséptica e as relações regidas pela austeridade servem a uma organização institucional pautada pelo rigor da hierarquia e de um saber científico ultrapassado. Tal regime oprime tanto os pacientes como os próprios agentes da saúde, que se veem igualmente amortecidos de sua subjetividade. Esse enquadramento disciplinar do corpo garante muitas vezes a docilidade esperada por meio da implantação de uma disciplina e de um regulamento fundamentado na ordem 1616. Costa JF. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2004.. Em um ambiente regido por esta racionalidade, o advento de qualquer desejo se revela como transgressão. A mesma entrevistada do excerto acima, por exemplo, chega a dizer que “era como se você não tivesse que cuidar com sentimentos”.

A ideia de que os fenômenos afetivos seriam disfuncionais para o desempenho do trabalhador vem sendo superada a partir da compreensão dos estados afetivos como indissociáveis das organizações, tendo em vista que estes modelam as interações sociais e contribuem para a cultura organizacional 1313. Bonfim MC, Gondim SMG. Trabalho emocional: demandas afetivas no exercício profissional. Salvador: EdUFBA; 2010.. No contexto de uma instituição como o hospital, os lugares pré-determinados respeitam regras e exigem, continuamente, um trabalho emocional 1212. Hochschild AR. The managed heart: commercialization of human feeling. Berkeley: University of California Press; 1983. ou imaterial 1414. Mansano SRV. O trabalho imaterial afetivo na área da saúde. Perspectivas en Psicología: Revista de Psicología y Ciencias Afines 2014; 11:86-92. sobre a expressão desses afetos.

Entendendo a relação laboral como uma relação social, é importante que nos questionemos sobre quais emoções somos incentivados a expressar e quais escolhemos ou somos instados a esconder em nosso ambiente de trabalho. A própria alegria pode ser uma emoção, em alguns contextos, vista como inadequada ao funcionamento de um hospital. Algumas práticas, como a proposição de atividades lúdicas na enfermaria, ainda que estejam em conformidade com os regulamentos do hospital, podem ser entendidas por membros mais endurecidos da equipe como verdadeira transgressão.

Eu me lembro que a gente foi num seminário de Enfermagem e perguntei a elas: ‘O quê que vocês preferem? Choro e luto? Por que a risada incomoda tanto vocês? O quanto que vocês estão mobilizadas com a tristeza?’ E de alguma forma houve uma mudança em algumas enfermeiras”.

Aqui trazemos o conceito deleuziano de vontade de potência como o desejo primário de persistir no próprio ser. Um desejo potencializado e acentuado por um ser que se deixa afetar pelos fenômenos externos 1717. Peixoto Junior CA. A lei do desejo e o desejo produtivo: transgressão da ordem ou afirmação da diferença? Physis (Rio J.) 2004; 14:109-27.. A transgressão à norma mortificadora constitui-se produtora de diferenças e criadora de novas possibilidades estéticas, sensíveis e éticas de existência.

Fui eu a primeira a levar uma criança para o sol, a tirar uma criança daqui de dentro mesmo ela estando quase morrendo. Passear com ela, fazer um conchavo com a nutrição e dizer: ‘Eu posso dar um sorvete?”.

Os trechos das entrevistas apontam para um olhar sensível que se materializa para além das práticas tradicionais de cuidado. As transgressões e concessões como movimentos de vida tornam possível a compreensão de uma lógica dialética onde cuidador e sujeito do cuidado se imbricam como agentes ativos e produtores de saúde. Para além da passividade e docilidade exigida dos corpos, pensa-se aqui na potência da criatividade e de práticas de saúde que denunciam uma perspectiva “dessubjetivante” do sujeito doente e do próprio cuidador profissional.

Transgressões e concessões como marcas do deslocamento de lugares

A estrutura organizacional do hospital depende, em certa medida, que as pessoas permaneçam nos lugares a elas designados, limitando-se a cumprir as atribuições que lhes competem. À equipe cabe um certo distanciamento afetivo, que na prática é difícil de ser mantido, especialmente quando falamos em internações pediátricas prolongadas.

Utilizamos a ideia de lugares sociais com base na perspectiva interacionista simbólica e, mais precisamente aqui, aquela apoiada por George Simmel 1818. Simmel G. A sociologia do segredo e das sociedades secretas. Revista de Ciências Humanas 2009; 43:219-42.. Essa perspectiva valoriza os aspectos relativos às compreensões, significados e valores, considerando que o mesmo sujeito, dependendo das interações que estabelecer, da posição que representar, dos objetivos para os quais estiver voltado e até mesmo do ambiente em que se encontrar, pode revelar aspectos por vezes não só diferentes, mas também inesperados e até mesmo paradoxais, se consideradas a sua posição e sua visão de mundo.

Especialmente em situações nas quais a técnica médica não é capaz de garantir a cura, em internações prolongadas pontuadas por eventos em que a vida é gravemente ameaçada, a equipe se vê confrontada com a necessidade de oferecer respostas fora do script. O deslocamento do lugar meramente técnico pode levar o profissional a assumir outros papéis na tentativa de reparação do sofrimento experimentado (ou que se imagina experimentado) pela criança, seja este sofrimento infligido pela doença, pela sua terapêutica e/ou pela hospitalização. Neste deslocamento, ele pode chegar a ocupar um lugar não profissional, e a esta constatação não atribuímos qualquer juízo de valor.

O tempo prolongado e a intensidade das experiências-limite criam verdadeiras famílias dentro do hospital. Paez & Moreira 1919. Paez AS, Moreira MCN. Construções de maternidade: experiências de mães de crianças com síndrome do intestino curto. Physis (Rio J.) 2016; 26:1053-72., analisando experiências de mães de crianças com síndrome do intestino curto - condição crônica e grave -, identificaram que a proximidade gerada pelas internações longas, aliada ao sentimento de serem compreendidas e terem a situação de seus filhos aceita, gera relações bastante intensas entre as mães e entre elas e os profissionais de saúde. Em nossa pesquisa, foram muito frequentes nos relatos dos profissionais as histórias de solidariedade e mesmo de relações que evoluem para a amizade extramuros.

Tem a X, virou madrinha da minha neta”.

A Y foi embora em 2010, deixou uma lacuna, assim, perdi uma irmã, uma irmã muito querida. Mas eu continuo indo na família”.

Uma técnica de enfermagem conta uma história na qual os papéis de cuidado se invertem. Cuidando de uma menina hospitalizada até a morte, chegando inclusive a comparecer a seu sepultamento, ela criou com a mãe da criança um laço sólido de amizade e confiança. Quando teve sua própria mãe necessitando de cuidados, a técnica de enfermagem contratou esta mulher para auxiliá-la.

Foi, assim, uma troca muito grande. Eu cuidei da filha dela e ela cuidou da minha mãe”.

A natureza do cuidado em saúde e a permanência junto ao paciente internado e sua família propiciam, além de conflitos, a oportunidade de construir ligações profundas. Importante destacar que a própria figura da criança convida a um enternecimento que colore as práticas de cuidado a ela dirigidos. As transgressões e concessões feitas em nome de um paciente servem para colocá-lo em um lugar especial, de distinção.

Esse campo, mais que afetivo, pode ser nomeado aqui como de afecções - ou seja, diz respeito ao que nos mobiliza e provoca afetação. Importa tensionar a ideia do cliente preferencial uma vez que acreditamos que a afeição deva circular entre e com os praticantes da saúde - equipe de trabalhadores em geral, em todos os níveis e ações - a fim de promover o vínculo de cuidado. O cliente preferencial 66. Tanabe RF. Corpos híbridos - a tecnologia incorporada na vida: explorando as relações de cuidado de crianças com condições crônicas complexas em terapia intensiva [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2020. parece reunir todas as imagens, sentimentos, vinculações que deveriam circular entre todos que habitam longamente enfermarias pediátricas, ou os que passam e se vão.

Este vínculo especial aqui convocado remete à ideia do que circula, dos presentes trocados, bens de cuidado que podem também estar dialogando com descuidos não intencionais. Cuidado e descuido caminham lado a lado e habitam as cenas de atenção à saúde 2020. Moreira MCN. Cuidado, descuido e afecção: uma perspectiva para a humanização em saúde. Ciênc Saúde Colet 2021; 26:2934.. O fato de compreendermos que as emoções são um campo que dialoga com expectativas sociais e aprendizados coletivos 1111. Rezende CB, Coelho MC. Antropologia das emoções. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2010. nos faz reconhecer que nas interações podem estar presentes amor, compaixão, nojo, raiva, repulsa e atração. As histórias trazidas e protagonizadas pelo chamado cliente preferencial, muitas vezes referido como o “filho da profissional X”, podem encobrir outras histórias, de pacientes não “adotados” por ninguém ou de mães vistas como problemáticas e pouco merecedoras de atenção.

A equipe de saúde muitas vezes se identifica com a criança e procura suprir suas necessidades, ainda que para isso se desloque do lugar estritamente regulamentado para a sua profissão.

Depois das 4 horas da tarde, que a enfermeira ia embora, é aquele ditado: quando o rato sai, o gato faz a festa! A gente comprava cachorro-quente e picolé para as crianças. Normalmente a gente respeitava (e não dava para quem) não estava com dieta livre, estava de dieta zero, com sonda, sei lá o quê. Mas aqueles coitadinhos? Ah, não tinha para ninguém! Rolava de tudo na enfermaria para as crianças nesse final de tarde. Ou sábado e domingo”.

A transgressão aqui tem um sentido de reparação aos “coitadinhos” que são privados das alegrias tipicamente associadas à infância, como determinados alimentos que não fazem parte da dieta hospitalar. Outras histórias, com teor semelhante ao desta, retratam o hospital “da noite” ou “do fim de semana” como o palco privilegiado para a flexibilização de regras. O ambiente e o momento em que essa flexibilização acontece remete por vezes a um contexto de clandestinidade. A desobediência ao ordenamento hierárquico não é frontal e explícita, mas opera de forma sorrateira, longe da vigilância e controle superiores. Simmel 1818. Simmel G. A sociologia do segredo e das sociedades secretas. Revista de Ciências Humanas 2009; 43:219-42. identifica que entre as circunstâncias que tornam segredo alguns fatos estão o desacordo com os contratos normativos vigentes no grupo de pertencimento e o medo de punição. E essa parece ser a lógica que dirige tais comportamentos aqui relatados.

A criança ocupa na sociedade atual um lugar de destaque que foi sendo construído ao longo do tempo 2121. Ariès P. História social da criança e da família. 2ª Ed. Rio de Janeiro: LTC; 2011.. Os bebês e crianças pequenas que convivem com o adoecimento crônico desde o nascimento representam a maioria dos pacientes internados no hospital onde se conduz a pesquisa. Tais sujeitos se constituem no cenário hospitalar a partir de interações com trabalhadores, familiares e até mesmo com as máquinas utilizadas em seu cuidado 2222. Tanabe RF, Moreira MCN. A interação entre humanos e não humanos nas relações de cuidado em uma unidade de terapia intensiva pediátrica. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00213519..

A criança doente vive um cotidiano regido por rotinas impostas por seu quadro de saúde e/ou pela situação de hospitalização, que, entretanto, não nos permite definir sua existência a partir do sofrimento. Sem desconsiderar as experiências dolorosas, podemos afirmar que elas encontram prazer e alegria nos elementos de sua realidade, aliás como qualquer pessoa. No contexto de hospitalização prolongada, os dispositivos tecnológicos agregados a seu corpo ou mesmo os insumos hospitalares - seringas, esparadrapos, sondas e ampolas plásticas - são integrados pelas crianças como recursos lúdicos e apropriados como material de entretenimento 66. Tanabe RF. Corpos híbridos - a tecnologia incorporada na vida: explorando as relações de cuidado de crianças com condições crônicas complexas em terapia intensiva [Tese de Doutorado]. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz; 2020.,2222. Tanabe RF, Moreira MCN. A interação entre humanos e não humanos nas relações de cuidado em uma unidade de terapia intensiva pediátrica. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00213519.. Além disso, sua realidade cotidiana faz com que se apropriem de vocabulários, procedimentos e aparatos médicos que compõem o universo hospitalar como instrumentos de construção subjetiva, incluindo-os, por exemplo, em suas brincadeiras. Elaboram novas normas para se ajustarem às restrições impostas por sua condição clínica ou ao meio em que se encontram inseridas, mecanismo adaptativo de viabilização de um repertório performativo em diálogo com a vida, o que Canguilhem 2323. Canguilhem G. O normal e o patológico. In: Canguilhem G, organizador. O conhecimento da vida. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária; 2009. p. 106-9. designa como “normatividade”. O que vemos como limitação, privação e falta é configurado por nosso olhar.

Ainda assim, o lugar social da criança doente é de vítima a quem se deve compaixão. Mesmo os profissionais mais experientes não estão imunes aos significados culturalmente compartilhados que atrelam a vida dos pequenos a tragédias personificadas. Nossas práticas profissionais podem afirmar as crianças neste lugar ou ajudá-las a construir novas possibilidades de existência e expressão, quando não qualificamos suas experiências diferentes como menos fecundas ou menos propiciadoras de desenvolvimento. Torna-se aqui importante a leitura de Goodley et al. 2424. Goodley D, Runswick-Cole K, Liddiard K. The dis-human child. Discourse (Lond) 2016; 37:770-84., que trazem reflexões acerca de como a convivência com a deficiência (e aqui incluímos o adoecimento grave e prolongado) pode e deve sacudir nossas preconcepções sobre infância, família, desenvolvimento e sexualidade.

Cabe considerar que os próprios trabalhadores, inconscientemente ou não, colocam-se na posição de vitimizados pelo processo desumanizador do cuidado. Assumir um comportamento transgressor, nesse sentido, é fazer um favor também a si mesmos na direção de um movimento para a saúde, entendida em sua perspectiva mais ampla. Prover e testemunhar momentos de alegria e satisfação para a criança e para o próprio cuidador - profissional ou familiar - representaria uma dupla recompensa. Sustentar a rebeldia contra o código imposto significa também evitar o que Le Breton 2525. Le Breton D. Desaparecer de si: uma tentação contemporânea. Petrópolis: Editora Vozes; 2018. designou como “desaparecimento de si”. Portanto, mesmo partindo de um lugar de comiseração do outro e de si, o comportamento transgressor pode alcançar o significado de resistência que exploramos no tópico anterior.

Mansano 1414. Mansano SRV. O trabalho imaterial afetivo na área da saúde. Perspectivas en Psicología: Revista de Psicología y Ciencias Afines 2014; 11:86-92. destaca que a experimentação dos afetos coloca em curso novas formas de resistência, visto que o trabalhador não se encontra totalmente sujeito a um circuito de produção e resultados tão naturalizado na contemporaneidade: “Em um tipo de atividade que exige a criação e aciona a potência afetiva do corpo para conectar-se a outros indivíduos e a situações complexas que exigem a resolução de problemas, o trabalhador tem a oportunidade de colocar-se como sujeito ativo na construção de sua história1414. Mansano SRV. O trabalho imaterial afetivo na área da saúde. Perspectivas en Psicología: Revista de Psicología y Ciencias Afines 2014; 11:86-92. (p. 90).

Transgressões e concessões como presentes

O presente dado por um agente de saúde a um paciente ou familiar pode ter o lugar de transgressão ou concessão. Em instituições onde circula hegemonicamente o discurso da psicanálise, oferecer um presente pode ficar no lugar de uma verdadeira transgressão. Na instituição que abriga nosso estudo, entretanto, a questão se apresenta de maneira diversa. Os presentes dados ou recebidos por profissionais, especialmente em datas comemorativas, são frequentes e naturalizados. Comparecem às narrativas, entretanto, aqueles que tiveram significados especiais, sendo relembrados mesmo após muitos anos.

Mauss 2626. Mauss M. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70; 1988. estuda a oferta de presentes como uma circulação de símbolos que carregam o espírito de quem os oferece, e é interpretado como algo que estrutura o vínculo social. O circuito dar/receber/retribuir nas relações de cuidado, como destacou Moreira 2727. Moreira MCN. Contra a desumanização da medicina: crítica sociológica das práticas médicas modernas. Ciênc Saúde Colet 2005; 10:780-1. em diálogo com Martins 2828. Martins PH. A sociologia de Marcel Mauss: dádiva, simbolismo e associação. Revista Crítica de Ciências Sociais 2005; (73):45-66., abrange bens materiais como exames e medicamentos, além de gestos e palavras.

Numerosas passagens das entrevistas em nosso acervo referem-se a esses presentes. Uma terapeuta ocupacional relembra o presente que recebeu de uma mãe em agradecimento por ter acompanhado sua filha em um procedimento doloroso. Sobre esta criança, prossegue:

Logo depois ela agravou demais e terminou falecendo. A mãe nos procurou e pediu que comprássemos a roupa para o enterro. Isso nunca tinha me acontecido. Foi uma situação muito peculiar, porque fomos procurar um presente, o mais bonito possível, e ela não veria. Mas aquilo tinha um valor para a família e para a gente”.

Presentes eternizam laços, também com os que já se foram.

Invenções podem ter o significado de presentes às crianças e adolescentes quando oportunizam momentos de alegria. Um dos entrevistados relembrou o gesto de um fisioterapeuta que, incomodado com a restrição imposta a algumas crianças pela dependência de oxigênio (que implicava a permanência no leito), criou um sistema de mangueiras mais longas para possibilitar que os pequenos se levantassem para brincar.

Ficava lá na parede, a mangueira, e os meninos saíam, como se fossem mergulhadores”.

Na realidade de crianças longamente internadas e que demandam uma logística complexa para poderem se ausentar do hospital, passeios organizados por membros da equipe multidisciplinar são concessões que se tornam memoráveis. Assumem o valor de presentes muito valiosos.

Eu me lembro que ela estava muito grave. A gente ia fazer um passeio no sítio e eu queria muito levar essa criança, que tinha 3 aninhos. Eu disse à médica: ‘Não vai ter outro tempo. Deixa ela ir. Vai médico junto, vai enfermeira’. E a gente levou!”.

Os encontros produzidos no decorrer da pesquisa colocaram em movimento um circuito virtuoso de dádivas e contradádivas. Ao mesmo tempo que se sentiram homenageados pelo convite e pelo clima reverente que se criou para a escuta de suas histórias, os trabalhadores retribuíram ofertando memórias caras, sentidas, emocionadas ou mesmo dolorosas. Além dos mimos e pequenos privilégios que relataram ter proporcionado às crianças, as histórias em si foram ofertadas como presentes. Não apenas à equipe de pesquisa que se dispunha a escutar, mas a uma coletividade que potencialmente terá acesso a esse acervo.

Paez & Moreira 2929. Paez AS, Moreira MCN. Dádivas e testemunhos: o compartilhamento de experiências e memórias de mães de crianças com condições complexas de saúde. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00046820. abordam a importância para as famílias do registro do tempo vivido no cuidado de uma criança complexa, mencionando a criação de verdadeiras reservas onde estas memórias seriam preservadas coletivamente. A memória seria o bem que circula também no caso de nossa pesquisa. No artigo mencionado, abordou-se a necessidade de as mães de crianças complexas retribuírem ao mundo algo que constroem a partir da vivência da dádiva no cuidado de seus filhos. Pudemos empiricamente observar que, também para os cuidadores profissionais, parece haver uma sensação de ganhar algo intangível, porém muito significativo, no cotidiano compartilhado com essas crianças. Foram frequentes as falas que apontam para uma ressignificação da alegria, do trabalho e da própria vida. Reiteramos o entendimento que vidas cronologicamente muito breves podem ter um impacto duradouro sobre toda a trajetória de vida de uma comunidade.

Trabalhando com as crianças, eu só via vida, mesmo nos momentos em que morriam. Porque eu via que cada minuto valia muito a pena. Fazia muito sentido. E não pensem que fui eu que dei nada para essas crianças, porque na verdade fui eu que recebi. Se eu estou falando delas agora é porque elas me deixaram esse legado, elas deixaram uma parte importante comigo (...), isso é a ciranda da vida”.

Conforme salienta Mansano 1414. Mansano SRV. O trabalho imaterial afetivo na área da saúde. Perspectivas en Psicología: Revista de Psicología y Ciencias Afines 2014; 11:86-92., os recursos materiais, tecnológicos e informacionais utilizados na área da saúde deixam entrever uma lacuna que só pode ser compreendida quando nos voltamos para as dimensões afetivas que são atualizadas pelos profissionais nos atendimentos prestados a cada paciente: “Temos aqui um tipo de atividade que, para além da técnica, convoca a potência afetiva do corpo de quem trabalha14 (p. 87). Esse território de trocas afetivas nos provoca a fazer perguntas, entendendo que o campo dos cuidados em saúde remete a tensões, disputas e afecções. Reconhecer esse campo significa compreendê-lo por suas assimetrias de poder e hierarquias, e ao mesmo tempo como um ambiente que precisa ser interpretado.

Considerações finais

O que torna uma história digna de ser lembrada e recontada, por vezes muitos anos após sua ocorrência? No contato com os trabalhadores do hospital e suas narrativas, pudemos estabelecer alguns possíveis motivos. Em geral, os fatos se tornaram marcantes por terem, de alguma forma, rompido com o aspecto rotineiro do cuidado. A memória se mostrou também modulada pela emoção, delimitando os acontecimentos que se registraram de forma duradoura e, muitas vezes, coletiva: uma conversa significativa sobre um tema sensível como a morte, uma relação que perdura para além da internação e, muitas vezes, os eventos que aqui estamos chamando de transgressões e concessões.

Protocolos e ações naturalizados pelos profissionais de saúde frequentemente denunciam uma lógica de assujeitamento e de silenciamento das emoções. Nesse sentido, é importante supor que as instituições engendram construções subjetivas que trazem desdobramentos práticos na forma de re(pensar) o cuidado. Quando as regras são transpostas, para além de um julgamento moral que aqui não nos cabe fazer, importa reconhecer que novas possibilidades se instauram nas relações de cuidado. De alguma forma, o desafio às regras institucionais, explícitas ou tácitas, constitui uma manifestação ético-política de contraponto à despersonalização e desumanização. Torna-se ação que pouco a pouco vai se repetindo, sendo acomodada e produzindo fissuras na dureza e impessoalidade das regras. Por meio deste movimento em direção à vida, que expressa incômodos e descontentamentos de quem cuida e de quem é cuidado, há uma distensão dos limites estabelecidos e um convite implícito a uma reflexão crítica sobre o foco central que orienta e organiza a prática institucional.

A memória da instituição se constrói coletivamente tanto pelos eventos que ganham publicidade e notoriedade nas mídias científicas e sociais, quanto por esta dimensão intangível tecida por experiências e afetos da vida ordinária. Não menos importante que os primeiros, percebe-se que o valor e a imagem do hospital se constrói continuamente por meio de seu capital humano (isto é, o que compõe esta dimensão intangível), na qualidade dos encontros que acontecem dia a dia. Sendo o cuidado o fio condutor das interações no hospital, ele assumiu um papel norteador na evocação das experiências que marcaram e transformaram as biografias dos participantes. As histórias representam um acervo a partir do qual se tem acesso ao universo simbólico desta comunidade de afeto, bem como aos valores e emoções que acompanham cada interação, modelando uma teia dinâmica de significados sobre vida, morte, doença, hospitalização, infância, cuidado.

As (re)construções da memória podem fornecer subsídios para apoiar estratégias e iniciativas bem-sucedidas na melhoria e qualificação da ambiência de trabalho e de cuidado. A materialização das narrativas, nas suas distintas modalidades estéticas e plataformas de divulgação, coloca em conexão diferentes audiências em um movimento de expansão de tempos e espaços. Ocupa assim um importante papel na política de preservação da cultura de um grupo e de demarcação de seu percurso. Da mesma forma, o estudo narrativo permite pensar na singularidade da experiência do adoecimento e do cuidado em saúde, tanto para quem cuida como para quem é cuidado. Apostar em uma lógica contra-hegemônica diante da hospitalização de crianças e adolescentes cronicamente adoecidos significa abraçar o potencial criativo que subverte a exclusão da subjetividade e da vivência particular de cada paciente, familiar e profissional que atravessa e é atravessado por nós.

Agradecimentos

Agradecemos ao Programa de Incentivo à Pesquisa - PIP III/Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira, Fundação Oswaldo Cruz (IFF/Fiocruz), pelo financiamento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2022
  • Revisado
    29 Nov 2022
  • Aceito
    23 Jan 2023
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