Acessibilidade / Reportar erro

O artesanato do cuidar: encontros, narrativas e memórias no campo da Saúde Coletiva

The craft of caregiving: encounters, narratives, and memories in the field of Public Health

La artesanía del cuidado: encuentros, narrativas y memorias en el campo de la Salud Colectiva

NARRATIVAS EM SAÚDE COLETIVA: MEMÓRIA, MÉTODO E DISCURSO.Ceccon, RF; Garcia-Jr, CAS; Dallmann, JMA; Portes, VM. .Rio de Janeiro: :. Editora Fiocruz, ;2022. .121. p.(Coleção Temas em Saúde). . ISBN:. 978-65-5708-124-2. .

Em O Normal e o Patológico, Georges Canguilhem 11. Canguilhem G. O normal e o patológico. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2011. nos mostra de forma instigante como repensar as relações que estabelecemos entre saúde e doença e os caminhos que tomamos para discutir o nosso entendimento sobre essa classificação que dá nome ao seu livro. Logo no início de seu texto, o autor deixa claro que um dos eixos para análise que está propondo é possibilitar a um indivíduo avaliar de que forma ele se coloca diante da vida, a partir de uma situação de adoecimento que altera seu sistema de normas e ações no mundo.

Canguilhem nos aponta no decorrer de seu trabalho que essa avaliação é fundamental, pois o indivíduo é quem pode narrar uma condição de sofrimento e os efeitos aos quais ela o submete. Sua reflexão mostra que uma doença em seu mapeamento fisiológico não basta para sinalizar o que acontece com um sujeito acometido por determinada enfermidade e todas as leituras e interpretações que cabem nessa situação. O corpo entendido somente como um organismo biológico não é condição suficiente para dizermos o que acontece na relação desse corpo adoecido com o seu meio e os sistemas de troca que poderão ser estabelecidos. Será necessário, então, abrir um campo de fala e escuta para que algo se amplie em nossas dinâmicas de cuidado e na própria relação saúde e doença.

É nesse sentido que o livro Narrativas em Saúde Coletiva: Memória, Método e Discurso22. Ceccon RF, Garcia-Jr CAS, Dallmann JMA, Portes VDM. Narrativas em Saúde Coletiva: memória, método e discurso. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (Coleção Temas em Saúde). estabelece uma reflexão fundamental sobre o papel das narrativas na condução dos trabalhos e experiências no campo da Saúde Coletiva, seja no próprio atendimento ou na pesquisa acadêmica. Além de uma leitura extremamente agradável e de um texto bem conduzido, o livro nos permite fazer muitas interseções com outros campos do conhecimento. Partindo de um panorama da formação do campo da Saúde Coletiva no Brasil e sua constituição política e histórica, autores e autora nos permitem entender o quanto essa luta se configurou em uma mobilização por cidadania, democracia e reinvenção das relações existentes entre saúde e doença, buscando seus determinantes sociais no campo das condições de vida e do trabalho 22. Ceccon RF, Garcia-Jr CAS, Dallmann JMA, Portes VDM. Narrativas em Saúde Coletiva: memória, método e discurso. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (Coleção Temas em Saúde)..

O entendimento da construção do campo da Saúde Coletiva como algo que envolveu muitos personagens e áreas no cenário brasileiro é extremamente importante. Primeiro, permite-nos pensar que esse campo é sempre algo a ser acionado a partir de laços comunitários, tanto no que diz respeito às suas práticas cotidianas quanto no funcionamento de seu sistema administrativo, já que o Sistema Único de Saúde (SUS) opera parcerias institucionais que se referendam mutuamente na rede dos atendimentos em saúde e em suas bordas com outras áreas públicas de trabalho e compreensão da vida.

Um segundo ponto é que o livro, ao evocar essa construção da Saúde Coletiva brasileira, evidencia também que a manutenção e o desdobramento desse campo devem ser considerados como uma herança cidadã, que precisa ser transmitida como uma forma de manter muito clara a ideia de que o que nós herdamos não são apenas serviços institucionais de saúde, mas sim memórias que devem nos alimentar na luta por uma Saúde Coletiva sempre democrática. É nesse sentido que quando autores e autora falam da reforma psiquiátrica no Brasil afirmam que “são exemplos de memória de oposição a processos hegemônicos de cuidar das pessoas em sofrimento mental a partir da premissa do isolamento social e da violência. Nos últimos quarenta anos, esses movimentos configuram marcos importantes na construção de contrapontos à hegemonia do estilo de pensamento da época. Trata-se de memórias e vivências interdisciplinares e coletivas de ações afirmativas à vida22. Ceccon RF, Garcia-Jr CAS, Dallmann JMA, Portes VDM. Narrativas em Saúde Coletiva: memória, método e discurso. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (Coleção Temas em Saúde). (p. 57).

É assim que, em seus trabalhos de história oral sobre a Segunda Guerra Mundial e suas memórias, Alessandro Portelli 33. Portelli A. A bomba de Turim: a formação da memória no pós-guerra. História Oral 2006; 9:69-89. (p. 86) nos diz que acionar a memória de períodos difíceis e traumáticos é buscá-la como forma de resistência, pois “o perigo é que a libertação do fascismo seja percebida como uma conclusão mais do que como um ponto de partida, como o fechar de um livro mais do que como o início de uma nova memória da democracia”.

Essa complexidade relatada acima não está posta apenas em uma historiografia deste campo, e os autores e autora deste trabalho sabem disso. Por isso, trazer para o debate o tema das narrativas e memórias é reforçar que esse espaço está entrelaçado por uma série de circunstâncias vividas por todos aqueles que trabalham na saúde e pelos usuários que lá buscam atendimento. Fica muito claro no livro que quando estamos no ato de cuidar do outro é necessário acionar campos de fala e escuta, como forma de ampliar nosso entendimento das mais diversas situações que se apresentam diante de nós. Além disso, produzir redes discursivas permite que saibamos mais daqueles que nos procuram e de suas conexões de vida, fugindo, assim, de uma espécie de escuta do sujeito a partir somente dos dados biomédicos de seu adoecimento. O que deve nos interessar sempre é de qual lugar o outro se enuncia para falar de sua dor, suas necessidades, enfim, seu sofrimento.

É nesse sentido que Safatle 44. Safatle V. O que é uma normatividade vital? Saúde e doença a partir de Georges Canguilhem. Scientiae Studia 2011; 9:11-27. (p. 12) nos pergunta: “Sofre-se da mesma maneira, dá-se o mesmo sentido ao sofrimento independentemente do contexto sócio-histórico? Se nossa resposta for negativa, então é possível que a ‘significação do sofrimento psíquico’ seja uma questão eminentemente política, já que diz respeito à maneira com que os corpos sofrerão interferências, os comportamentos serão normatizados, os processos de socialização e de reprodução de modos de vida serão defendidos”.

A partir dessa significação que Safatle nos fala apontamos para o papel primordial das narrativas, já que são elas que nos permitem estar atentos ao fato de que uma dor, um sintoma, um incômodo, uma condição rara devem ser entendidos dentro de um circuito polissêmico que extrapola a comunicação de determinado diagnóstico.

Outro aspecto fundamental nesse trabalho é que as narrativas devolvem o lugar da subjetividade, da memória, dos jogos entre lembrar e esquecer na produção do conhecimento. De que lugar o sujeito conta a sua história? O que acrescenta e retira? Que relações estabelece entre os diversos aspectos do que narra? Portelli 33. Portelli A. A bomba de Turim: a formação da memória no pós-guerra. História Oral 2006; 9:69-89. mostra que existe sempre um tensionamento entre o lembrar e o esquecer no campo narrativo. Nos fala que “lembrar e esquecer não mais se dividem com clareza em textos alternativos; melhor dizendo, estão tão intimamente envolvidos nos mesmos textos que não podem mais ser separados33. Portelli A. A bomba de Turim: a formação da memória no pós-guerra. História Oral 2006; 9:69-89. (p. 72). Exemplo clássico desse tensionamento na narrativa está na literatura de Primo Levi 55. Levi P. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco Editora; 2013. e o impactante É isto um homem?, publicado pela primeira vez em 1948. Acrescentar Levi nesta análise reforça o quanto o percurso teórico feito no livro de Ceccon et al. 22. Ceccon RF, Garcia-Jr CAS, Dallmann JMA, Portes VDM. Narrativas em Saúde Coletiva: memória, método e discurso. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (Coleção Temas em Saúde). é complexo. A conversa entre Walter Benjamin, Paul Ricoeur, Castellanos e Jeanne-Marie Gagnebin demonstra que o tema das narrativas, das memórias e dos esquecimentos nos lança em uma reflexão sempre muito sofisticada teoricamente.

O livro ainda revela um aspecto fundamental para os trabalhos que envolvem a construção de narrativas: sua dimensão estética. Narrativas podem estar em um contexto oral, em uma produção escrita e até mesmo em um trabalho com imagens, ou seja, elas nos permitem invenções que se coadunem com aquilo que queremos produzir. Portanto, qual é o nosso lugar nessa produção e de que forma operaremos com aquilo que o outro nos conta? Se há a dimensão estética, ela nos permitirá tecer afetos e caminhos possíveis. Sendo assim, “o que podem as narrativas em saúde coletiva?22. Ceccon RF, Garcia-Jr CAS, Dallmann JMA, Portes VDM. Narrativas em Saúde Coletiva: memória, método e discurso. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (Coleção Temas em Saúde). (p. 107). Entendo como um desafio de trabalho e uma aposta que possa reafirmar o campo da saúde como espaço propício para muitas trilhas metodológicas, favorecendo também reunir informações e elementos oriundos das mais diversas áreas do conhecimento e do cotidiano, reinventando e ampliando, assim, nosso fazer na Saúde Coletiva.

__________

  • 1
    Canguilhem G. O normal e o patológico. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2011.
  • 2
    Ceccon RF, Garcia-Jr CAS, Dallmann JMA, Portes VDM. Narrativas em Saúde Coletiva: memória, método e discurso. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2022. (Coleção Temas em Saúde).
  • 3
    Portelli A. A bomba de Turim: a formação da memória no pós-guerra. História Oral 2006; 9:69-89.
  • 4
    Safatle V. O que é uma normatividade vital? Saúde e doença a partir de Georges Canguilhem. Scientiae Studia 2011; 9:11-27.
  • 5
    Levi P. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco Editora; 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Fev 2023
  • Aceito
    24 Fev 2023
Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz Rua Leopoldo Bulhões, 1480 , 21041-210 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.:+55 21 2598-2511, Fax: +55 21 2598-2737 / +55 21 2598-2514 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernos@ensp.fiocruz.br