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Medicina baseada em evidências: quais os limites?

CARTA AO EDITOR

Medicina baseada em evidências: quais os limites?

Sra. Editora:

É com preocupação que vejo o surgimento de novos paradigmas, que são colocados para a classe médica, com o justo objetivo de diminuir os custos da assistência médica. No entanto, necessitamos alertar os médicos sobre as conseqüências destes paradigmas, estimulando uma ampla discussão através do jornal da SBPT, para que possamos enxergar as reais metas que orientaram a ampla divulgação da medicina baseada em evidências (MBE), no Brasil e fora dos meios universitários. Da mesma forma, precisamos detectar quem é o principal interessado na MBE e qual a repercussão desta na conduta médica e no sistema de saúde.

Temo que uma nova referência seja incorporada na nossa prática médica, como um modismo, aplicado com objetivos financeiros e não pelos princípios que criaram a MBE, há 30 anos, para que a eficácia diagnóstica e a terapêutica não sejam prejudicadas pela diminuição dos custos. É necessário que a classe médica repense o seu papel histórico e atual, afinal de contas, a medicina surgiu para prevenir, diagnosticar e tratar as doenças. A partir do momento em que alguns destes itens ocasionam um equívoco no seu encaminhamento, em uma década moderna e de alta tecnologia, eles comprometem a confiabilidade médico-paciente e a razão desta relação. Apesar da MBE ter sido divulgada recentemente como algo moderno, ela completou 30 anos em 1999. Surgiu no Canadá, na Universidade de McMaster, como um método alternativo para aprimorar o ensino médico. O que me preocupa é justamente a deformação da aplicação de um bom método de ensino, que surgiu nos meios universitários e que nunca teve repercussão fora deste meio. Com a elevação progressiva dos custos do sistema de saúde privado, são as seguradoras de saúde que têm estimulado esta iniciativa diante da classe médica. Não tenho nada contra este fato, desde que não haja uma deformação desta idéia, pois é de conhecimento de todos o excesso de exames desnecessários, que são solicitados e que encarecem o custo saúde. Acho que, se houver uma racionalização de exames e condutas no setor público, isto também diminuirá o custo para a sociedade. A MBE, quando aplicada no ensino médico, é menos complexa do que nos consultórios, pois, como método de ensino, você pode simular situações, produzir imagens teóricas e/ou atitudes práticas, e obter a resolução de problemas de saúde, sem dispêndio financeiro. O estímulo ao raciocínio para resolver determinado caso clinico faz com que o aluno passe a ter uma atitude ativa em sala de aula, ao invés de se manter passivo durante a mesma. No caso de se cometer um erro de diagnóstico, ou terapêutico, isto não implicará risco de vida ao paciente, visto que uma das alternativas deste método está sendo simulada em uma folha de papel ou similar. Porém, torna-se diferente quando você está diante de um paciente, seja no setor público ou privado. O paciente mostra-se confiante ao lado dos familiares, entregando-se ao médico(a), para que este delimite o caminho a ser seguido. Não devemos esquecer que, nos dias atuais, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, existe uma indústria do erro médico, que se desenvolve mais no sentido financeiro do que no ético. A evolução da humanidade mostrou que os seres vivos estão em constante mutação, frente às alterações do ambiente, e isto se aplica à resistência de algumas bactérias, ao descobrimento de novos vírus e bactérias, que só se manifestam diante de alterações imunológicas e ambientais. Neoplasias que se apresentam simulando clinicamente e radiologicamente doenças inflamatórias são um exemplo. Há apresentações de diferentes formas de infecção, causadas por um agente infeccioso, em um mesmo órgão, porém, com apresentação clínica e radiológica diferentes em pacientes imunodeprimidos e não imunodeprimidos. Com freqüência, estamos diante de situações em que os modernos exames da imagenologia mostram detalhes radiológicos nunca alcançados antes e que sugerem o diagnóstico baseado nas evidências radiológicas. Porém, na prática diária e na literatura atual, observamos a apresentação de casos clínicos, como, por exemplo, imagens de nódulos hepáticos sugestivas de metástases, e a laparoscopia diagnostica hemangiomas. Outras imagens são as de tumores simulando hepatocarcinoma, e a biópsia revela tuberculose hepática. Os próprios patologistas estão diante de situações desconfortáveis, quando fazem o exame de congelação e diagnosticam uma lesão como benigna e o laudo histopatológico, dias depois, é descrito como maligno. Não porque isto seja uma deformação na conduta do patologista, e sim porque existem casos de difícil diagnóstico, mesmo com o uso de microscópios e corantes modernos, pois alguns casos fogem à regra da apresentação usual. Outro exemplo é o da apresentação de formas diferentes de tuberculose na criança, no adulto diabético, no adulto HIV positivo e no adulto sadio, isto é, uma mesma bactéria acometerá determinado órgão dependendo das condições ambientais e do estado imunológico do hospedeiro, e esta mesma bactéria pode sofrer mutação e provocar uma nova forma de infecção, até então desconhecida. Foi assim com a SIDA. Quantos pacientes faleceram, vítimas das evidências de que eram formas resistentes de tuberculose ou vírus já conhecidos que os acometiam, quando na verdade tinham SIDA associada e não descoberta até então? O aumento da área cardíaca em um jovem assintomático não justifica a necessidade de realizar um ecocardiograma, pois pode ser decorrente da prática esportiva. Na minha opinião, a MBE deve ser o início da investigação diagnóstica. Algumas especialidades, como a de terapia intensiva, praticamente se baseiam na avaliação das evidências, na maioria dos casos, devido ao estado crítico dos pacientes, em que procedimentos invasivos podem agravar seus quadros clínicos. Devemos estabelecer limites para tal metodologia, pois é preciso evitar a assimilação dos extremos, ou seja, o uso abundante de tecnologia, aumentando desnecessariamente os custos do setor saúde, versus a preocupação de evitar exames, para proporcionar uma economia de custos, em detrimento da resolução do problema do paciente, ou o retardo diagnóstico. São necessários uma anamnese e exame físico detalhados, associados a exames básicos, que são suficientes para diagnosticar a maioria das patologias, seja no serviço público ou privado. É importante não se transferir a numerologia estatística dos protocolos clinicos da MBE para a vida do ser humano, pois não podemos definir uma conduta dependendo de um percentual estatístico. Se em um paciente (com passado de neoplasia) existe uma dúvida diagnóstica recente entre uma neoplasia disseminada e uma doença inflamatória, com um protocolo clínico indicando um percentual de 99% de possibilidade de ser uma neoplasia, significa que, em uma casuística de 100 pacientes, um paciente será diagnosticado e tratado equivocadamente. Por exemplo, um paciente tratado com quimioterapia, nas condições citadas acima, terá a sua doença inflamatória agravada, em pleno início de um novo milênio. Este fato, do ponto de vista estatístico, é insignificante, porém, é significativo e deficiente nos aspectos científicos e éticos (humanos).

Acho que a MBE é benéfica para o SUS e para as empresas privadas de seguro-saúde, pois há uma diminuição acentuada dos custos. Também, é benéfica para o ensino médico, porém, é prejudicial à pesquisa científica, pois a pesquisa não se baseia em evidências, e sim na certeza dos objetivos alcançados e comprovados. Um exame de imagem é como uma fotografia de uma pessoa. Se essa pessoa tiver um irmão gêmeo, será praticamente impossível distingui-lo na aparência. Entretanto, no conteúdo podem ter comportamentos diferentes. As aparências enganam. Quero esclarecer que essa opinião do presente artigo é pessoal, e gostaria de estimular esta discussão, para ouvir a opinião de outros colegas médicos.

DR. EDMILSON VIEIRA GAIA FILHO

Professor Auxiliar da Disciplina de Bases da Técnica Cirúrgica e Anestesiologia da Escola de Ciências Médicas de Alagoas. Mestre do Capítulo de Alagoas do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (1998-1999). Cirurgião de Tórax da Santa Casa de Maceió, Hospital do Sesi e Hospital Unimed. Chefe do Serviço de Doenças Respiratórias do Hospital-Escola Dr. José Carneiro-AL.

Endereço para correspondência – Av. Dr. Antônio Gouveia, 1.021, 801 – Pajuçara – 57030-170 – Maceió, AL. E-mail: edmilsongaia@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2003
  • Data do Fascículo
    Dez 2000
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