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Perfil dos pacientes portadores de Mycobacterium sp.

EDITORIAL

Perfil dos pacientes portadores de Mycobacterium sp.

Afrânio Lineu Kritski

Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, RJ

Uma descrição original acerca dos resultados observados em um laboratório de micobactéria de um hospital universitário e sua inserção nas atividades de controle de tuberculose numa região metropolitana, em nosso meio, publicada por Froes GC et al.(1) neste periódico, é de elevada relevância e pertinência. Deve-se ressaltar que nas últimas duas décadas, na discussão sobre as atividades de um Laboratório de Micobactéria em nosso país, tem sido priorizada a implementação e a otimização de treinamento e controle de qualidade apenas de laboratórios de saúde pública (Lacens). No decorrer dos planos emergenciais ou não, de combate à tuberculose, veiculados pelo Ministério da Saúde, nesse período, não foi dado o devido o destaque à grande contribuição que os laboratórios de micobactéria de hospitais gerais, universitários ou não, podem de fato proporcionar no controle da TB, principalmente em grandes centros urbanos, onde o diagnóstico da TB usualmente é realizado em nível hospitalar.(2-4)

São também escassos os relatos publicados, em revistas de grande circulação, acerca da implantação de programas de controle de TB hospitalar acoplados a laboratórios de micobactérias, em países em desenvolvimento. Isso decorre do fato de que, nesses países, os formuladores de políticas públicas vêm seguindo a tendência internacional da década de 70 e têm preferido investir na intensificação e otimização de atividades de controle da TB em unidades primárias de saúde e, mais recentemente, no Brasil, com a implantação dos programas de saúde da família (PSF).(4,5) Entretanto, nos últimos anos, tornou-se consenso mesmo entre organizações internacionais que, em países que vêm implantando a reforma sanitária, é fundamental que na reorganização do sistema de saúde seja priorizado também a hierarquização e identificação de estratégias e financiamento adequados para que as unidades de referência de nível secundário e terciário, em sua grande maioria, hospitais públicos, possam de fato servir de referência e contra-referência para as unidades de saúde de menor complexidade.(6) E, no que tange ao controle da tuberculose, torna-se urgente a implantação de núcleos de vigilância em unidades de emergência que apenas diagnostiquem TB e de programas de controle de TB hospitalar nas unidades que diagnostiquem e tratem pacientes com TB(7). Nessas circunstâncias, é fundamental a participação do laboratório de micobactéria, pois a demanda de exames micobacteriológicos nessas unidades é cerca de 5 a 10 vezes maior do que aquela observada em unidades de nível primário.

Mesmo após a publicação recente das últimas recomendações do Ministério da Saúde,(4,5) que sinalizam, pela primeira vez, um papel relevante do atendimento de nível secundário e terciário, percebe-se que se tornou urgente a agilização de tais estratégias de controle de TB nessas unidades hospitalares, principalmente em grandes centros urbanos, onde:

a) é baixa ainda a implantação de PSF e, portanto, persistindo um excesso de atendimento de pacientes sob suspeita de TB ativa nas unidades de emergência ou pronto atendimento;(7,8,9)

b) 26% a 40% dos pacientes notificados de TB são oriundos de unidade hospitalar, sem laboratório de micobactéria ou atividades coordenadas de controle de TB;(8,9)

c) cerca de 30% dos pacientes cujo diagnostico de TB foi de probabilidade (sem confirmação bacteriológica) foram tratados de modo equivocado, isto é, tinham outra enfermidade;(10)

d) cerca de 42% dos pacientes portadores de micobacterioses não tiveram iniciado seus tratamentos, pois desconheciam o diagnóstico, mostrando assim a desorganização no controle da tuberculose em nível hospitalar;(11)

e) ocorrem cerca de 80% dos óbitos associados a TB;(9,12)

f) em cerca de 75% dos óbitos, o exame micobacteriológico não foi realizado, pela ausência de laboratório de micobactéria que disponibilize exames de cultura;(9,12)

g) é elevada a co-infecção com HIV e outras co-morbidades com freqüente retardo diagnóstico devido a apresentação atípica e/ou baixo nível de suspeição de TB entre os profissionais de saúde;(8,9,13)

h) os Lacens não conseguem dar conta da demanda de exames laboratoriais (cultura para micobactéria) necessários para o diagnostico de TB paucibacilar em pacientes hospitalizados.

Aspectos que foram ressaltados pelos autores Froes GC et al.:

a) A realização do estudo seria mais fácil caso tivessem sido introduzidas as boas práticas clínicas na rotina de investigação de pacientes em unidades hospitalares, com preenchimento adequado dos prontuários e seguimento de protocolos, ou manuais de condutas no atendimento de pacientes sob suspeita de TB ou TB confirmada;

b) O diagnóstico de 66 casos de micobactérias foi possível com a realização de 2.279 culturas para micobactérias, oriundos de 700 indivíduos investigados;

c) Entre os 66 pacientes diagnosticados no Hospital das Clinicas, 21% eram oriundos do pronto atendimento e 20% das enfermarias. Tais dados refletem as deficiências no atendimento primário, eleva a casuística de morbimortalidade e expõe os profissionais de saúde ao risco de infecção pelo Mtb, já que a maioria dos hospitais não possui estratégias de biossegurança;

d) A análise do seguimento clínico dos oito (15%) pacientes que não tinham conhecimento do diagnóstico de tuberculose mostrou que, em seis, o tratamento anti-TB não foi possível (três não foram encontrados e três haviam evoluído para óbito);

e) Cerca de 46% dos pacientes eram infectados pelo HIV; em razão da elevada morbiletalidade observada nesses pacientes, torna-se necessária a implantação de novas técnicas efetivas e rápidas para o diagnóstico da tuberculose em unidades hospitalares de referência;

f) A baixa conscientização dos profissionais de saúde e a ausência de uma estrutura clínica organizada integrada com o laboratório de micobactéria foram os maiores responsáveis pelo retardo diagnóstico;

g) Primeiro estudo nacional que demonstrou a realização de pesquisa operacional conduzida por profissionais que atuam em nível laboratorial, juntamente com aqueles da área clínica, com o objetivo de identificar respostas para os problemas da prática clínico-laboratorial, num hospital terciário.

Estudos operacionais que integrem atividades laboratoriais e clínicas, como a veiculada neste artigo, ao revelar ao leitor os problemas e as soluções encontradas, demonstra que, mesmo os profissionais que prestam serviços, desde que os procedimentos laboratoriais e/ou clínicos cujos procedimentos operacionais padrões (POPs) sejam cumpridos, podem refletir, analisar os seus próprios dados e, de fato, realizar PESQUISA OPERACIONAL. Os resultados obtidos com essas pesquisas são de extrema relevância para um país onde os técnicos de nível superior não estão acostumados e nem se acham aptos a realizar pesquisa e produzir conhecimento científico na área da saúde. Além disso, tais resultados tendem a fornecer informações necessárias para a execução de novas intervenções e/ou abordagens, bem como convencer os gestores municipais e/ou estaduais de sua exeqüibilidade e pertinência. Desse modo, passamos a valorizar mais a técnica e menos a politização das interações na área da saúde.

E, para finalizar, merece destaque o movimento salutar de profissionais da Universidade brasileira, pois, ao realizarem atividades de extensão universitária, passam a promover uma atuação conjunta com profissionais da rede de serviços no combate de enfermidade prevalente em nosso meio, e usualmente negligenciada.

Referências

1. Froes GC, Coutinho RL, Nardy de Ávila M, Cançado LR, Spindola de Miranda S. Perfil e seguimento dos pacientes portadores de Mycobacterium sp. do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais. J Pneumol 2003;29:365-70.

2. Kritski AL, Ruffino-Netto A. Health sector reform in Brazil: impact on tuberculosis control and perspectives. Int J Tuberc Lung Dis 2000;4: 622-6.

3. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Centro de Referência Prof. Hélio Fraga/Manual de bacteriologia da tuberculose. 2ª ed., Rio de Janeiro, 1994.

4. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Centro de Referência Prof. Hélio Fraga/ Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. Controle da tuberculose – Uma proposta de integração ensino-serviço. 5ª ed., Rio de Janeiro, 2002.

5. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Tuberculose Guia de Vigilância epidemiológica, Brasília, 2002.

6. World Health Organization (WHO). Report 2003 www.WHO/CDS/TB/2003.

7. Muzy de Souza GR, Gonçalves M, Carvalho ACC. Controle de infecção hospitalar por tuberculose. Pulmão RJ 1997;6:220-7.

8. Brito L. Tuberculose nosocomial: medidas de controle de engenharia. Boletim de Pneumologia Sanitária, 2001;9:33-50.

9. Galesi V. Tuberculose em hospitais na cidade de São Paulo. Tese de Doutorado Universidade de São Paulo, 2003 (no prelo).

10. Kritski AL, Conde MB, Muzy de Souza GR. Tuberculose. Do Ambulatório à Enfermaria. Ed. Kritski AL. 2ª ed. São Paulo: Editora Atheneu, 2000;212.

11. Anjos Moreira J, Froes GC, Spindola de Miranda S. Cases of tuberculosis diagnosed at Federal University Hospital/Belo Horizonte/MG/Brazil 33rd World Conference on Lung Health of the International Union Against Tuberculosis and Lung Disease (IUATLD). Montreal, Canada, 6-10 October 2002. Int J Tuberc Lung Dis. 2002 Oct;6(Suppl 1):1-210.

12. Selig L, Belo MT, Teixeira EG, Cunha AJ, Brito R, Sanches K, Luna AL, Muller M, Gamba C, Belo C, Vento F, Trajman A. The study of tuberculosis-attributed deaths as a tool for disease control planning in Rio de Janeiro, Brazil. Int J Tuberc Lung Dis. 2003; 7:855-9.

13. Machado de Lacerda AP. Tuberculose e Infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Humana: Estudo Descritivo da Co-infecção antes e depois da introdução do Esquema HAART num Hospital de Referência no período de 1995 a 2000. Dissertação de Mestrado, UFRJ, Faculdade de Medicina, 2002. 115p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jun 2004
  • Data do Fascículo
    Dez 2003
Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Departamento de Patologia, Laboratório de Poluição Atmosférica, Av. Dr. Arnaldo, 455, 01246-903 São Paulo SP Brazil, Tel: +55 11 3060-9281 - São Paulo - SP - Brazil
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