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Síndrome de Jó ou hiperimunoglobulinemia E

Job's syndrome or hyperimmunoglobulinemia E

Resumos

A síndrome de Jó ou hiperimunoglobulinemia E é uma rara condição de imunodeficiência, sem etiologia definida, caracterizada por infecções de repetição dos tratos respiratórios superior e inferior e da pele associadas a níveis elevados de imunoglobulina E, eosinofilia e alterações faciais peculiares. Relata-se o caso de um homem de 22 anos, portador da doença, complicada com empiema pleural e cistos pulmonares e boa evolução.

Síndrome de Jó; Infecções respiratórias; Recidiva


Job's syndrome, or hyperimmunoglobulinemia E, is a rare immunodeficiency condition with no established etiology, characterized by recurrent lower and upper respiratory tract and skin infections associated with high levels of immunoglobulin E, eosinophilia, and a characteristic facial alteration. The authors report on a 22-year-old man who carried this disease complicated by pleural empyema and lung cysts, showing a good evolution.

Job's syndrome; Respiratory tract infections; Recurrence


RELATO DE CASO

Síndrome de Jó ou hiperimunoglobulinemia E* * Trabalho realizado no Serviço de Pneumologia do Hospital de Messejana, Fortaleza, CE.

RICARDO COELHO REIS1 * Trabalho realizado no Serviço de Pneumologia do Hospital de Messejana, Fortaleza, CE. , MARCELO ALCÂNTARA HOLANDA2 * Trabalho realizado no Serviço de Pneumologia do Hospital de Messejana, Fortaleza, CE. , JUVÊNCIO PAIVA CÂMARA3 * Trabalho realizado no Serviço de Pneumologia do Hospital de Messejana, Fortaleza, CE. , JOSÉ HUMBERTO ARAÚJO4 * Trabalho realizado no Serviço de Pneumologia do Hospital de Messejana, Fortaleza, CE. , MICHELINE PAIVA AQUINO5 * Trabalho realizado no Serviço de Pneumologia do Hospital de Messejana, Fortaleza, CE. , LARYSSA BRAGA CAVALCANTE SANTANA5 * Trabalho realizado no Serviço de Pneumologia do Hospital de Messejana, Fortaleza, CE.

A síndrome de Jó ou hiperimunoglobulinemia E é uma rara condição de imunodeficiência, sem etiologia definida, caracterizada por infecções de repetição dos tratos respiratórios superior e inferior e da pele associadas a níveis elevados de imunoglobulina E, eosinofilia e alterações faciais peculiares. Relata-se o caso de um homem de 22 anos, portador da doença, complicada com empiema pleural e cistos pulmonares e boa evolução. (J Pneumol 2001;27(2):115-118)

Job's syndrome or hyperimmunoglobulinemia E

Job's syndrome, or hyperimmunoglobulinemia E, is a rare immunodeficiency condition with no established etiology, characterized by recurrent lower and upper respiratory tract and skin infections associated with high levels of immunoglobulin E, eosinophilia, and a characteristic facial alteration. The authors report on a 22-year-old man who carried this disease complicated by pleural empyema and lung cysts, showing a good evolution.

Descritores ¾ Síndrome de Jó. Infecções respiratórias. Recidiva.
Key words ¾ Job's syndrome. Respiratory tract infections. Recurrence. Siglas e abreviaturas utilizadas neste trabalho
IgE ¾ Imunoglobulina E
HTE ¾ Hemitórax esquerdo
HIV ¾ Vírus da imunodeficiência humana
LDH ¾ Desidrogenase láctica
DNBT ¾ Dinitro azul tetrazólio

INTRODUÇÃO

Desde a descrição dos primeiros casos da doença, em 1966(1), o comprometimento do sistema respiratório tem importância fundamental na síndrome de Jó, uma rara condição também conhecida como síndrome hiper-IgE, atualmente enquadrada no grupo das imunodeficiências hereditárias que ainda guarda diversos aspectos obscuros no tocante à sua fisiopatologia, evolução e prognóstico.

A despeito do número reduzido de casos catalogados e da falta de descrição de um seguimento prolongado dos pacientes, o pronto reconhecimento e correção das complicações pleuropulmonares continuam sendo um dos principais recursos no manuseio dessa doença, diminuindo de forma significativa sua mortalidade.

RELATO DO CASO

Homem, 22 anos, pardo, agricultor, sadio até cinco meses da admissão, quando notou aparecimento de furúnculos na região mandibular direita e no membro inferior direito, tendo feito uso de penicilina benzatina, com regressão total das lesões. Um mês após o quadro inicial evoluiu com tosse associada a broncorréia purulenta, febre alta, hemoptóicos e dor pleurítica bilateral. A radiografia do tórax revelava múltiplas opacidades de padrão alveolar no lobo superior direito e lobos superior e inferior esquerdos. Foi submetido a tratamento com oxacilina e gentamicina em regime hospitalar por 15 dias, tendo recebido alta assintomático. Após esse episódio apresentou três novos internamentos, sempre com mesmo quadro clínico e radiológico, permanecendo assintomático por um período que variava de duas a quatro semanas. Por ocasião da última internação, 15 dias antes da admissão, apresentou piora do estado geral e surgimento de dispnéia e vômitos, tendo a investigação radiológica revelado nível hidroaéreo em lobo inferior esquerdo, que rapidamente evoluiu para velamento dos dois terços inferiores do HTE. Foi então submetido à drenagem torácica fechada e encaminhado ao nosso serviço.

Paciente referia um episódio de furunculose aos dez anos e um episódio de pneumonia aos 12 anos. Sem história de alergias, etilismo ou tabagismo e sem sintomatologia semelhante à sua em qualquer membro da família. Não havia história ocupacional relevante.

Apresentava-se em regular estado geral, eupnéico, febril (38°C), consciente, normotenso. Notava-se face com a região frontal e a arcada supra-orbital proeminentes e a base do nariz alargada (Figura 1). Semiologia cardíaca normal. Ausculta pulmonar com murmúrio diminuído em base esquerda. Dreno torácico em selo d'água funcionante com líquido turvo, sanguinolento. Sem artrites ou baqueteamento digital. Na admissão, o hemograma evidenciava marcada leucocitose (25.700/mm3) e eosinofilia importante (11%), sendo o perfil imunológico mostrado na Tabela 1. A análise do líquido pleural mostrava a bioquímica com pH = 7,34, albumina = 2,4g/dl, LDH = 7.428U/l, glicose = 43mg/dl e a citologia com 198 células (neutrófilos = 90%, linfócitos = 5%, macrófagos = 5%). As culturas de sangue e do líquido pleural foram negativas, bem como a bacterioscopia do escarro e a pesquisa de parasitas nas fezes em três amostras. As radiografias dos seios da face e do crânio foram normais, assim como o ecocardiograma. Foram realizados ainda teste cutâneo intradérmico para os principais alérgenos inalatórios que foi negativo e teste de DNBT para avaliação da capacidade fagocitária dos neutrófilos que resultou normal.


O paciente evoluiu, após introdução de vancomicina, com desaparecimento da febre, da tosse e da dispnéia, sendo retirado o dreno torácico no sexto dia de internamento. Persistiu, porém, com dor tipo pleurítica em HTE e radiografia compatível com empiema crônico e presença de cistos pulmonares à esquerda (Figura 2), sendo submetido à pleurostomia em base esquerda.


Recebeu alta após quatro semanas de antibioticoterapia com completa resolução do quadro pleural. Durante controle radiológico, em sua última visita ambulatorial, 11 meses após o internamento, apresentava-se sem qualquer sinal ou sintoma de infecção, com total involução dos cistos pulmonares.

DISCUSSÃO

O extenso comprometimento cutâneo por infecções piogênicas recorrentes encontrado nos primeiros casos relatados por Davis et al.(1) foi o que o inspirou a denominar a síndrome, numa alusão ao conhecido personagem bíblico Jó, que, entre outras provações de sua paciência e amor a Deus, teve o corpo recoberto por pústulas(2).

Atualmente, o difícil manuseio dos pacientes com a síndrome de hiperimunoglobulina E está mais associado à dificuldade no estabelecimento de uma base fisiopatológica e terapêutica específica que propriamente no reconhecimento de suas manifestações clínicas.

O diagnóstico é estabelecido e deve ser sempre lembrado na presença de infecções de repetição dos tratos respiratórios superior e inferior e da pele, iniciando-se mais comumente ao nascimento ou na infância, associadas a níveis séricos de IgE pelo menos dez vezes maiores que o limite superior da normalidade (> 2.000UI/ml)(3). Outros achados freqüentes incluem eosinofilia periférica(4), rash eczematóide(2,5), candidíase cutânea(5), alterações dentárias e ósseas(5) e, mais raramente, ceratoconjuntivite(2).

Atualmente, admite-se um conjunto de alterações craniofaciais, com destaque para a proeminência da fronte e do arco superciliar e alargamento da base do nariz, dando um aspecto grosseiro ao rosto, conhecido como "face de Jó"(6).

Não há predominância de sexo ou raça(2), tendo sido identificado um padrão de transmissão autossômica dominante, porém com expressão variável(5).

As anormalidades encontradas sugerem um defeito funcional dos neutrófilos, mais precisamente em sua quimiotaxia, já que a capacidade fagocitária é normal(3,7). Esse déficit de quimioatração seria secundário à disfunção de um grupo de linfócitos T, que também estariam associados à síntese anormal de anticorpos e citocinas(3,5,7). Tais achados não são constantes nem guardam relação com a propensão às infecções(3,8), ficando a síndrome ainda sem etiologia definida.

Passados 34 anos desde a sua primeira descrição, a doença ainda não apresenta um tratamento específico curativo. Drogas como ácido ascórbico, levamisol, cimetidina e fator de transferência que melhoraram in vitro a quimiotaxia dos neutrófilos(2,3,7) não se mostraram eficazes na prevenção das infecções recorrentes. Gama-globulina, plasmaférese(2,7) e, mais recentemente, ciclosporina A(9,10) são opções promissoras que parecem atuar na imunorregulação dos linfócitos, mas que ainda carecem de estudos mais prolongados. Diante disso, a melhor abordagem continua baseando-se no tratamento precoce e na profilaxia prolongada das infecções de repetição.

A intervenção cirúrgica é essencial na drenagem dos abscessos cutâneos e empiemas pleurais.

No seguimento dos pacientes, especial atenção deve ser dada aos cistos pulmonares adquiridos decorrentes das pneumonias de repetição. Nos casos em que estes permanecem cronicamente infectados por bactérias saprofíticas e fungos(12), a ressecção cirúrgica está indicada.

1. Médico residente do 20 ano de Pneumologia.

2. Doutor em Pneumologia, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); Coordenador da Residência de Pneumologia do Hospital de Messejana, Fortaleza, CE.

3. Médico Assistente do Serviço de Pneumologia.

4. Médico do Hospital Regional de Iguatu, CE.

5. Médica residente.

Endereço para correspondência ¾ Ricardo Coelho Reis, Rua Tenente Wilson, 154 ¾ 60850-810 ¾ Fortaleza, CE. Tels. (85) 272-2803/9106-9810; E-mail: sibilo@bol.com.br

Recebido para publicação em 20/6/00. Aprovado, após revisão, em 25/8/00.

  • 1. Davis SD, Schaller J, Wedgwood RJ. Job's syndrome: recurrent, "cold", staphylococcal abscesses. Lancet 1966;1:1013-1015.
  • 2. Leung DY, Geha RS. Clinical and immunologic aspects of the hyperimmunoglobulin E syndrome. Hematol Oncol Clin North Am 1988;2: 91-100.
  • 3. Donabedian H, Gallin JI. The hyperimmunoglobulin E recurrent-infection (Job's) syndrome: a review of the NIH experience and the literature. Medicine (Baltimore) 1983;62:195-208.
  • 4. Buckley RH, Wray BB, Belmaker EZ. Extreme hyperimmunoglobulinemia E and undue susceptibility to infection. Pediatrics 1972;49: 59-70.
  • 5. Grimbacher B, Holland SM, Gallin JI, et al. Hyper-IgE syndrome with recurrent infections an autosomal dominant multisystem disorder. N Engl J Med 1999;340:692-702.
  • 6. Borges WG, Hensley T, Carey JC, Petrak BA, Hill HR. The face of Job. J Pediatr 1998;133:303-305.
  • 7. Salaria M, Singh S, Kumar L. Hyperimmunoglobulin E syndrome. Indian Pediatr 1997;34:827-829.
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  • 12. Merten DF, Buckley RH, Pratt PC, Effmann EL, Grossman H. Hyperimmunoglobulinemia E syndrome: radiographic observations. Radiology 1979;132:71-78.
  • *
    Trabalho realizado no Serviço de Pneumologia do Hospital de Messejana, Fortaleza, CE.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Out 2002
    • Data do Fascículo
      Mar 2001

    Histórico

    • Recebido
      20 Jun 2000
    • Aceito
      25 Ago 2000
    Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Departamento de Patologia, Laboratório de Poluição Atmosférica, Av. Dr. Arnaldo, 455, 01246-903 São Paulo SP Brazil, Tel: +55 11 3060-9281 - São Paulo - SP - Brazil
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