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Hidatidose do esterno e musculatura peitoral

Sternal and pectoral musculature hydatidosis

Resumos

A hidatidose é uma infecção ciclozoonótica causada pela tênia Echinococcus granulosus, cuja forma larvária acomete acidentalmente o homem, formando cistos hidáticos, preferencialmente nos pulmões e no fígado. A hidatidose óssea é um evento raro, caracterizado por crescimento lento e com poucos sintomas. Relata-se o caso de um homem de 36 anos com história de nódulos na parte anterior do tórax havia nove anos. Os exames de diagnóstico por imagem evidenciaram massas expansivas, loculadas e de conteúdo espesso nos músculos peitorais e lesão lítica no esterno. O diagnóstico de hidatidose foi feito na exploração cirúrgica. Recebeu alta sob tratamento com albendazol 2.400mg/dia por 28 dias.

Técnicas de diagnóstico e procedimentos; Equinococose pulmonar; Esterno; Cirurgia


Hydatidosis is a cyclezoonotic infection caused by taenia Echinococcus granulosus, whose larval form accidentally affects men by forming hydatic cysts preferably in the lungs and liver. Osseous hydatidosis is a rare event characterized by slow growth and few symptoms. It is reported on a 36-year-old man who had presented nodes in the anterior thorax for nine years. Imaging diagnostic examinations revealed thick, loculated, expansive masses in the pectoral muscles and sternal lytic lesions. The diagnosis of hydatidosis was established by exploratory surgery. The patient showed good clinical-surgical evolution and was discharged receiving albendazole, 2,400 mg/day, for 28 days.

Diagnostic techniques and procedures; Pulmonary echinococcosis; Surgery


RELATO DE CASO

Hidatidose do esterno e musculatura peitoral* * Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Torácica da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas, RS.

NILTON HAERTEL GOMES1 * Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Torácica da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas, RS. , DÉCIO VALENTE RENCK2 * Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Torácica da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas, RS. , DANIEL ENGEL DA CUNHA3 * Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Torácica da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas, RS. , LEANDRO PRETTO ORLANDINI3 * Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Torácica da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas, RS.

A hidatidose é uma infecção ciclozoonótica causada pela tênia Echinococcus granulosus, cuja forma larvária acomete acidentalmente o homem, formando cistos hidáticos, preferencialmente nos pulmões e no fígado. A hidatidose óssea é um evento raro, caracterizado por crescimento lento e com poucos sintomas. Relata-se o caso de um homem de 36 anos com história de nódulos na parte anterior do tórax havia nove anos. Os exames de diagnóstico por imagem evidenciaram massas expansivas, loculadas e de conteúdo espesso nos músculos peitorais e lesão lítica no esterno. O diagnóstico de hidatidose foi feito na exploração cirúrgica. Recebeu alta sob tratamento com albendazol 2.400mg/dia por 28 dias. (J Pneumol 2001;27(4):223-226)

Sternal and pectoral musculature hydatidosis

Hydatidosis is a cyclezoonotic infection caused by taenia Echinococcus granulosus, whose larval form accidentally affects men by forming hydatic cysts preferably in the lungs and liver. Osseous hydatidosis is a rare event characterized by slow growth and few symptoms. It is reported on a 36-year-old man who had presented nodes in the anterior thorax for nine years. Imaging diagnostic examinations revealed thick, loculated, expansive masses in the pectoral muscles and sternal lytic lesions. The diagnosis of hydatidosis was established by exploratory surgery. The patient showed good clinical-surgical evolution and was discharged receiving albendazole, 2,400 mg/day, for 28 days.

Descritores ¾ Técnicas de diagnóstico e procedimentos. Equinococose pulmonar. Esterno. Cirurgia.
Key words ¾ Diagnostic techniques and procedures. Pulmonary echinococcosis. Surgery. Siglas e abreviaturas utilizadas neste trabalho
TC ¾ Tomografia computadorizada

INTRODUÇÃO

A hidatidose é uma infecção ciclozoonótica causada pela tênia Echinococcus granulosus. Seu ciclo biológico envolve dois hospedeiros: o verme adulto parasita o intestino do cão, enquanto a forma larvária (cisto hidático) acomete os herbívoros e, acidentalmente, o homem. Os cistos hidáticos localizam-se preferentemente nos pulmões e fígado (95% nestas localizações). Raramente, é encontrada em outros sítios como rins, músculos, baço, cérebro e ossos. A hidatidose óssea é rara, menos de 1%.

Relatamos um caso de hidatidose localizada no osso esterno e musculatura peitoral com revisão dos aspectos clínico-radiológicos e das alterações patológicas desta inusitada forma de apresentação da enfermidade.

RELATO DO CASO

Pescador, 36 anos, branco, natural e procedente da cidade de Rio Grande, RS, procurou nosso serviço com queixa de "caroços no peito". O quadro iniciou-se há nove anos, quando surgiu nódulo único em região pré-esternal, junto ao apêndice xifóide, tendo sido ressecado em serviço médico regional, com diagnóstico de cisto sebáceo. Permaneceu assintomático por um ano, quando surgiram dois outros nódulos nas regiões paraesternal direita e esquerda, sendo puncionados no mesmo serviço médico, com posterior desaparecimento das lesões, sem diagnóstico comprovado.

Há quatro anos voltou a apresentar duas nodulações em região peitoral esquerda e uma em região peitoral direita, dolorosas aos esforços físicos. Tais lesões cresceram lentamente sem que o paciente procurasse auxílio médico por um período de três anos. Devido ao aumento das lesões, procurou um serviço especializado, sendo realizada exérese de uma das lesões, com diagnóstico anatomopatológico de granuloma de corpo estranho como reação a parasita, provavelmente cisticerco, sendo, então, reencaminhado ao serviço de origem.

Internou-se no Serviço de Cirurgia Torácica da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas, RS, para avaliação. Apresentava-se em bom estado geral, sinais vitais normais e sem linfonodos palpáveis. À inspeção notou-se uma protrusão da porção inferior do esterno e abaulamento nas regiões peitorais, onde eram palpadas massas profundas de consistência elástica, superfície irregular, pouco móveis e indolores; a pele que as recobria era móvel.

À ecografia as múltiplas lesões eram expansivas, loculadas, circunscritas e de conteúdo espesso, de natureza provavelmente inflamatória, situadas no plano subcutâneo peitoral bilateral. A tomografia linear de esterno mostrava um defeito de modelagem, aumento de volume com áreas líticas internas no segmento distal do osso (Figura 1). A cintilografia óssea mostrava hipercaptação anormal do esterno. A tomografia computadorizada (TC) mostrava lesão tumefaciente caracterizada por coleções multisseptadas nos músculos peitorais à direita, estendendo-se através da linha média até a margem inferior do músculo peitoral maior esquerdo. Observava-se lesão óssea, lítica, permeando o centro do esterno. Discreto infiltrado na gordura retroesternal (Figura 2). As hipóteses diagnósticas foram de osteomielite do esterno em contigüidade com partes moles, sarcoma e plasmocitoma.



À exploração cirúrgica bilateral da musculatura peitoral foram retiradas inúmeras hidátides viáveis (Figuras 3 e 4). Num segundo tempo cirúrgico foi abordado o esterno por incisão longitudinal mediana, encontrando-se abaulamento do periósteo íntegro, que recobria uma cavidade multiloculada na porção inferior do corpo esternal, com destruição de suas tábuas ósseas anterior e posterior. As hidátides foram retiradas em permeio a material inflamatório, que foi enviado para cultura, a qual não mostrou crescimento bacteriano. O grande orifício esternal foi curetado, lavado com cloreto de sódio a 24% e ocluído com rotação de retalho do músculo peitoral maior esquerdo. O paciente apresentou boa evolução clínico-cirúrgica, recebendo alta sob uso de albendazol 400mg 8/8h por 28 dias.


DISCUSSÃO

A equinococose consiste em uma doença parasitária causada pelo estágio larvário do Equinococcus granulosus, E. multiloculares, E. oligarthrus e E. vogeli. O E. granulosus, produtor de lesões císticas uniloculares, é prevalente em áreas de criação de gado em associação a cães e encontra-se na Austrália, Argentina, Chile, África, Europa Oriental, Oriente Médio, Nova Zelândia e Uruguai. O E. multiloculares, que produz lesões alveolares multiloculadas, em geral de invasão local, encontra-se em regiões árticas e subárticas, inclusive Canadá e Norte da Europa e Ásia. E. vogeli causa hidatidose policística e é encontrado nas Américas Central e do Sul. A equinococose raramente é encontrada nos Estados Unidos(1). Das espécies envolvidas com a doença, o E. granulosus consiste no mais comum causador da doença(2,3).

O verme adulto vive no intestino delgado de cães (hospedeiro definitivo) e o cisto hidático é encontrado, principalmente, no fígado e pulmões de ovinos, bovinos, suínos, caprinos, etc. (hospedeiros intermediários). No homem os cistos localizam-se, principalmente, no fígado, pulmões e outros órgãos, não havendo relatos de hidatidose em testículos e olhos(4). Os ovos eliminados junto às fezes dos cães contaminam o ambiente (pastagens, solo e alimentos, p. ex.), onde se mantêm viáveis por mais de um mês. Os hospedeiros intermediários, acidentalmente o homem, ingerem os ovos junto com o alimento. A dissolução do embrióforo, a ativação e liberação do embrião (25 micra) dá-se através do estímulo do suco gástrico. Dessa forma, quando os ovos chegam ao duodeno, a oncosfera é liberada e entra na circulação portal, atingindo os sinusóides hepáticos. Ocasionalmente, atravessam os sinusóides hepáticos (30 micra) e atingem a circulação pulmonar (12 micra) e/ou sistêmica, disseminando-se por outros órgãos, inclusive ossos. A partir daí, desenvolve-se o cisto hidático, forma larval do parasita. O ciclo biológico completa-se quando o cão ingere as vísceras do hospedeiro intermediário e desenvolve em seu intestino a forma adulta do parasita(5,6).

A hidatidose óssea é uma entidade rara, sempre primária, compreendendo 1% das infecções(7,8). Em qualquer órgão o crescimento da hidátide é um processo lento, particularmente nos ossos, devido à rígida restrição mecânica(2). A estrutura do cisto hidático é a mesma em todos os órgãos parasitados: a compressão dos tecidos do órgão parasitado, provocada pelo crescimento da hidátide, leva à formação de um pericisto. Porém, o sistema esquelético constitui uma exceção, onde não há pericisto. O embrião exacanto, que escapou do sistema capilar hepático e pulmonar, chega por via arterial à zona mais vascularizada do osso. A formação das hidátides pressiona as trabéculas, levando à absorção óssea e oclusão das arteríolas, seguida de osteólise e necrose do tipo caseoso circundando vesículas hidáticas pequenas e múltiplas. Esse processo alcança o periósteo, que não oferece resistência alguma à expansão da lesão, podendo estender-se ao longo dos planos fasciais. Os ossos mais comumente envolvidos são as vértebras, ossos do quadril, úmero, tíbia, fíbula, fêmur e crânio(3).

As manifestações clínicas variam de acordo com o osso afetado, desde a destruição óssea até às fraturas patológicas. Desenvolvendo-se muito lentamente, a sintomatologia decorrente da hidatidose óssea torna-se evidente muitos anos após a infecção inicial(9). A avaliação diagnóstica inicia-se pelo estudo radiológico (radiografia simples e TC). Os achados radiológicos são divididos em dois estágios, inicial e tardio. O achado inicial consiste em absorção irregular do osso, o que pode ser confundido com osteomielite. Nos estágios tardios há destruição cística do osso ("favo de mel"), podendo ser confundido com mieloma ou osteíte fibrosa cística. O diagnóstico pode ser complementado por testes sorológicos para a detecção de anticorpos (imunoeletroforese ¾ IFE5, imunodifusão ¾ DD5, IHA(6,7)), podendo ser estes negativos na doença óssea, pois a equinococose óssea não tem grande atividade antigênica, ao contrário da encontrada em outros tecidos. O diagnóstico definitivo consiste na análise anatomopatológica do material curetado do osso(8).

O tratamento de escolha para equinococose óssea é, historicamente, a ressecção cirúrgica. Melhores resultados terapêuticos são encontrados com associação de ressecção cirúrgica e instilação transoperatória com solução salina hipertônica ou água oxigenada a dez volumes. O emprego de albendazol na doença intra-óssea foi revista por Szypryt et al.(10), que trataram cinco pacientes com a combinação de cirurgia e quimioterapia, com boa resposta parasitostática. A dose preconizada de albendazol (metil 5(propil-tio 1H benzimidazol-2 yl) carbonato) é de 1.200mg/dia por um período de 28 dias.

No seguimento dos pacientes submetidos ao tratamento cirúrgico para a doença hidática, considera-se livre de recidiva local aquele com dois anos de pós-operatório sem manifestação clínico-radiológica(4). Na revisão bibliográfica dos últimos dez anos não há referências de hidatidose de esterno; portanto, não dispomos de dados prognósticos comparativos em relação ao tratamento instituído.

Em conclusão, relatamos um caso de equinococose do osso esterno, patologia raramente encontrada em ossos, ainda sem referências na literatura mundial com essa localização. Neste artigo revisaram-se a patogênese, patologia, diagnóstico e seu tratamento.

1. Professor de Cirurgia Torácica da Universidade Federal de Pelotas e da Universidade Católica de Pelotas; Chefe do Serviço de Cirurgia Torácica da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas.

2. Professor de Radiologia, Departamento de Medicina Especializada, Universidade Federal de Pelotas; Responsável pelo Serviço de Tomografia Computadorizada da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas.

3. Médico Residente de Cirurgia Geral do Hospital-Escola da Universidade Federal de Pelotas.

Endereço para correspondência ¾ Rua Victor Valpirio, 219 ¾ 96020-250 ¾ Pelotas, RS. Tel. (53) 223-0491; Tel./Fax (53) 273-3163; E-mail: ngomesx@zaz.com.br

Recebido para publicação em 31/10/00. Aprovado, após revisão, em 25/1/01.

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  • 2. Marcial-Rojas R, Poole J. Equinococcosis. Patology of protozoal and helminthic diseases. 2nd ed. Baltimore: Williams and Wilkins, 1967; 635-657.
  • 3. Jaffe H. Metabolic, degenerative, and inflammatory diseases of bones and joints. Philadelphia: Lea and Febiger, 1972;1072-1077.
  • 4. Gomes NH. Tratamento cirúrgico da hidatidose torácica ž Uma opção cirúrgica. [Tese] Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1990.
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  • 6. Neves DP. Patasitologia humana. 8a ed. São Paulo: Atheneu, 1991; 23:243-250.
  • 7. Kourias B. Der genwürtige Stand der chirurgischen Behandlung des Leberechinococcus. Chirurg 1961;32:145.
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  • 10. Szypryt EP, Morris DC, Mullholland RC. Combined chemotherapy and surgery for hydatic bone disease. J Bone Joint Surg [Br] 1987;69: 141-144.
  • *
    Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Torácica da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas, RS.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Out 2002
    • Data do Fascículo
      Jul 2001

    Histórico

    • Aceito
      25 Jan 2001
    • Recebido
      31 Out 2000
    Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Departamento de Patologia, Laboratório de Poluição Atmosférica, Av. Dr. Arnaldo, 455, 01246-903 São Paulo SP Brazil, Tel: +55 11 3060-9281 - São Paulo - SP - Brazil
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