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Hérnia diafragmática traumática transpericárdica: relato de caso

Traumatic transpericardial diaphragmatic hernia: case report

Resumos

Relata-se caso de ocorrência rara, apenas um publicado nos últimos 30 anos. O diagnóstico e a correção de hérnia traumática transpericárdica, com redução espontânea, foram feitos intra-operatoriamente pela verificação de lesões na parede lateral esquerda do pericárdio, pericárdio diafragmático e do tendão central, com hemidiafragma esquerdo intacto.

Hérnia diafragmática transpericárdica; Traumatismo torácico


The diagnosis and correction of a rare case of traumatic transpericardial diaphragmatic hernia is presented with spontaneous intraoperative reduction by the verification of the lesions of the left lateral wall of the pericardium, diaphragmatic pericardium, and the central tendon, with intact left hemidiaphragm. Only one such case has been published in the last thirty years.

Transpericardial diaphragmatic hernia; Thoracic injuries


RELATO DE CASO

Hérnia diafragmática traumática transpericárdica: relato de caso

ROBERTO RUBEN PANDO-SERRANO1 1 . Professor Doutor da Disciplina de Cirurgia Torácica da Faculdade de Ciências Médicas de Santos; Responsável pelo Serviço de Cirurgia Torácica do Hospital e Maternidade Brasil e Hospital Beneficente São Caetano. , ANTONIO J. FERREIRA LEAL2 1 . Professor Doutor da Disciplina de Cirurgia Torácica da Faculdade de Ciências Médicas de Santos; Responsável pelo Serviço de Cirurgia Torácica do Hospital e Maternidade Brasil e Hospital Beneficente São Caetano. , MÁRCIO R.A. GOMES3 1 . Professor Doutor da Disciplina de Cirurgia Torácica da Faculdade de Ciências Médicas de Santos; Responsável pelo Serviço de Cirurgia Torácica do Hospital e Maternidade Brasil e Hospital Beneficente São Caetano. , RENÉ CREPALDI FILHO4 1 . Professor Doutor da Disciplina de Cirurgia Torácica da Faculdade de Ciências Médicas de Santos; Responsável pelo Serviço de Cirurgia Torácica do Hospital e Maternidade Brasil e Hospital Beneficente São Caetano.

Relata-se caso de ocorrência rara, apenas um publicado nos últimos 30 anos. O diagnóstico e a correção de hérnia traumática transpericárdica, com redução espontânea, foram feitos intra-operatoriamente pela verificação de lesões na parede lateral esquerda do pericárdio, pericárdio diafragmático e do tendão central, com hemidiafragma esquerdo intacto.

Traumatic transpericardial diaphragmatic hernia: case report

The diagnosis and correction of a rare case of traumatic transpericardial diaphragmatic hernia is presented with spontaneous intraoperative reduction by the verification of the lesions of the left lateral wall of the pericardium, diaphragmatic pericardium, and the central tendon, with intact left hemidiaphragm. Only one such case has been published in the last thirty years.

Descritores – Hérnia diafragmática transpericárdica. Traumatismo torácico.

Key words – Transpericardial diaphragmatic hernia. Thoracic injuries.

INTRODUÇÃO

A ruptura traumática do diafragma, precocemente reconhecida na história da cirurgia, adequadamente compreendida e documentada, permanece com característica de diagnóstico atrasado que resulta em alta mortalidade(1).

A lesão do diafragma por trauma fechado tem ocorrido com freqüência, como conseqüência do aumento da população, do número de acidentes automobilísticos e da área industrial. As hérnias diafragmáticas traumáticas são reconhecidas como sinais de trauma grave. O diagnóstico é freqüentemente difícil e feito muitas vezes durante procedimentos cirúrgicos por outros motivos(1-3). O trauma fechado toracoabdominal provoca ruptura do diafragma em aproximadamente 5% dos casos. A lesão seletiva do tendão central do diafragma com resultante herniação de órgãos abdominais para dentro do espaço pericárdico é rara, ocorre com incidência de 1% de todos os ferimentos diafragmáticos. O envolvimento do hemidiafragma esquerdo aparece em 75% dos casos publicados(4). Em condições normais a pressão intraperitoneal varia de +2 a +10cm de água; durante o trauma fechado do abdome esta pressão pode alcançar níveis de até 1.000cm de água em caráter súbito, levar à ruptura do diafragma e deslocamento de órgãos abdominais para dentro da cavidade torácica(5). Embora de ocorrência rara, o conteúdo da hérnia diafragmática traumática intrapericárdica pode ser o epíploo, cólon transverso, estômago, jejuno e o lobo esquerdo do fígado(6). Nos casos de hérnias de diagnóstico atrasado os pacientes podem apresentar dor, queixas respiratórias ou gastrointestinais; em poucas situações o quadro clínico inclui instabilidade hemodinâmica(7). O tamponamento cardíaco deve ser incluído no diagnóstico diferencial em pacientes com hipotensão e evidência radiográfica de hérnia diafragmática(8). Descrevemos um caso de incidência ainda mais rara, hérnia diafragmática traumática transpericárdica pós-trauma do tórax de diagnóstico intra-operatório, adicionando mais um caso, o único citado na literatura nos últimos 30 anos(9).

RELATO DO CASO

Homem de 68 anos, vítima de acidente automobilístico no Litoral Sul de São Paulo, foi inicialmente socorrido em hospital regional e no dia seguinte transferido com diagnóstico de fraturas de arcos costais à esquerda, contusão pulmonar e fratura da pelve. Admitido no hospital de destino, consciente, com parâmetros ventilatórios e hemodinâmicos normais, foi avaliado clinicamente e submetido a exames laboratoriais e radiográficos.

Dois dias após, o paciente continuava consciente, orientado, com dor de moderada intensidade do hemitórax esquerdo e da articulação coxofemoral. Ao exame físico: estava em bom estado geral, corado, hidratado, discretamente dispnéico, acianótico, pressão arterial 140 x 100mmHg, freqüência cardíaca de 96 batimentos por minuto, temperatura de 36,5oC, limitada expansibilidade lateral esquerda do tórax com áreas de equimose e enfisema subcutâneo nesta região, murmúrio vesicular ausente na base esquerda, ictus cordis não palpável, ruídos cardíacos rítmicos e pouco audíveis, hemitórax direito normal. Exames complementares: hemograma com 3.910.000 glóbulos vermelhos, hematócrito de 35,5%, hemoglobina 11,8g/dl, leucócitos 18.600 sem desvio, sódio 143mEq/l, potássio 4,3mEq/l, uréia 121mcg%, creatinina 1,7mg%, glicemia 244mg/dl, tempo de protrombina 14,2 segundos e atividade 85%, tempo de protrombina parcial ativado (TTPA) 39 segundos, gasometria arterial: pH = 7,25, PaO2 = 94mmHg, PaCO2 = 54,3mmHg, saturação de 94,1%, HCO3 = 24,1mEq/l, BE = 3,3. Eletrocardiograma com ritmo sinusal e elevação do segmento ST em parede inferior. Radiografia do tórax evidenciava enfisema subcutâneo em parede lateral esquerda, opacificação heterôgenea da base, área cardíaca maldefinida. A radiografia da pelve revelava fratura do acetábulo esquerdo e o crânio radiograficamente sem lesões. Tomografia computadorizada evidenciou enfisema subcutâneo na parede lateral esquerda, hidropneumotórax, atelectasia do lobo inferior esquerdo (fratura brônquica?), hérnia diafragmática esquerda (estômago?) e arquitetura normal do pulmão direito (Figura 1). À fibrobroncoscopia, faringe, laringe, traquéia e árvore brônquica, de ambos os pulmões até subsegmentos, não apresentavam anormalidades, carina fina, móvel e centrada, porém com colapso total do brônquio do lobo inferior por compressão externa. Durante o posicionamento em decúbito lateral direito para toracotomia esquerda, o paciente apresentou arritmia cardíaca tipo bigeminismo e fibrilação ventricular, com queda da saturação sanguínea de oxigênio e hipotensão arterial, que reverteu com a volta ao decúbito dorsal e manutenção da ventilação mecânica, ocorrendo, inclusive, aparecimento de murmúrio vesicular, que estava abolido na base do lado esquerdo. Aberta a cavidade pleural, não se encontrou o conteúdo de hérnia diafragmática, a cúpula esquerda estava anatomicamente intacta, porém foram encontradas duas extensas lacerações de 18cm de comprimento da parede lateral do pericárdio, isto é, uma laceração anterior e outra posterior a uma tira longitudinal do pericárdio contendo o nervo frênico intacto (Figura 2). Através destas lesões verificou-se outra lesão transversa de aproximadamente 10cm de comprimento envolvendo a superfície diafragmática do pericárdio e o tendão central do diafragma, por onde o lobo esquerdo do fígado herniava para dentro do pericárdio (Figura 3). Estes achados suscitaram duas possibilidades: 1) A hérnia traumática realmente existiu e foi transpericárdica seguindo o trajeto do abdome para a cavidade pericárdica e desta para a cavidade pleural esquerda. 2) Houve redução do conteúdo da hérnia durante o posicionamento do paciente anestesiado em decúbito lateral direito. O ato cirúrgico torácico consistiu no fechamento da lesão transversa do pericárdio e do tendão central com pontos separados de fio inabsorvível, na correção das lesões laterais do pericárdio, aproximando as bordas anterior e posterior junto à tira de pericárdio contendo o nervo frênico e, finalmente, sutura de pequena laceração do lobo inferior do pulmão esquerdo e, o ato ortopédico, na instalação do sistema de tração transesquelética para a fratura do acetábulo. O pós-operatório transcorreu sem complicações.




DISCUSSÃO

As hérnias diafragmáticas transpericárdicas traumáticas são muito raras. Existe apenas um caso relatado nos últimos 30 anos(9). O diagnóstico em ambos os casos foi tardio e intra-operatório; no caso relatado na literatura a hérnia era constituída pelo próprio coração que herniou para a cavidade pleural através da laceração da lateral esquerda do pericárdio juntamente com o estômago, parte do cólon e epíploo. Os ferimentos do tendão central, do pericárdio diafragmático, da face lateral do pericárdio e o trajeto seguido pelos órgãos herniado foram semelhantes nos dois casos. Isso esclareceu a fisiopatologia do caso apresentado, a hérnia realmente esteve presente e era transpericárdica, isto é, os órgãos se deslocaram do abdome para a cavidade pericárdica e desta para a cavidade pleural, ocorrendo redução espontânea do conteúdo herniado para o abdome durante o posicionamento do paciente em decúbito lateral direito na mesa de operações. O tamponamento cardíaco relatado em alguns casos de hérnia intrapericárdica traumática(10) não foi encontrado nos dois casos. O fato do não comprometimento da função cardíaca nesses casos foi devido às lacerações laterais do pericárdio que permitiram o escape dos órgãos herniados para a cavidade pleural(9). O tamponamento cardíaco em pacientes com trauma toracoabdominal deve apontar a possibilidade de hérnia intrapericárdica.

No paciente em questão, submetido a radiografia e tomografia computadorizada do tórax, não se fez diagnóstico pré-operatório, mesmo sendo a tomografia o exame considerado de escolha para diagnóstico de hérnia intrapericárdica(10,11) e melhor que os exames baritados, que podem distender vísceras e provocar tamponamento(12). O ecocardiograma e ultra-sonografia são exames de alto valor diagnóstico em casos suspeitos de hérnia diafragmática intrapericárdica(13,14) e deveriam ser realizados logo na admissão do paciente. Neste caso, a súbita arritmia cardíaca, logo no início do procedimento, foi esclarecida pelo achado das lesões e ausência do conteúdo herniário, que teve redução espontânea, reposicionando o coração que sofrera tamponamento temporário, devido à passagem dos órgãos da cavidade pleural para o abdome através do pericárdio.

A via de acesso para a correção cirúrgica da hérnia diafragmática traumática é controversa, mesmo nos casos de hérnia intrapericárdica. Muitos autores preferem a laparotomia(15), mesmo que seja complementada por toracotomia(16). No caso apresentado foi realizada a toracotomia para avaliar o hidropneumotórax já existente e foi de validade para o diagnóstico das lesões pericárdicas e simplificar a correção.

2. Professor Assistente da Disciplina de Cirurgia Torácica da Faculdade de Ciências Médicas de Santos; Cirurgião do Hospital São Lucas e Hospital Beneficência Portuguesa de Santos.

3. Cirurgião do Serviço de Cirurgia Torácica do Hospital e Maternidade Brasil e do Hospital Beneficente São Caetano.

4. Cirurgião do Serviço de Urgência do Hospital São Caetano.

Endereço para correspondência – Roberto Ruben Pando-Serrano, Rua Rio Grande do Sul, 1.460, apto. 1, Cerâmica – 09510-021 – São Caetano do Sul, SP.

Recebido para publicação em 12/4/00. Reapresentado em 20/6/00. Aprovado, após revisão, em 26/6/00.

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    . Professor Doutor da Disciplina de Cirurgia Torácica da Faculdade de Ciências Médicas de Santos; Responsável pelo Serviço de Cirurgia Torácica do Hospital e Maternidade Brasil e Hospital Beneficente São Caetano.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Jun 2003
    • Data do Fascículo
      Dez 2000

    Histórico

    • Aceito
      26 Jun 2000
    • Recebido
      12 Abr 2000
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