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O que é o urbano na Amazônia contemporânea? Implicações para a vigilância em saúde no bioma

¿Qué es lo urbano en la Amazonía contemporánea? Implicaciones para la vigilancia de la salud en el bioma

A provocação feita por Bertha Becker 11. Becker BK. Undoing myths: the Amazon - an urbanized forest. In: Clüsener GM, Sachs I, editors. Brazilian perspectives on sustainable development of the Amazon region. Paris: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization; 1995. p. 53-89. (Man and Biosphere Series). em 1995, ao se referir à Amazônia como uma floresta urbanizada, foi um marco. Tratava-se do reconhecimento da Amazônia, por uma voz importante, ativa e não amazônida, como uma fronteira de acumulação capitalista, que era uma fronteira urbana 22. Becker BK. Fronteira e urbanização repensadas. Revista Brasileira de Geografia 1985; 47:357-71.,33. Becker BK. A urbe Amazônida: a floresta e a cidade. Rio de Janeiro: Garamond; 2013.. Essa perspectiva emergiu porque a narrativa desenvolvimentista para essa vasta paisagem de floresta tropical era a de um manancial de recursos exploráveis (minerais, madeireiros, energéticos, terras). Tal concepção obscurecia a presença humana anterior ao processo colonizatório. Estudos recentes 44. Neves EG. Sob os tempos do equinócio: oito mil anos de história na Amazônia Central. São Paulo: Ubu Editora; 2022. somam novas e importantes evidências de que muito antes do século XVI a região era pulsante e abrangia pelo menos dez milhões de habitantes, organizados em povos e territórios, a partir do domínio de tecnologias de manejo de solos, águas e biodiversidade.

Do ponto de vista da lógica nativa, não existiam grandes aglomerados que se diferenciavam de um entorno produtivo agrícola, mas sim a dispersão dos assentamentos ao longo de rios, separados por gradientes que seguiam da área habitada à roça, ao pomar e à floresta, articulados entre si e com os centros maiores, formando redes que viabilizavam a moradia e a produção. Esse paradigma foi capaz de reorientar a agricultura colonial, mas foi desconsiderado pelo modelo urbano-industrial, que reorganizou, de forma autoritária e cega, as estratégias de urbanização nos territórios brasileiros.

A urbanização nativa, que assimilava completamente a floresta, e as especificidades do urbano na Amazônia não só não eram compreendidas como tal, como não estiveram de fato presentes nas agendas nacionais de governos, da academia (fora da região) e do terceiro setor durante a maior parte da história do país. E “o que não está na agenda não existe”, ensinava Bertha Becker. A produção de paisagens e os indicadores preocupantes, no contexto da agenda climática e ambiental, e seus reflexos na agenda econômica, decorrentes da imposição de padrões de urbanização segundo a lógica urbano-industrial, oportunizaram a reemergência desse debate.

Por outro lado, a esses movimentos de urbanização estiveram intrinsecamente associados os processos saúde-doença. A urbanização alterou a distribuição de doenças de importância para a saúde pública ao longo de gradientes de ocupação em paisagens transformadas. Para as políticas públicas associadas às ações de vigilância e controle em saúde, o uso de definições normativas de “cidade” e “campo” ou de “urbano” e “rural” ajudava a estabelecer distinções entre saúde urbana e saúde rural e, consequentemente, o desenho das ações. A adoção de categorias dicotômicas, para explicar as diferenças no risco de exposição, bem como a prevenção de doenças, parecia ser suficiente, mas não para a Amazônia.

No decorrer de séculos, apesar da redução brutal da população originária em decorrência de doenças e de aculturação, os registros de uma organização espacial não binária continuam fortemente presentes no bioma. A herança da lógica do colonizador, baseada estritamente em termos do dipolo cidade-campo e mais tarde expressa no dipolo urbano-rural, não conseguiu apagar tais registros. Mais importante, o reconhecimento da diversidade e heterogeneidade de seus territórios praticados 55. Ribeiro ACT. Pequena reflexão sobre categorias da teoria crítica do espaço: território usado, território praticado. In: Souza MAA, editor. Território brasileiro: usos e abusos. Campinas: Edições Territorial Campinas; 2003. p. 29-43. seria elemento mobilizador para estabelecer associações claras e adequadas em estudos epidemiológicos e para alocar intervenções em áreas onde elas fossem necessárias.

O que seria então esse urbano na Amazônia contemporânea?

As diversas tipologias socioterritoriais presentes na região, para além das cidades, e suas configurações e reconfigurações territoriais são expressões do registro histórico das dinâmicas de um sistema pré-colonial que insistem em resistir. No século XVII, a estratégia da Companhia de Jesus foi constituir diretórios, que drenavam a produção da floresta para os conventos localizados nos sítios de aldeias e a partir deles eram escoados por via fluvial para a Europa. Esse dispositivo foi apropriado pela Coroa Portuguesa durante a gestão pombalina e resultou na transformação de tais conventos em vilas e cidades 66. Corrêa RL. A periodização da rede urbana da Amazônia. Revista Brasileira de Geografia 1987; 49:39-68.. Nessa fase, estabelecia-se uma formação híbrida entre a racionalidade indígena e a lógica colonizadora, que, associada à miscigenação, sedentarizou famílias e constituiu a base de um giro da economia colonial na direção de uma dinâmica estruturada não somente pelo extrativismo 77. Costa FA. Lugar e significado da gestão pombalina na economia colonial do Grão-Pará. Nova Economia 2011; 20:167-206.,88. Costa FA. A brief economic history of the Amazon (1720-1970). Cambridge: Cambridge Scholars Publishing; 2019.. Adicionavam-se a agricultura e a criação de rebanhos aos empreendimentos ribeirinhos baseados nas várzeas dos grandes rios. A produção das vilas alimentava as cidades-feiras, que se constituíram como centralidades, segundo um padrão próprio de economias mercantis 99. Corrêa RL. A rede de localidades centrais nos países subdesenvolvidos. Revista Brasileira de Geografia 1988; 50:61-83..

No entanto, a descrição da região como um espaço vazio, pela literatura hegemônica, entra no século XX apoiando-se na percepção de isolamento, ou do pequeno porte das aglomerações existentes, assumidas como dispersas e não compatíveis com as organizações propostas pelas políticas e estratégias de planejamento regional e urbano difundidas a partir dos anos 1940. Tais estratégias contaram com reforço ideológico e racista (Marcha para o Oeste 1010. Vargas G. A nova política do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio; 1938.), em que ribeirinhos, indígenas, camponeses e quilombolas que habitavam essas pequenas aglomerações não contavam com estatuto de civilizados. Esse ideário foi retomado durante a ditadura militar, quando a narrativa se transformou em “terra sem homens para homens sem-terra”. Estabelecia-se a dicotomia urbano-rural, simplificando-se a ocupação balanceada entre sociedade e natureza de fases anteriores e estabelecendo-se enormes desafios pela conversão incompleta daquela lógica nativa pelas novas dinâmicas da economia agrária e da nascente economia industrial brasileira.

A cidade se tornou representação simbólica do urbano, complementada pelas estruturas logísticas e de apoio às novas atividades neoextrativistas (economias de mineração, agricultura, pecuária, extração madeireira), que passaram a articular as cidades da região com metabolismos urbanos exógenos. Os ofícios ligados à economia referida ao bioma 1111. Silva H, Ventura Neto RS, Folhes GP, Costa FA, Folhes RT, Fernandes DA. Biodiversidade e economia urbana na Amazônia. https://madeusp.com.br/wp-content/uploads/2022/10/npe_26.pdf (accessed on 07/Jul/2023).
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(extração de produtos não madeireiros, produção de pequenas embarcações, beneficiamento de alimentos etc.), associados à escala territorial das vilas, dos povoados e das comunidades, passaram a ser identificados como rurais. A realização de atividades produtivas fora das cidades consolidou a percepção da Amazônia como uma região rural, demonstrando total incompreensão de uma cultura de relacionamento com a floresta estabelecida ao longo de milhares de anos. O senso comum era de que a Amazônia não tinha história, não contava com repertórios tecnológicos próprios de valor e por isso eles poderiam ser apagados rapidamente. A orientação política ideológica prevalecente no século XX posicionou milhares de ribeirinhos e povos da floresta em situação de exclusão quanto ao acesso de diversas políticas públicas, incluindo as relativas à saúde.

A incompreensão das formas de viver e produzir no mesmo território, ou de padrões de mobilidade e circulação cotidiana entre cidades, vilas, povoados, comunidades, casas, roças, pomares, rios e floresta, levaram a soluções de planejamento autoritárias, desarticuladas dessa realidade. Dessa forma, houve incapacidade de dar garantias de cidadania por meio do reconhecimento do impacto ambiental das novas atividades produtivas sobre aqueles territórios devido à contaminação de águas superficiais e de solos. Além disso, não foram reconhecidas tecnologias endógenas e mais apropriadas para questões tão essenciais como serviços públicos e infraestruturas urbanas, por exemplo para abastecimento de água potável, esgotamento sanitário e manejo de resíduos sólidos 1212. Ventura Neto RS, Silva H, Folhes GP, Costa FA, Fernandes DA, Folhes RT. Saneamento urbano como missão: a importância de compreender e ampliar mercados locais na Amazônia. https://madeusp.com.br/wp-content/uploads/2023/05/NPE_039_site-2.pdf (accessed on 07/Jun/2023).
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no bioma, fundamentais no contexto da promoção da saúde.

Na Amazônia contemporânea, mais fortemente do que em qualquer outro bioma, se uniram as tipologias originárias novas e diversas formas de assentamentos e de arranjos de circulação, que, em conjunto, funcionam como nós de um sistema urbano com múltiplas centralidades. São distritos, povoados, comunidades, vilas, centros de operações comerciais e de serviços, madeireiras, fazendas, arranjos campesinos, seringais, garimpos, acampamentos de grandes obras, assentamentos da reforma agrária, acampamentos de sem-terra, novos quilombos e novas áreas indígenas. As cidades, principalmente o tecido urbano que se estende a partir delas, utilizando essas redes diversificadas de assentamentos, ligados entre si por meio de variados graus de conectividade que definem diferentes centralidades, conformam os novos territórios de uma urbanização extensiva 1313. Monte-Mór RLM. Urbanização extensiva e lógicas de povoamento: um olhar ambiental. In: Santos M, Souza MA, Silveira ML, editors. Território, globalização e fragmentação. São Paulo: Hucitec Editora; 1994. p. 169-81.,1414. Monte-Mór RLM. What is the urban in the contemporary world. Cad Saúde Pública 2005; 21:942-8.,1515. Monteiro AMV, Cardoso ACD. Project URBISAmazônia: what is the nature of the urban phenomenon in the contemporary Amazônia? Cities, places, and networks in the multi-scale con?guration of the urban setting in contemporary Amazônia. Newsletter of the Global Land Project 2012; (8):26-8.,1616. Dal'Asta AP, Amaral S. Locality attributes and networks serving to reveal Amazonian urbanization beyond the cities. Geographical Review 2019; 109:199-223..

Esse urbano que se estende a partir das cidades mobiliza um periurbano estendido 1717. Cardoso ACD. Que contribuições virão da Amazônia brasileira para o urbanismo do século XXI? Thésis 2021; 6:36-53., invisibilizado e/ou homogeneizado pelo rótulo de rural. Um território que se estende entre a cidade nova e a histórica e os ciclos e processos da natureza que resistem nas tipologias socioespaciais ali situadas, mas sob forte pressão para seu desaparecimento. Dessa forma, as redes de centralidades configuram localidades entre rios e florestas, estabelecendo um continuum urbano-rural, e não um dipolo urbano-rural. É preciso desfocar a agenda da dualidade urbano-rural. Não havia no passado e não há, no presente, isolamentos. Existe uma invisibilidade intencional desses processos socioespaciais. Essa realidade aumenta a complexidade dos municípios e da gestão territorial de suas políticas, em particular as de saúde.

O uso de uma representação baseada no continuum urbano-rural para caracterizar os territórios praticados em um dos principais hotspots de malária das Américas, no Noroeste acreano, apresentou possibilidades de melhor suporte territorial para o desenvolvimento de estratégias de intervenção que possam minimizar o peso da doença 1818. Dal'Asta AP, Lana RM, Amaral S, Codeço CT, Monteiro AMV. The urban gradient in malaria-endemic municipalities in Acre: revisiting the role of locality. Int J Environ Res Public Health 2018; 15:1254.. Os resultados mostraram, no contexto da malária, que compreender a posição de cada localidade em seu continuum urbano-rural referenciado localmente permitia construir ações mais adequadas às especificidades daqueles territórios.

É fato que os desafios metodológicos para a construção de representações desse urbano extensivo e desse periurbano estendido são inúmeros. Há, ainda, os desafios para sua construção operacional no contexto dos serviços de saúde. Contudo, as dificuldades devem ser vistas como oportunidades para novos debates das possibilidades de inserção das localidades nos sistemas de informação em saúde. É urgente que sejamos capazes de enfrentar as complexidades contemporâneas desse urbano. Na Amazônia, tanto dentro quanto fora das cidades, a floresta e os rios são meios de produção e canais de circulação e encontro de todas as formas de vida. E são nesses espaços que (re)emergem velhos e novos processos de saúde-doença.

Agradecimentos

Agradecemos ao time do projeto SinBiose Trajetórias (Programa de Síntese Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq), às equipes do Laboratório de Investigação em Sistemas Socioambientais (LiSS), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e ao grupo de pesquisa URBANA: Urbanização e Natureza na Amazônia, da Universidade Federal do Pará (UFPA), pelas trocas, pelos debates e pelo compartilhamento de conhecimento por muitos anos, que em muito auxiliaram na formulação deste manuscrito.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2023
  • Aceito
    21 Jul 2023
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