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A participação social no comando: a memorável 17ª Conferência Nacional de Saúde

Estamos em tempos de comunicação rápida, quase simultânea aos fatos, em que eventos de alto impacto social e político, como foi a 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), são objeto de divulgação e análise muito próximo ao tempo real. Menos de um mês depois do encerramento da conferência, muito já havia sido escrito, transmitido, comentado e debatido 11. Fleury S. A Conferência e o Contexto. Fiocruz Notícias 2023; 14 jul. https://portal.fiocruz.br/noticia/em-artigo-sonia-fleury-analisa-os-desafios-enfrentados-pela-17a-cns.
https://portal.fiocruz.br/noticia/em-art...
,22. Bussinger E. 17ª Conferência Nacional de Saúde: a festa da cidadania e da esperança. A Gazeta 2023; 4 jul. https://www.agazeta.com.br/colunas/elda-bussinguer/17-conferencia-nacional-de-saude-a-festa-da-cidadania-e-da-esperanca-0723.
https://www.agazeta.com.br/colunas/elda-...
,33. Pimentel A. Ana Pimentel vê uma nova fase para o SUS. Outra Saúde 2023; 10 jul. https://outraspalavras.net/outrasaude/ana-pimentel-ve-uma-nova-fase-para-o-sus/.
https://outraspalavras.net/outrasaude/an...
. São análises que expressam um grande consenso sobre o marco histórico da 17ª CNS: a presença exuberante da diversidade do povo brasileiro.

Uma sensação de magia e alegria envolvia os presentes, que, juntos, em um espaço comum, percebiam-se unidos pelo objetivo solidário de “garantir direitos, defender o SUS, a vida e a democracia” e construir um novo amanhã para a saúde. Foram mais de 6 mil participantes, entre convidados e delegados indicados pelas conferências estaduais e do Distrito Federal e pelas 99 conferências livres, que, pela primeira vez, puderam eleger representantes e encaminhar propostas, ampliando significativamente a participação social e os temas em debate.

A 17ª CNS ocorreu em um cenário de celebração da vitória da democracia e da premência de (re)construção do país. O candidato de extrema direita, derrotado nas eleições de 2022, buscou a reeleição manipulando instituições e recursos do Estado brasileiro em seu favor. Ele havia se popularizado, seguindo estratégias e métodos da extrema direita internacional, marcados por negacionismo, disseminação da cultura de ódio e da morte, emprego compulsivo de fake news e tentativas de golpe de Estado, como a intentona de 8 de janeiro de 2023. Sob seu desgoverno, o Brasil viveu a pandemia de COVID-19, tornando-se um dos países do mundo com a mais alta taxa de mortalidade pelo vírus.

Nas salas do Centro Internacional de Convenções do Brasil, onde se realizou a 17ª CNS, múltiplos eram os sotaques nas falas de pessoas de idades distintas, vindas de todos os cantos e recantos deste enorme Brasil, várias cores de pele misturavam-se ao arco-íris das bandeiras do movimento LGBTQIA+ e aos coloridos e criativos cocares dos povos originários que marcaram sua presença, junto à maior delegação de pessoas com deficiência presente em uma CNS. A pluralidade de corpos e vozes habitava os corredores, ocupava as salas, capilarizava as temáticas e adensava os debates. A diversidade se expressou pelos inumeráveis grupos e coletivos sociais, com pautas de reivindicação próprias e manifestações particulares, demonstrando a força do movimento social na saúde, em sua capacidade de mobilização e participação. Quem esteve na conferência se deparou com a imagem amplificada do caráter plural e democrático da posse do Presidente Lula e de um país orgulhoso da sua pluralidade.

Claramente, o protagonista da 17ª CNS foi o movimento social. Mas a academia também esteve presente e compartilhou das atividades com os demais participantes, contribuindo para a realização de atividades autogestionadas e para os debates dos grupos de trabalho. Sua participação no processo de construção da 17ª CNS se destaca na articulação com o movimento social para organização das conferências livres. Esse processo teve início com a realização da Conferência Livre, Democrática e Popular, em 5 de agosto de 2022, organizada pela Frente pela Vida, entidade criada na pandemia de COVID-19 por organizações científicas da saúde coletiva. Essa conferência foi construída a partir da realização de diversas conferências livres, estimuland o essa modalidade de participação.

A Frente pela Vida contrapôs o negacionismo e as políticas de morte conduzidas pelo governo passado por meio de ações que articularam e ajudaram a (re)organizar o movimento social na defesa da vida, do SUS e da democracia. Contribuiu com diretrizes e propostas voltadas para o SUS universal, público e igualitário. Trata-se de um movimento inovador que busca adotar novos arranjos na relação da academia com o movimento social para a construção conjunta de propostas e exercício democrático. Na direção de inovação no âmbito do movimento social, foi lançado na conferência, pelo Conselho Nacional de Saúde e pelo Ministério da Saúde, o Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais em Saúde44. Conselho Nacional de Saúde, Ministério da Saúde. Mapa Colaborativo dos Movimentos Sociais: faça o cadastro do movimento social que você participa! https://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/3102-mapa-colaborativo-dos-movimentos-sociais-faca-o-cadastro-do-movimento-social-que-voce-participa (accessed on Aug/2023).
https://conselho.saude.gov.br/ultimas-no...
. Na cerimônia de abertura, a ministra da Saúde anunciou a homologação da Resolução nº 714, de 2 de julho 2023 55. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 714, de 2 de julho de 2023. Dispõe sobre Campanha pela Criação de Conselhos Locais de Saúde nas Unidades Básicas de Saúde do SUS. https://conselho.saude.gov.br/resolucoes-cns/3089-resolucao-n-714-de-02-de-julho-de-2024 (accessed on Aug/2023).
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes...
, do Conselho Nacional de Saúde, que trata sobre a criação de conselhos locais de saúde nas unidades básicas de saúde (UBS) do SUS, um ato de fortalecimento do controle social no SUS.

A grande pluralidade de participação social na 17ª CNS foi acompanhada por um número significativo de recomendações encaminhadas por movimentos de “minorias” (raça, gênero, etnia, pessoas com deficiência, entre outros) associadas a causas específicas (cuidados paliativos, vítimas e familiares de vítimas da COVID-19, doenças raras). Isso ampliou as temáticas incluídas nas diretrizes e propostas que compuseram o Relatório Nacional Consolidado submetido à deliberação na conferência. Nesse contexto, foram mais prevalentes aquelas dirigidas a demandas específicas do que as relacionadas a questões estruturais, como financiamento, modelo assistencial e estratégias de desprivatização. O movimento social da saúde mostrou seu caráter político progressista, com as diretrizes e propostas conservadoras sendo sistematicamente derrotadas na plenária final da conferência.

Na Resolução nº 715, de 20 de julho de 2023 66. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 715, de 20 de julho de 2023. Dispõe sobre as orientações estratégicas para o Plano Plurianual e para o Plano Nacional de Saúde provenientes da 17ª Conferência Nacional de Saúde e sobre as prioridades para as ações e serviços públicos de saúde aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde. https://conselho.saude.gov.br/resolucoes-cns/3092-resolucao-n-715-de-20-de-julho-de-2023 (accessed on Aug/2023).
https://conselho.saude.gov.br/resolucoes...
, que dispôs sobre as orientações estratégicas para o Plano Plurianual e para o Plano Nacional de Saúde de 2024-2027 provenientes da 17ª CNS e sobre as prioridades aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde, o padrão acima foi mantido. Como resultados desse processo, por um lado, é possível identificar avanços para a garantia de direitos; por outro, percebe-se a necessidade de que demandas por mais inclusão sejam acompanhadas por políticas que garantam o SUS universal, integral, igualitário e de qualidade.

A 17ª CNS ocorreu em uma conjuntura em que forças conservadoras e privatistas do Congresso Nacional pressionavam pela substituição da Ministra da Saúde Nísia Trindade Lima. Aclamada pela plenária, a ministra da saúde se identificou como “ministra do SUS”, sendo legitimada no discurso proferido pelo Presidente Lula na cerimônia de encerramento da conferência, que ratificou a importância da luta contra o fascismo, da participação social e do SUS. Mas os avanços na garantia de direitos presentes nas recomendações do CNS foram repudiados por grupos conservadores no parlamento, sobretudo pela bancada evangélica, que se movimentou para impedir qualquer desenvolvimento nesse campo 77. Marzullo L. Governo enfrenta novo embate com bancada evangélica após Resolução do CNS sobre aborto e maconha. O Globo 2023; 8 aug. https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2023/08/08/governo-enfrenta-novo-embate-com-bancada-evangelica-apos-resolucao-do-cns-sobre-aborto-e-maconha.ghtml.
https://oglobo.globo.com/politica/notici...
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Temos que aprender a viver com a adversidade, com o coletivo88. Arouca S. Democracia é saúde. In: Anais da 8ª Conferência Nacional de Saúde, 1986. Brasília: Centro de Documentação, Ministério da Saúde; 1987. p. 35-42. (p. 42). Essas palavras foram proferidas por Sergio Arouca em sua apresentação na VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Se naquele momento celebramos a participação de usuários entre cerca de 4 mil delegados, 37 anos depois festejamos o ambiente de união na diversidade propiciado pelo SUS e pela expansão e diversificação do movimento social na saúde.

Viva a democracia! Viva o SUS!

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
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