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Fumo ou saúde/ direitos ou deveres?

EDITORIAL

Fumo ou saúde/ direitos ou deveres?

Nenhum outro fator de risco como o fumo, exceto desnutrição e miséria, foi tão evidenciado, pelo mundo científico, como o causador de milhões e de mortes evitáveis e incalculável sofrimento, na história da espécie humana (1).

Frente a esse quadro devastador, entidades como a OMS mobilizam-se e apontam como prioridade o combate ao fumo. Países de diferentes continentes unem-se e formam uma grande rede contra o poderoso inimigo: a indústria do tabaco.

É preciso avaliar, nesse momento, como e quanto a sociedade médica como um todo e os pneumologistas, em particular, têm se comprometido com o objetivo comum de um mundo livre de tabaco.

Enquanto se inaugura uma nova fábrica de cigarros da Souza Cruz no Rio Grande do Sul, as indústrias do vício e da propaganda conseguem enfumaçar a tentativa de legislar sobre a matéria, demonstrando vitalidade e poder em contraponto à nossa relativa indiferença.

Por outro lado, vêem-se algumas tentativas por parte da comunidade científica como a elaboração de um Guia Nacional de Tratamento e Controle do Tabagismo (elaborado por nove Sociedades Científicas, entre as quais a Pneumologia) retomando a liderança demonstrada pela AMB, em 1979, com a carta de Salvador (primeira manifestação de caráter nacional contra o tabagismo). Ainda presenciam-se, no recente XXX Congresso Brasileiro de Pneumologia e Tisiologia, manifestações sob forma de um documento a ser encaminhado ao Ministro da Saúde, em nome da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, revelando a disposição dessa Sociedade em trabalhar com o governo fornecendo subsídios para uma ação conjunta (Carta de Gramado).

A epidemia do tabaco alastra-se para os países em desenvolvimento depois de deixar profundas marcas nos países desenvolvidos (2). Somam-se à pobreza e à miséria dos países pobres, um rastro de doenças e mortes evitáveis, devidas ao tabaco.

O poderio econômico das indústrias do tabaco, forjando evidências, e manipulando as emoções, supera a própria vontade do indivíduo e o induz a uma das maiores drogadições da humanidade.

Entretanto, as estratégias para prevenção dessa doença já foram estabelecidas e são, hoje, bem reconhecidas (3):

a) acesso limitado à droga

b) elevação do custo da droga e

c) programas de prevenção.

Ao governo cabe executá-las. Mas essa não é apenas uma luta do poder público e para que que se tenha êxito é preciso a parceria entre médicos e sociedade. Se, de um lado, a balança inclina-se com o poder da corporação fumageira, do outro, contrapõe-se os irrefutáveis princípios de preservação à saúde e à vida. Será que os direitos de cidadania incluem a exposição a substâncias capazes de produzir doenças e morte precoce por dano aos sistemas cardiovascular, respiratório e aumento do risco de câncer? Ou será que, em nome de um direito, pode-se permitir que mulheres grávidas corram o risco de comprometer o desenvolvimento fetal, dando à luz recém-nascidos de baixo peso com muito maior chance de adoecerem e morrerem na infância ou ficarem marcados para toda vida? Tem direito, também, a propaganda enganosa, de esconder a doença, o sofrimento, os anos de vida perdidos, a invalidez, os custos sociais, a dependência, mostrando somente "as ditas coisas boas do cigarro" ? Qual a diferença, com relação a direitos, entre crianças impregnadas no útero pela fumaça daquelas submetidas à violência, maus tratos, abuso sexual, escravidão e trabalho infantil ?

Os esforços das indústrias do tabaco em mascarar os efeitos danosos do fumo à saúde chegam ao limite extremo de artimanhas, como a invenção de um novo cigarro: o Eclipse. É dito publicamente por "eles": esse é um cigarro que causa "menos câncer", "menos bronquite crônica" e "menos enfisema" do que os outros cigarros (mas, então, "eles" reconhecem os prejuízos do fumo (4)? A mesma falácia aconteceu em outras épocas quando essas companhias alardearam que os cigarros light não faziam mal e, milhares de pessoas, iludidas pela propaganda e convictas dessa verdade, passaram a fumar o "cigarro bonzinho".

Tabaco é doença, é drogadição. Não aquela causada pelo álcool ou pela cocaína ou heroína, mas uma drogadição mais intensa e poderosa. Ao redor de 31,9% daqueles que experimentarem tabaco tornar-se-ão drogaditos contra 15,4% daqueles que experimentarem álcool, 16,7% dos que experimentarem cocaína ou 23,1% dos que experimentarem heroína (5). O uso crônico da nicotina provoca alterações no cérebro com aumento do número de receptores nicotínicos e cada vez necessidades maiores de nicotina. É de doença que está se falando, é de alterações fisiopatológicas importantes. E é por tratar-se de doença que precisa ser tratada. Aconselhamento, reposição com nicotina e uso de fármacos como o bupropion elevam as taxas de abandono do vício do fumo em até 36% (6).

São tantas as informações hoje conhecidas a respeito dessa doença e qual a maneira mais eficaz para tratá-la, que surpreeende a nossa total incompetência para a solução do problema.

Desnecessário seria enumerar as doenças provocadas pelo fumo, desde o baixo peso ao nascer até a morte súbita, na infância, ou a feiura da pele e o estreitamento dos vasos, nos adultos. Se nada disso parece sofrimento suficiente, quem sabe lembrar da virilidade perdida e da esterilidade adquirida?

Não tão desnecessário, talvez, seja a tradução em números de quantos adoecem e quantos morrem no mundo como consequência dessa epidemia:

NÚMERO DE FUMANTES (7)!

• Nos países em desenvolvimento, 42% dos homens e 12% das mulheres, no início da década de 90, eram fumantes. O número de fumantes no mundo, nessa data, era de 1,1 bilhão estando 300 milhões desses em países desenvolvidos e 800 milhões nos países em desenvolvimento.

• Embora o número de fumantes esteja diminuindo em alguns países desenvolvidos, certamente está aumentando em muitos países em desenvolvimento.

• Os maiores aumentos em número de fumantes estão ocorrendo em mulheres e adolescentes.

MORTE POR FUMO (8) !

• A cada dois fumantes de longa data, um morrerá pelo fumo.

• Quatro milhões morrem anualmente de doenças associadas ao fumo, ou seja, uma morte a cada oito segundos. As estimativas são de que, em 2030, será uma morte a cada três segundos e que um total de 10 milhões de mortes ocorrerão pelo fumo.

• 250 milhões de crianças e adolescentes, hoje, vivas, morrerão nos próximos anos, em decorrência do fumo, sendo que um terço dessas mortes serão nos países em desenvolvimento.

Bem, talvez deva-se repensar o significado da palavra "direito". Ou seria melhor falarmos em deveres e direitos?

• Deveres das instituições governamentais, dos educadores, dos profissionais da área da saúde, das sociedades médicas, dos pais, das gestantes e de tantos outros responsáveis pela transformação necessária de um mundo poluído em um mundo livre do fumo.

• Direitos das crianças de nascerem sem mais outra desigualdade além daquelas impostas por uma sociedade economicamente tão desigual; direitos dos jovens à liberdade sem que venham com ela a mentira e os interesses de alguns na indução do vício; direitos dos cidadãos de não adoecerem e morrerem por doenças causadas pelo próprio homem.

ANA MARIA B. MENEZES

Professora Titular de Pneumologia e da Pós-Graduação em Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas anamene@nutecnet.com.br

ALOYZIO ACHUTTI

Membro da Câmara Técnica do Instituto Nacional do Câncer (INCA) e Professor Aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

REFERÊNCIAS

1. Murray CJ, Lopez AD. The global burden of disease: a comprehensive assessment of mortality and disability from diseases, injuries and risk factors in 1990 and projected to 2020. Cambridge, Mass.: Harvard School of Public Health, 1996. World Bank Publication. Curbing the epidemic: governments and the economics of tobacco control, 1999;13-17.

2. World Bank Publication. Curbing the epidemic: governments and the economics of tobacco control, 1999:13-17.

3. U.S. Department of Health and Human Services. Reducing tobacco use: a report of the surgeon general. Atlanta, Georgia: U.S. Department of Health and Human Services; Centers for Disease Control and Prevention; National Center for Chronic Disease and Health Promotion, 2000;5-25.

4. Stephenson J. A "safer" cigarette? Prove it, say critics. JAMA 2000; 283(19):2507-2508.

5. Nicotine Plenary: The Greatest Science Show on Earth. Annals of 11th Conference on Tobacco or Health, Chicago, 2000. Disponível na Internet: http://www.wctoh.org.

6. Jorenby DE, Leischow SJ, Nides MA, et al. A controlled trial of sustained-release Bupropion, a Nicotine Patch, or both for smoking cessation. N Engl J Med 1999; 340(9): 685-692.

7. World Health Organization. WHO Fact Sheet No 222, April 1999. Disponível na Internet: http://www.who.ch.

8. World Health Organization. WHO Fact Sheet No 221, April 1999. Disponível na Internet: http://www.who.ch.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2003
  • Data do Fascículo
    Dez 2000
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