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A tuberculose e o casamento

CARTAS AO EDITOR

A tuberculose e o casamento

Oh héticas maravilhosas

Dos tempos quentes do Romantismo

Maçãs coradas olhos de abismo

Donas perversas e perigosas,

Oh héticas maravilhosas

Não vos compreendo, sou de outras eras

Fazei depressa o pneumotórax

Mulheres de Anto e de Dumas Filho

E então seremos bem mais felizes

Eu sem receio do vosso brilho

Vós sem bacilos nem hemoptises

Oh héticas maravilhosas

("Acalanto da Pensão Azul", Mário de Andrade)

Na grande maioria dos casos, a tuberculose é adquirida por contágio direto, inter-humano, pela via aérea. O contato íntimo, repetido, com tuberculoso bacilífero aumenta substancialmente a possibilidade de contaminação.

O perigo representado pelo contato próximo com doentes tuberculosos não poupou nem o célebre inventor do estetoscópio. René Théophile Hyacinthe Laënnec, renomado clínico e tisiólogo francês, seguia o costume da época e auscultava seus doentes aplicando a orelha diretamente sobre o tórax, até que, em 1816, consultado por uma jovem com sintomas de doença cardíaca, considerou-se impedido de realizar a auscultação direta devido à idade e sexo da paciente. Ocorreu-lhe, então, enrolar uma folha de papel de forma a produzir um cilindro e aplicar uma extremidade sobre a região precordial da enferma e a outra sobre sua própria orelha. Para surpresa sua, ouviu com inesperada clareza os batimentos cardíacos da jovem. O novo instrumento postou o competente médico, e aqueles que viriam depois, a pouco mais de 30 centímetros de seus doentes, distância sem dúvida mais respeitosa, porém ainda de indubitável risco para contrair doenças transmitidas pela inalação de gotículas infectantes lançadas no ambiente pela tosse. Laënnec sucumbiu à tuberculose em 1825.

Diante de paciente bacilífero, impõem-se medidas de prevenção da transmissão: afastamento do local de trabalho ou escola, uso de máscara comum por parte do doente e de máscara N95 pelos profissionais de saúde, cobertura da boca e nariz ao tossir ou espirrar e, nos casos de internação, quarto privativo com pressão negativa.

Há pouco mais de 50 anos, devido à ineficácia relativa da maioria dos tratamentos no que diz respeito à rápida interrupção da transmissão, o grosso dos tísicos era isolado em sanatórios. Tais internações eram consideradas "urgências sociais" e tinham precedência sobre as necessidades do indivíduo de conviver com seus familiares, afastando pais e filhos, irmãos, amigos, amantes e cônjuges.

A tísica apartava os amantes quando apenas um adoecia e partia sem o outro para o "mundo dos tuberculosos":

Foi para melhores climas,

Que o médico em voz austera:

– É já levá-la, – dissera,

Para as montanhas de Minas.

Ficou deserta a casinha,

Inda a lembrar tristemente

O vulto esguio da doente

E o longo adeus que lhe ouvira.

O noivo que mal sabia

Da noiva a sorte funesta,

Com o coração todo em festa,

De longe a abraçá-la vinha.

Dão-lhe a nova partida,

E ao verem que lhe rebentam

As lágrimas, acrescentam:

– Foi para melhores climas!

Lá vai às serras de Minas,

Lá vai da noiva em procura;

Ora achá-la conjetura

Morta, e ora risonha e viva.

Depois de horas de aflitiva

Impaciência e pena estranha,

Vê, montanha por montanha,

Longe as montanhas de Minas.

Às palmeiras que lá em cima

Segredam com a imensidade,

Pergunta em louca ansiedade:

– Ela está morta ou está viva?

E as palmeiras no alto erguidas

Respondem-lhe, balouçando,

E o azul do céu apontando:

– Foi para melhores climas!

(Antonio Mariano Alberto de Oliveira, Poesias)

Quando ambos adoeciam, ficavam ainda mais próximos:

...Ven

Y myra!... gracias al cielo,

Estoy tísica tambiém

(Francisco Villaespesa, "Las viejas gemas")

Na segunda edição do livro "Phtisiologie du Médecin Praticien" (1947), que recentemente tive a honra de receber das mãos do Professor Gilles Henry Duchéne, os autores M. Bariéty e G. Brouet fizeram questão de incluir um capítulo intitulado "Tuberculose e Sociedade", com referência à lei francesa de 16 de dezembro de 1942, que preceituava que o oficial de estado civil procederia à publicação com vistas ao casamento após a apresentação, por parte de cada um dos futuros esposos, de atestado médico datado de menos de um mês, certificando que os mesmos haviam sido examinados para fins de contrair matrimônio. O atestado pré-nupcial só poderia ser emitido após a realização de radioscopia pulmonar e das reações de Bordet-Wassermann. Se o médico considerasse que a saúde do noivo não era compatível com o casamento, não lhe restava outra opção senão a de recusar-lhe o certificado e tentar convencê-lo a renunciar benevolamente ao seu projeto. Em tese, o casamento deveria ser formalmente proibido a todo tuberculoso evolutivo. A autorização para o casamento somente seria dada muito tempo após a cura e estava na dependência de exames clínicos, radiológicos, bacterioscópicos e do tipo de vida do futuro casal.

O rigor da citada lei francesa visava proteger, principalmente, a futura mãe e evitar o aborto terapêutico, praticado nos casos de tuberculose de gravidade média, quando o pneumotórax era impossível ou ineficaz e as lesões mostravam sinais claros de agravamento no transcorrer da gestação. Além disso, o aleitamento pela mãe era, a princípio, proibido, e temia-se a crise social que viria a ocorrer caso houvesse aumento substancial do número de recém-nascidos órfãos ou simplesmente privados dos cuidados maternos.

A história da tuberculose mudou após a obtenção da estreptomicina por Selman Waksman, em 1944, e dos demais fármacos desenvolvidos nos anos seguintes, capazes de combater o Mycobacterium tuberculosis. A mortalidade, que alcançara a assustadora taxa de 500 por 100.000 habitantes na década de 40, despencou rapidamente, em particular nos países do Primeiro Mundo, onde, na década de 60, chegou-se a acreditar na possibilidade da erradicação da doença.

Os tísicos passaram a ser tratados predominantemente fora dos sanatórios, junto de seus familiares. O tratamento pouco ou nada supervisionado transferiu grande parte da responsabilidade para o doente que, na maioria das vezes, reassume rapidamente suas atividades habituais, comparece ao serviço de saúde apenas para as consultas de controle e obtenção dos medicamentos e convive muito menos com outros tuberculosos.

Os medicamentos modernos tornaram obsoletas normas ou leis que controlavam a vida dos tuberculosos. Os amantes hodiernos raramente se distanciam de seus amados tossidores e, às vezes, até compartilham os bacilos de Koch.

Infelizmente, o surgimento da síndrome da imunodeficiência adquirida, a vida miserável de grande parcela da população dos países pobres ou em desenvolvimento e o descuido dos serviços de saúde proporcionaram condições favoráveis ao recrudescimento da tuberculose. Registraram-se cerca de 10 milhões de doentes novos no mundo, no ano de 2000, lutando para não se juntarem aos 30 milhões de falecidos por tuberculose na década de 90.

Projeções realizadas pela OMS não são nada animadoras, visto que vislumbram o agravamento da epidemia de tuberculose no mundo, caso medidas drásticas internacionais não sejam tomadas imediatamente.

Será a volta dos sanatórios e o fim dos casamentos héticos?

RUBENS BEDRIKOW

Clínico Geral, Membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina

REFERÊNCIAS

1. Bariéty M, Brouet G. Phtisiologie du médecin praticien. 2ieme ed. Paris: Masson & Cie. Lausanne: F. Roth & Cie, 1947.

2. Carmichael AG, Ratzan RM. Medicine: a treasury of art and literature. 2nd ed. New York: Beaux Arts Editions, 1991.

3. Lyons AS, Petrucelli RJ. Medicine: an illustrated history. 2nd ed. New York: Abradale Press, Harry N. Abrams, Inc., Publishers, 1987.

4. Montenegro TH. Tuberculose e literatura. 2ª ed. Rio de Janeiro: A Casa do Livro, 1971.

5. Rosemberg J. Tuberculose – Panorama global. Óbices para o seu controle. 2ª ed. Fortaleza, Ceará: Secretaria de Estado da Saúde, 1999.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Nov 2002
  • Data do Fascículo
    Jun 2002
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