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Condições de saúde autorrelatadas por solicitantes de refúgio no Rio de Janeiro, Brasil, de 2010 a 2017

Asylum seekers’ self-reported health conditions in Rio de Janeiro, Brazil, from 2010 to 2017

Condiciones de salud autoinformadas por solicitantes de refugio en Río de Janeiro, Brasil, del 2010 al 2017

Resumos

No Brasil, entre 2011 e 2022, 348.067 pessoas solicitaram o reconhecimento da condição de refugiado no país. Os motivos que resultaram na migração, os riscos durante o trajeto e a transição cultural ao chegar podem estar associados a diferentes problemas de saúde. O objetivo deste estudo foi analisar as condições de saúde autorrelatadas por solicitantes de refúgio no Município do Rio de Janeiro no período de 2010 a 2017. Trata-se de um estudo transversal de dados secundários. Foram coletadas informações preenchidas nos formulários de solicitação de refúgio do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) de 2010 a 2017 e da entrevista social da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro (Cáritas/RJ). Calcularam-se as taxas de prevalência de condições de saúde e respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%) e a razão de chances (RC) e IC95% em um modelo de regressão logística simples segundo variáveis sociodemográficas e de migração. O estudo incluiu 1.509 indivíduos. Na chegada ao Brasil, 620 (41%) relataram ter uma ou mais condições de saúde. As chances de apresentar problemas de saúde foram maiores em pessoas oriundas do Congo (RC = 18,7) e República Democrática do Congo (RC = 9,5), nos indocumentados (RC = 4,4), nas mulheres (RC = 2,1), em pessoas com Ensino Fundamental (RC = 1,9), com idade ≥ 45 anos (RC = 1,8) e entre os que vivem/viveram maritalmente (RC = 1,8 e 2,5, respectivamente). Entre as pessoas que relataram alguma condição de saúde, mais da metade informaram sentir dores (52%). É possível que as dores físicas tenham relação com estresse pós-traumático e outros sofrimentos em saúde mental, que podem se manifestar por meio de sintomas de dores somáticas.

Palavras-chave:
Refugiados; Perfil de Saúde; Migração Internacional; Saúde Global


From 2011 to 2022, 348,067 people applied for a refugee status in Brazil. The reasons that resulted in their migration, the risks during their journey, and the cultural transition upon arrival may be associated with different health problems. This study aimed to analyze the self-reported health conditions of asylum seekers in the municipality of Rio de Janeiro from 2010 to 2017. This is a cross-sectional study with secondary data. Data were collected from asylum application forms at the Brazilian National Committee for Refugees (Conare) from 2010 to 2017 and from social interviews in the Archdiocesan Caritas of Rio de Janeiro (Cáritas/RJ). The prevalence rates of health conditions, their respective 95% confidence intervals (95%CI) and odds ratio (OR) were calculated in a simple logistic regression model according to sociodemographic and migration variables. This study included 1,509 individuals. Upon arrival in Brazil, 620 (41%) reported having one or more health conditions. The chances of showing health problems were higher in people from the Congo (OR = 18.7) and the Democratic Republic of the Congo (OR = 9.5), in undocumented individuals (OR = 4.4), women (OR = 2.1), in people with elementary education (OR = 1.9), aged ≥ 45 years (OR = 1.8), and among those who live/lived maritally (OR = 1.8 and 2.5, respectively). Of those who reported a health condition, more than half claimed experiencing pain (52%). Physical pain may be related to post-traumatic stress and other mental health distress, manifesting itself by somatic pain symptoms.

Keywords:
Refugees; Health Profile; International Migration; Global Health


En Brasil, entre el 2011 y el 2022, 348.067 personas solicitaron el reconocimiento de la condición de refugiado en el país. Los motivos que dieron lugar a la migración, los riesgos durante el trayecto y la transición cultural al llegar pueden estar asociados a diferentes problemas de salud. Este estudio tuvo como objetivo analizar las condiciones de salud autoinformadas de los solicitantes de refugio en el municipio de Río de Janeiro en el período del 2010 al 2017. Se trata de un estudio transversal de datos secundarios. Los datos se recopilaron de los formularios de solicitud de asilo del Comité Nacional para Refugiados de Brasil (Conare) del 2010 al 2017 y de la entrevista social de Caritas Arquidiocesana de Río de Janeiro (Cáritas/RJ). Se calcularon las tasas de prevalencia de las condiciones de salud y sus respectivos intervalos de 95% de confianza (IC95%) y la razón de posibilidades (RP) y el IC95% en un modelo de regresión logística simple según variables sociodemográficas y de migración. El estudio incluyó a 1.509 sujetos. A su llegada a Brasil, 620 (41%) informaron tener una o más condiciones de salud. Las posibilidades de presentar problemas de salud fueron mayores en personas procedentes de Congo (RP = 18,7) y República Democrática del Congo (RP = 9,5), en personas indocumentadas (RP = 4,4), mujeres (RP = 2,1), en personas con educación primaria (RP = 1,9), en ≥ 45 años (RP = 1,8), y entre los que viven/han vivido en una relación estable (RP = 1,8 y 2,5, respectivamente). Entre las personas que reportaron alguna condición de salud, más de la mitad relató sentir dolores (52%). Los dolores físicos pueden estar relacionados con el estrés postraumático y otros sufrimientos en salud mental que pueden presentarse mediante síntomas de dolores somáticos.

Palabras-clave:
Refugiados; Perfil de Salud; Migración Internacional; Salud Global


Introdução

A Convenção das Nações Unidas sobre Refugiados de 1951 define refugiado como alguém que “temendo ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país11. United Nations. Final act of the United Nations Conference of plenipotentiaries on the status of refugees and stateless persons. https://treaties.un.org/doc/publication/UNTS/Volume%20189/volume-189-I-2545-English.pdf (acessado em 21/Aug/2023).
https://treaties.un.org/doc/publication/...
. O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) informou que em 2022 havia aproximadamente 108,8 milhões de migrantes forçados no mundo 22. United Nations High Commissioner for Refugees. Global trends forced displacement in 2022. https://www.unhcr.org/global-trends-report-2022 (acessado em 21/Aug/2023).
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.

Entre 2011 e 2022, 348.067 pessoas solicitaram o reconhecimento da condição de refugiado no Brasil, das quais 50.355 (14,5%) requisitaram em 2022 33. Junger G, Cavalcanti L, Oliveira T, Silva BG. Refúgio em números. Brasília: Observatório das Migrações Internacionais/Conselho Nacional de Imigração, Ministério da Justiça e Segurança Pública; 2023.. O local de nascimento dos solicitantes de refúgio no Brasil mudou ao longo da última década, passando de países africanos, majoritariamente, devido a guerras civis e conflitos internos, para países sul-americanos, em razão de desastres naturais, epidemias e violação de direitos humanos 11. United Nations. Final act of the United Nations Conference of plenipotentiaries on the status of refugees and stateless persons. https://treaties.un.org/doc/publication/UNTS/Volume%20189/volume-189-I-2545-English.pdf (acessado em 21/Aug/2023).
https://treaties.un.org/doc/publication/...
,22. United Nations High Commissioner for Refugees. Global trends forced displacement in 2022. https://www.unhcr.org/global-trends-report-2022 (acessado em 21/Aug/2023).
https://www.unhcr.org/global-trends-repo...
. A migração forçada em massa de venezuelanos para o Brasil ocorreu mais recentemente, a partir de 2016, causada pela grave crise humanitária no país 33. Junger G, Cavalcanti L, Oliveira T, Silva BG. Refúgio em números. Brasília: Observatório das Migrações Internacionais/Conselho Nacional de Imigração, Ministério da Justiça e Segurança Pública; 2023.. Das 50.355 solicitações de refúgio realizadas em 2022 no Brasil, 33.753 (67%) foram provenientes de venezuelanos 33. Junger G, Cavalcanti L, Oliveira T, Silva BG. Refúgio em números. Brasília: Observatório das Migrações Internacionais/Conselho Nacional de Imigração, Ministério da Justiça e Segurança Pública; 2023..

A migração forçada pode impactar a saúde de solicitantes de refúgio antes, durante ou depois do deslocamento migratório 44. Schmid PC. Saúde mental e restrição de liberdade: relato de experiência como médica psiquiatra em centro de detenção de refugiados. Saúde Debate 2019; 43:626-35.,55. Guerra JVV, Alves VH, Rachedi L, Pereira AV, Branco MBLR, Santos MV. Forced international migration for refugee food: a scoping review. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:4499-508.,66. Horta ALM, Cruz MG, Carvalho G. Famílias refugiadas africanas: qualidade de vida, expectativas e necessidades em relação à saúde. Saúde Soc 2019; 28:113-23.,77. Arenas-Suarez NE, Cuervo LI, Avila EF, Duitama-Leal A, Pineda-Peña AC. The impact of immigration on tuberculosis and HIV burden between Colombia and Venezuela and across frontier regions. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00078820.,88. Proença R, Mattos Souza F, Lisboa Bastos M, Caetano R, Braga JU, Faerstein E. Active and latent tuberculosis in refugees and asylum seekers: a systematic review and meta-analysis. BMC Public Health 2020; 20:838.. Entre outras, são descritas lesões físicas, dores, diarreia, infecções respiratórias - incluindo tuberculose -, depressão e ansiedade, estresse pós-traumático, doenças crônicas não transmissíveis, fome e desnutrição 44. Schmid PC. Saúde mental e restrição de liberdade: relato de experiência como médica psiquiatra em centro de detenção de refugiados. Saúde Debate 2019; 43:626-35.,55. Guerra JVV, Alves VH, Rachedi L, Pereira AV, Branco MBLR, Santos MV. Forced international migration for refugee food: a scoping review. Ciênc Saúde Colet 2019; 24:4499-508.,66. Horta ALM, Cruz MG, Carvalho G. Famílias refugiadas africanas: qualidade de vida, expectativas e necessidades em relação à saúde. Saúde Soc 2019; 28:113-23.,77. Arenas-Suarez NE, Cuervo LI, Avila EF, Duitama-Leal A, Pineda-Peña AC. The impact of immigration on tuberculosis and HIV burden between Colombia and Venezuela and across frontier regions. Cad Saúde Pública 2021; 37:e00078820.,88. Proença R, Mattos Souza F, Lisboa Bastos M, Caetano R, Braga JU, Faerstein E. Active and latent tuberculosis in refugees and asylum seekers: a systematic review and meta-analysis. BMC Public Health 2020; 20:838.. Ainda que solicitantes de refúgio e refugiados estejam sujeitos aos mesmos determinantes sociais em saúde que a população nacional, há singularidades nesses casos, como violências e xenofobia sofridas durante e depois do processo migratório e dificuldade de acesso aos serviços de saúde no país de destino 88. Proença R, Mattos Souza F, Lisboa Bastos M, Caetano R, Braga JU, Faerstein E. Active and latent tuberculosis in refugees and asylum seekers: a systematic review and meta-analysis. BMC Public Health 2020; 20:838.,99. Cavalcante JR, Proença R, Cano I, Trajman A, Faerstein E. Perfil sociodemográfico e de saúde de solicitantes de refúgio no Rio de Janeiro, 2016-2017. Rev Saúde Pública 2022; 56:31..

Poucas pesquisas brasileiras descreveram o perfil de saúde de solicitantes de refúgio ou refugiados 99. Cavalcante JR, Proença R, Cano I, Trajman A, Faerstein E. Perfil sociodemográfico e de saúde de solicitantes de refúgio no Rio de Janeiro, 2016-2017. Rev Saúde Pública 2022; 56:31.,1010. Lalane JB. Migração e saúde: perfil de saúde de haitianos no Brasil 2010-2018 [Tese de Doutorado]. São Paulo: Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo; 2021.. O objetivo deste estudo foi analisar as condições de saúde autorrelatadas por solicitantes de refúgio no Município do Rio de Janeiro no período de 2010 a 2017.

Métodos

Este é um estudo transversal de dados secundários feito com solicitantes de refúgio que informaram sobre suas condições de saúde em pelo menos uma das fontes de dados. As informações foram extraídas do formulário de solicitação de refúgio do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) e da entrevista social da Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro (Cáritas/RJ) entre 2010 e 2017. O formulário era disponibilizado para os solicitantes de refúgio em português, espanhol, inglês ou francês e, quando necessário, era fornecida a ajuda de um intérprete. Após 2017, os questionários sofreram modificações substanciais, e as perguntas sobre saúde foram retiradas do formulário do Conare.

Foram realizadas três etapas de pré-testes da máscara de inserção de dados criada no software EpiData, versão 4.2.0.0 (http://www.epidata.dk/), para os formulários do Conare. Durante o período de coleta (abril de 2018 a dezembro de 2019), semanalmente, os formulários coletados pelos digitadores eram verificados e corrigidos. Foram encontradas 254 divergências entre todos os formulários, considerando que cada um contém em média 148 variáveis, os erros de digitação representaram 0,6%. Nenhum formulário deixou de ser incluído no estudo por má conservação da ficha.

O número de identificação do solicitante ou núcleo familiar do formulário e a data de nascimento foram utilizados como critérios de agrupamento para vincular os dados nas duas fontes. Nos casos de divergência de datas, o formulário foi excluído (possível preenchimento por diferentes familiares).

As prevalências de condições de saúde e respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%) foram calculados 1111. Organização Pan-Americana da Saúde. Módulos de princípios de epidemiologia para o controle de enfermidades. Módulo 3: medida das condições de saúde e doença na população. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde/Ministério da Saúde; 2010.. Exploramos a associação das variáveis sociodemográficas e de migração com o desfecho (presença de condições de saúde), via razão de chances (RC) e IC95%, em um modelo de regressão logística simples. Essas variáveis incluíram país de nascimento, sexo, faixa etária, escolaridade, estado civil, meios de transporte na migração, status de documentação e status de refúgio.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (parecer nº 2.437.258, de 14 de dezembro de 2017).

Resultados

Entre os 2.287 solicitantes de refúgio atendidos na Cáritas/RJ entre 2010 e 2017, foram incluídos 1.509 indivíduos, 719 foram excluídos por não preencherem uma das fontes de dados, 22 por não atenderem aos critérios de agrupamento e 37 por não haver, em nenhuma das fontes, informação sobre condições de saúde. A maior parte era do sexo masculino (976; 64,7%), solteiro (974; 64,5%), tinha entre 25 e 44 anos (1.072; 71%) e chegou ao Brasil por meio de transporte aéreo (1.234; 81,8%) (Tabela 1).

Tabela 1
Prevalências e razão de chances (RC) de condições de saúde autorrelatadas e respectivos intervalos de 95% de confiança (IC95%) segundo características sociodemográficas de solicitantes de refúgio atendidos na Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro (Cáritas/RJ), 2010 a 2017.

Relataram ter uma ou mais condições de saúde 620 (41%) indivíduos; os demais 889 não mencionaram nenhuma condição de saúde. As chances de relatar problemas de saúde foram maiores entre oriundos do Congo (RC = 18,7) e República Democrática do Congo (RC = 9,5), indocumentados (RC = 4,4), mulheres (RC = 2,1), pessoas com Ensino Fundamental (RC = 1,9), com idade ≥ 45 anos (RC = 1,8) e entre os que vivem/viveram maritalmente (RC = 1,8 e 2,5, respectivamente) (Tabela 1). A maior parte de solicitações de refúgio (905; 60% da amostra) se deu nos anos 2014, 2015 e 2016 (Figura 1).

Figura 1
Distribuição dos indivíduos segundo ano de preenchimento do formulário dos solicitantes de refúgio atendidos na Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro (Cáritas/RJ), 2010 a 2017 (n = 1.509).

Foram autorrelatadas 877 condições de saúde (Tabela 2); mais da metade informaram sentir dores (320; 51,6%), dentre os quais 6 (2%) relataram que a dor era resultado de tortura ou violência física sofridas.

Tabela 2
Classificação das condições de saúde autorrelatadas por solicitantes de refúgio atendidos na Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro (Cáritas/RJ), 2010 a 2017 (n = 620).

Das 51 gestantes (18% das mulheres), apenas uma estava realizando o acompanhamento pré-natal. Vinte e nove (4,7%) solicitantes de refúgio informaram que suas condições de saúde eram consequências de violências que sofreram, sendo que 6 eram pessoas vivendo com HIV/aids e duas eram gestantes; outras 7 atribuíram seus problemas de saúde às condições de fuga do país de origem.

Oito (1,3%) pessoas avaliaram que necessitam de tratamento de saúde e 9 (1,4%) informaram já estarem em tratamento no Brasil. Duas mulheres (0,7% entre as mulheres) afirmaram que precisam de tratamento ginecológico como consequência de violência sexual.

Discussão

Neste estudo, encontramos alta prevalência (41%) de pelo menos uma condição de saúde autorrelatada entre os solicitantes de refúgio que procuraram a Cáritas/RJ. A prevalência foi maior nos grupos mais vulneráveis: mulheres, pessoas mais velhas, com menor grau de instrução, indocumentadas e oriundas de países onde há mais conflitos.

É difícil comparar essas prevalências com as da população brasileira em geral. No Brasil, os estudos que abordam morbidades autorrelatadas apresentam prevalências heterogêneas e foram realizados em subpopulações específicas, sujeitos, portanto, a diferentes vieses 1212. Felicíssimo MF, Friche AAL, Xavier CC, Proietti FA, Neves JAB, Caiaffa WT. Posição socioeconômica e deficiência: "Estudo Saúde em Belo Horizonte, Brasil". Ciênc Saúde Colet 2017; 22:3547-56.,1313. Baptistini MA, Borges LH, Baptistini RA. Aspectos de vida, trabalho e saúde de trabalhadores do setor de rochas ornamentais. Ciênc Saúde Colet 2013; 18:2105-17.,1414. Pereira IVS, Rocha MJL, Silva VM, Caldeira AP. Morbidade autorreferida por trabalhadores das equipes de saúde da família. Ciênc Saúde Colet 2014; 19:461-8.,1515. Gomes KRO, Tanaka ACd'A. Morbidade referida e uso dos serviços de saúde por mulheres trabalhadoras, município de São Paulo. Rev Saúde Pública 2003; 37:75-82.. No Brasil, pesquisas sobre autopercepção de saúde, como as da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), sugerem que, de forma geral, mulheres e idosos têm autopercepção de saúde melhor que homens e jovens 1616. Gomes MMF, Paixão LA, Faustino AM, Cruz RC, Moura LB. Marcadores da autopercepção positiva de saúde de pessoas idosas no Brasil. Acta Paul Enferm 2021; 34:eAPE02851.. Solicitantes de refúgio e refugiados tendem a perceber suas condições de saúde melhor que a população nacional, pois o processo de migração está intrinsecamente ligado ao processo saúde e doença e à desassistência vivenciada no período pós-migração 1717. Ventura DFL, Yujra VQ. Saúde de migrantes e refugiados. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2019..

Os relatos sobre condições de saúde também são heterogêneos, pois geralmente os solicitantes de refúgio e refugiados têm necessidades de saúde específicas que, por vezes, podem refletir as doenças prevalentes nos países de origem 1717. Ventura DFL, Yujra VQ. Saúde de migrantes e refugiados. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2019.. Os países cujas populações nacionais são mais abertas para receber solicitantes de refúgio e refugiados e que têm migrações ordenadas e seguras são Itália, Argentina, Holanda e Brasil, respectivamente, contudo, os países que mais recebem migrantes forçados no mundo hoje são Turquia, Irã, Colômbia e Alemanha 1818. Mantovani F. De 28 países, Brasil é o 3º mais favorável à recepção de refugiados, diz pesquisa. Folha de S. Paulo 2021; 16 jun. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021/06/de-28-paises-brasil-e-o-3o-mais-favoravel-a-recepcao-de-refugiados-diz-pesquisa.shtml.
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2021...
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Chamam a atenção a elevada proporção de gestantes e a insuficiente utilização dos serviços de saúde. Não sabemos se as gestantes já estavam cientes da gravidez ao migrarem ou se a gestação contribuiu para a decisão de migrar. É também digna de nota a frequência da dor como sintoma. Tem sido debatido o significado desse sintoma em pessoas vivendo em situação de refúgio 1919. Altun A, Brown H, Sturgiss L, Russell G. Evaluating chronic pain interventions in recent refugees and immigrant populations: a systematic review. Patient Educ Couns 2022; 105:1152-69.. A dor relatada pode ser física ou mental e pode estar associada a estresse pós-traumático ou depressão 2020. Williams ACC, Amris K. Pain from torture. Pain 2007; 133:5-8.,2121. Dantas SD, Santana CLA, Zaia M, organizadores. Guia em saúde mental e atenção psicossocial para população migrante e refugiada no Brasil. Brasília: Organização Internacional para as Migrações; 2022..

Sofrimentos em saúde mental têm sido relatados em diversos estudos 2222. Ben Farhat J, Blanchet K, Juul Bjertrup P, Veizis A, Perrin C, Coulborn RM. Syrian refugees in Greece: experience with violence, mental health status, and access to information during the journey and while in Greece. BMC Med 2018; 16:40.,2323. Goessmann K, Ibrahim H, Saupe LB, Ismail AA, Neuner F. The contribution of mental health and gender attitudes to intimate partner violence in the context of war and displacement: evidence from a multi-informant couple survey in Iraq. Soc Sci Med 2019; 237:112457., mas, curiosamente, são pouco frequentes em nossa pesquisa, o que talvez se deva ao receio dos participantes de terem a solicitação de refúgio negada caso informem sofrimentos em saúde mental. Outra possível explicação seria a interpretação de sintomas, como tristeza, desânimo ou fadiga, que podem não ser reconhecidos como sofrimento em saúde mental 2424. Priebe S, Giacco D, El-Nagib R. Public health aspects of mental health among migrants and refugees: a review of the evidence on mental health care for refugees, asylum seekers, and irregular migrants in the WHO European Region. Copenhagen: WHO Regional Office for Europe; 2016. (Health Evidence Network Synthesis Report, 47).. Perspectivas culturais distintas sobre origem de sofrimentos e aflições também podem influenciar o relato sobre sofrimentos em saúde mental 2525. Bäärnhielm S, Edlund AS, Ioannou M, Dahlin M. Approaching the vulnerability of refugees: evaluation of cross-cultural psychiatric training of staff in mental health care and refugee reception in Sweden. BMC Med Educ 2014; 14:207..

Este estudo tem limitações. Os instrumentos de obtenção dos dados, formulário do Conare e entrevista social, não foram desenvolvidos para fins de pesquisa. O viés de informação, por receio de recusa de refúgio, é provável. A entrevista social era preenchida somente por uma pessoa do grupo familiar, portanto, algumas condições de saúde relatadas por outros familiares não foram incluídas nas análises. Estudos que utilizam dados de morbidade referida têm como objetivo conhecer a condição de saúde por meio do relato do próprio indivíduo, não sendo expressão direta de um diagnóstico médico.

Esta pesquisa analisou dados inéditos que podem ser importantes para a formulação de políticas públicas e de organizações não governamentais (ONG), como a Cáritas/RJ, que prestem serviços a essa população. O Sistema Único de Saúde (SUS) deve construir políticas de saúde que foquem nas necessidades de saúde dessa população que vive em vulnerabilidade, principalmente no âmbito da atenção primária em saúde, incluindo a assistência social e a atenção psicossocial.

Agradecimentos

Bolsas de mestrado e doutorado financiadas pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2023
  • Revisado
    12 Jul 2023
  • Aceito
    27 Jul 2023
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