Acessibilidade / Reportar erro

Tuberculose refratária disseminada com acometimento do tendão bicipital em paciente imunocompetente

Disseminated refractary tuberculosis with biceps tendon involvement in an immunocompetent patient

Resumos

OBJETIVO: Relatar um caso raro de tuberculose disseminada em paciente imunocompetente, que evoluiu, durante o tratamento medicamentoso padrão, com envolvimento do tendão da porção longa do bíceps e da articulação do ombro. MÉTODOS: À primeira avaliação, o diagnóstico correto não foi feito e o paciente foi tratado com fisioterapia para tendinopatia do manguito rotador. Entretanto, apresentou rápida formação de massa na região anterior do terço proximal do braço e piora da dor. A punção da massa revelou líquido amarelado, cuja análise laboratorial confirmou tratar-se de infecção por M. tuberculosis. RESULTADOS: O paciente foi tratado com desbridamento cirúrgico e troca do esquema medicamentoso e evoluiu com resolução do quadro infeccioso e melhora completa da função do ombro direito. CONCLUSÃO: Devido a sua alta prevalência no Brasil, a tuberculose deve sempre ser considerada no diagnóstico diferencial dos casos de comprometimento crônico e progressivo das articulações, ossos, músculos, tendões e bursas, mesmo em indivíduos imunocompetentes.

Tuberculose osteoarticular; Ombro; Manguito rotador; Infecção


OBJECTIVE: The authors report a rare case of disseminated tuberculosis which had compromised the long head of biceps tendon and shoulder joint, during standard drug therapy. METHODS: On a first sight, the accurate diagnosis wasn't accomplished and the patient had been treated with physiotherapy for rotator cuff tear. However, the patient presented with a fast growing mass in anterior region of the proximal third of the arm, complaining of pain increase. Aspirative punction of the mass revealed a yellow fluid and the laboratorial analysis confirmed infection by M. Tuberculosis. The patient was treated with surgical debridement and his drug therapy was changed. RESULTS: Resolution of infectious status and complete shoulder function restoration was succeeded. CONCLUSION: Due to its high prevalence in Brazil, tuberculosis must always be considered as a possible cause of inflammatory joint disease, even in immunocompetent patients.

Tuberculosis osteoarticular; Shoulder; Rotator cuff; Infection


RELATO DE CASO

Tuberculose refratária disseminada com acometimento do tendão bicipital em paciente imunocompetente

Disseminated refractary tuberculosis with biceps tendon involvement in an immunocompetent patient

Marcelo dos Reis OliveiraI; Márcio SchieferII; Marcos Britto da SilvaIII; César FontenelleIV; Yonder Archanjo Ching-San JúniorV; José Sérgio FrancoVI

IResidente em Ortopedia e Traumatologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), RJ, Brasil

IIMembro do Grupo de Ombro e Cotovelo do HUCFF - UFRJ. Médico Ortopedista do Instituto Nacional de Traumato-ortopedia (INTO), RJ, Brasil

IIIMédico Assistente do HUCFF - UFRJ (Grupo de Ombro e Cotovelo). Mestre em Ortopedia e Traumatologia pela UFRJ, RJ, Brasil

IVChefe de Clínica e Coordenador do Programa de Residência Médica do STO-HUCFF-UFRJ. Mestre em Ortopedia e Traumatologia pela UFRJ, RJ, Brasil

VResidente (R2) em Ortopedia e Traumatologia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF) - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), RJ, Brasil

VIChefe do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da UFRJ. Professor Adjunto da Faculdade de Medicina da UFRJ, RJ, Brasil

Correspondência Correspondência: Av. Afrânio de Melo Franco, 141/110 CEP: 22430-060 - Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2274-3244; tele/fax: (21) 2274-2561 E-mail: marcioschiefer@hotmail.com

RESUMO

OBJETIVO: Relatar um caso raro de tuberculose disseminada em paciente imunocompetente, que evoluiu, durante o tratamento medicamentoso padrão, com envolvimento do tendão da porção longa do bíceps e da articulação do ombro.

MÉTODOS: À primeira avaliação, o diagnóstico correto não foi feito e o paciente foi tratado com fisioterapia para tendinopatia do manguito rotador. Entretanto, apresentou rápida formação de massa na região anterior do terço proximal do braço e piora da dor. A punção da massa revelou líquido amarelado, cuja análise laboratorial confirmou tratar-se de infecção por M. tuberculosis.

RESULTADOS: O paciente foi tratado com desbridamento cirúrgico e troca do esquema medicamentoso e evoluiu com resolução do quadro infeccioso e melhora completa da função do ombro direito.

CONCLUSÃO: Devido a sua alta prevalência no Brasil, a tuberculose deve sempre ser considerada no diagnóstico diferencial dos casos de comprometimento crônico e progressivo das articulações, ossos, músculos, tendões e bursas, mesmo em indivíduos imunocompetentes.

Descritores: Tuberculose osteoarticular; Ombro; Manguito rotador; Infecção

SUMMARY

OBJECTIVE: The authors report a rare case of disseminated tuberculosis which had compromised the long head of biceps tendon and shoulder joint, during standard drug therapy.

METHODS: On a first sight, the accurate diagnosis wasn't accomplished and the patient had been treated with physiotherapy for rotator cuff tear. However, the patient presented with a fast growing mass in anterior region of the proximal third of the arm, complaining of pain increase. Aspirative punction of the mass revealed a yellow fluid and the laboratorial analysis confirmed infection by M. Tuberculosis. The patient was treated with surgical debridement and his drug therapy was changed.

RESULTS: Resolution of infectious status and complete shoulder function restoration was succeeded.

CONCLUSION: Due to its high prevalence in Brazil, tuberculosis must always be considered as a possible cause of inflammatory joint disease, even in immunocompetent patients.

Keywords: Tuberculosis osteoarticular; Shoulder; Rotator cuff; Infection

INTRODUÇÃO

Há séculos, a tuberculose aflige a humanidade(1), sendo considerada a principal causa de morte devido a um único agente infeccioso em adultos em todo mundo, segundo dados da OMS(2). O Brasil ocupa o 14º lugar entre os 23 países responsáveis por 80% do total de casos no mundo. Fontes do Ministério da Saúde estimam prevalência no país de 58 casos/100.000 habitantes, com cerca de 50 milhões de infectados, além de 111.000 casos novos e 6.000 óbitos por ano(3).

A incidência da infecção por Mycobacterium tuberculosis vem aumentando, tanto nos países desenvolvidos quantos nos países em desenvolvimento, devido aos seguintes fatores: aumento do número de pacientes imunodeprimidos; resistência a drogas; envelhecimento populacional; e exposição ocupacional do profissional de saúde(4). Entretanto, o acometimento osteoarticular é infrequente e ocorre em menos de 5% de todas as formas de tuberculose(5). O comprometimento ósseo é predominante e a coluna vertebral é a região mais frequentemente acometida(6). O envolvimento articular é ainda menos usual e, em 50 a 73%, ocorre nas articulações de carga, como quadril e joelho(7-9). O ombro raramente é acometido(6,7).

Relatamos um caso de tuberculose disseminada, em paciente imunocompetente, com acometimento musculoesquelético, envolvendo a articulação do ombro e, principalmente, a bainha do tendão bicipital.

RELATO DO CASO

J.V.S., masculino, 41 anos de idade, pedreiro, branco, natural da Paraíba, residente no Rio de Janeiro, compareceu ao ambulatório de Ortopedia do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (HUCFF-UFRJ) no 47º dia de tratamento para tuberculose disseminada (acometimento pleural e hepático) com esquema RHZ (rifampicina, isoniazida e pirazinamida), queixando-se de dor no ombro direito havia cerca de um ano, após trauma decorrente de queda da própria altura. A dor inicialmente era leve e intermitente, localizada na região anterior do ombro direito e não limitava suas atividades diárias. Em cerca de 20 dias antecedentes à avaliação, houve aumento da intensidade da dor, que se tornou constante, com piora noturna e limitante das atividades diárias.

Ao exame físico, tinha elevação ativa de 110º, rotação externa ativa de 60º e rotação interna ativa ao nível da quarta vértebra lombar. Relatava dor difusa à mobilização. Apresentava massa visível na região anterior do terço médio do braço direito, sem sinais flogísticos. À palpação, era móvel, tinha consistência amolecida e limites bem definidos. Os testes de Neer(10), Yocum(11) e Hawkins(12) foram positivos; teste de O'Brien(13) e compressão acromioclavicular, indolores; teste de Speed(14) e teste de Yergason(15), negativos; queixava-se de dor à palpação do sulco intertubercular. A realização das manobras para avaliação da integridade do manguito rotador foi dificultada pela dor intensa.

Na ocasião, trouxe laudo de ultrassonografia do ombro, realizada em outra instituição, que descrevia "discreta irregularidade da superfície óssea articular, rotura completa do manguito rotador, espessamento e heterogenicidade do manguito rotador compatível com tendinose, presença de líquido de conteúdo espesso junto à bainha do tendão da cabeça longa do bíceps e na bursa subdeltoidiana. Bursite hemorrágica? Proliferação sinovial".

À época, o diagnóstico clínico no ambulatório foi de lesão do manguito rotador com tendinopatia do bíceps associada. Foi solicitado exame de ressonância magnética e o paciente foi encaminhado à fisioterapia.

Após 15 dias, o paciente procurou o setor de emergência do HUCFF, relatando piora do quadro e apresentando aumento de volume da tumoração na região anterior do braço associado ao aparecimento de calor e eritema locais (Figura 1). Encontrava-se febril (38,8ºC) e havia completado o 2º mês do esquema RHZ. Imediatamente foram realizados exames complementares laboratoriais e de imagem diante da suspeita do quadro infeccioso.


Laboratório: leucócitos 5.960/mm(3) (contagem diferencial normal); hemoglobina 11,8g/dL; hematócrito 36,4%; plaquetas 249.000/mm(3); VHS 80mm em 1 hora; albumina 3,6 g/dL; proteínas totais 6,5g/dL; transferrina 202,3mg/dL. Além disso, apresentava sorologia anti-HIV negativa e foi reator ao teste tuberculínico (10mm).

Ultrassonografia do ombro evidenciou coleção de contornos mal definidos e conteúdo heterogêneo, espesso, localizado na porção anterior do bíceps envolvendo os tendões longo e curto, medindo aproximadamente 10 x 7 x 4cm. A referida coleção se insinuava superiormente. Observou-se conteúdo semelhante na bursa subcoracoide e subacromial/subdeltoidea e no espaço glenoumeral. Tendão do supraespinal espessado por tendinose. Restante dos tendões do manguito rotador sem alterações.

O estudo radiográfico foi complementado por radiografias simples e ressonância magnética. As radiografias não trouxeram informações adicionais relevantes. Ao contrário, a imagem de ressonância magnética revela a presença de lesões predominantemente hipointensas em T1 e hiperintensas nas demais sequências, localizadas na região metaepifisária do úmero e na glenoide, além de volumoso derrame articular e espessamento sinovial; mostra, ainda, volumosa coleção anterior, no terço proximal do braço, em íntima relação com os tendões bicipitais (Figura 2).


A coleção envolvendo os tendões bicipitais foi puncionada percutaneamente, imediatamente antes do procedimento cirúrgico, sob condições de antissepsia cirúrgica com solução alcoólica iodada (Figura 3). A pesquisa de bacilo álcool-acidorresistente (BAAR) pelo método de Ziehl-Neelsen foi positiva.


O paciente foi, então, submetido ao tratamento cirúrgico, sob bloqueio do plexo braquial, em decúbito dorsal. Foi realizada incisão deltopeitoral, com extensão distal sobre a massa. Após abertura da bainha bicipital, houve saída de grande quantidade de secreção purulenta com grumos (Figura 4). À inspeção intraoperatória, esse era o principal foco infeccioso. Foi realizada drenagem do material purulento, desbridamento dos tecidos desvitalizados e abundante lavagem das estruturas, incluindo a articulação do ombro, com soro fisiológico. A ferida foi fechada com pontos simples e o paciente foi rigorosamente acompanhado durante o período pós-operatório. Recebeu alta hospitalar após cinco dias.


O material foi enviado para exames histopatológico, citopatológico, baciloscopia (método de Ziehl-Neelsen) e cultura para micobactérias no meio Lovestein-Jansen e germes comuns. O estudo histopatológico revelou "processo inflamatório agudo e crônico inespecífico" e o exame citopatológico mostrou "hiperplasia sinovial e necrose celular". As culturas foram negativas. O diagnóstico foi confirmado pela baciloscopia positiva para BAAR.

Por permanecer com febre diária no 3º mês de tratamento com RHZ, além de apresentar a forma disseminada de tuberculose (pleural, musculoesquelética e hepática), optou-se por otimizar a terapia incluindo etambutol e amicacina ao esquema e retirando a pirazinamida. Permaneceu em uso das quatro drogas por três meses, quando a amicacina foi, então, retirada do esquema. Continuou sob tratamento com rifampicina, isoniazida e etambutol até completar 12 meses de tratamento.

Evoluiu com resolução completa do quadro doloroso e melhora total da função do ombro direito. Além disso, houve também regressão completa do derrame pleural e o sucesso da terapêutica instituída confirmou, ainda mais claramente, o diagnóstico prévio de tuberculose. Não houve recidiva do aumento de volume no local da ferida operatória, bem como não foram mais observados outros sinais locais de infecção. No momento, com 24 meses de seguimento ambulatorial, queixa-se de desconforto leve no ombro direito apenas aos grandes esforços e sua função é graduada como boa (33 pontos), segundo a escala da UCLA(16) (Figura 5). A radiografia da última consulta não revela alterações.


DISCUSSÃO

O acometimento musculoesquelético é infrequente na tuberculose e ocorre em menos de 5% dos casos(5). Destes, a maioria tem tuberculose óssea e apenas uma pequena parcela dos pacientes tem tuberculose articular; o comprometimento muscular e/ou tendinoso é ainda mais raro, correspondendo a 1% dos casos de tuberculose musculoesquelética(5,8,17). O envolvimento articular é predominante nas articulações de carga, enquanto que o acometimento da articulação do ombro ocorre apenas em cerca de 2% dos casos de tuberculose articular(2). A relativa raridade da tuberculose articular e, em especial, do ombro, é um dos fatores que contribui para a habitual demora no diagnóstico da condição. Além disso, os sintomas e sinais são inespecíficos e o quadro clínico costuma ser arrastado, evoluindo gradualmente ao longo de vários meses(7,8,18-23). O tempo decorrido entre o surgimento dos sintomas e o início do tratamento pode chegar a um ano(8,17). Embora nossa primeira impressão diagnóstica no ambulatório tenha sido de lesão do manguito rotador associada à tendinopatia do bíceps, no caso relatado, o diagnóstico foi facilitado, pois o paciente encontrava-se em tratamento medicamentoso de tuberculose extrapulmonar (pleural e hepática) e retornou espontaneamente ao hospital, dirigindo-se ao setor de emergência, 15 dias depois, com volumosa massa na região proximal do braço direito. Quanto à confirmação do diagnóstico, uma vez que as características clínicas são inespecíficas, os exames complementares têm grande valor. Exames laboratoriais costumam ser normais, exceto pela VHS, que está geralmente elevada(22,24). Assim como no caso relatado, a maioria dos pacientes tem teste tuberculínico (purified protein derivatives - PPD) positivo(17), embora este exame tenha pouco valor, especialmente em áreas de alta prevalência da tuberculose(4,23). Dentre os exames de imagem, a ressonância magnética é o padrão-ouro(25) e, em nosso caso, foi bastante útil ao revelar sinais compatíveis com tuberculose musculoesquelética. Gahlaut et al(26) chamam a atenção para a dificuldade no diagnóstico da tuberculose extrapulmonar e propõem que seja confirmado mediante presença de um dos seguintes critérios: 1 - cultura positiva para M. tuberculosis; 2 - demonstração do BAAR na baciloscopia; 3 - material de biópsia contendo granuloma caseoso típico da infecção tuberculosa. A combinação de diferentes modalidades diagnósticas é importante na detecção da tuberculose musculoesquelética(8) e isso foi indispensável em nosso caso, em que as culturas foram negativas, os exames histopatológico e citopatológico, inconclusivos e apenas a baciloscopia foi positiva.

No caso relatado, havia envolvimento ósseo (na região proximal do úmero), articular e tendíneo, segundo apreciado na imagem de ressonância magnética e conforme os achados cirúrgicos. A situação intra-articular da porção longa do bíceps braquial favorece seu envolvimento nos casos de artrite séptica ou asséptica do ombro. Entretanto, neste caso, à inspeção durante o ato operatório, a bainha do tendão bicipital, ao nível do sulco intertubercular, mostrou-se a principal sede da infecção. A ocorrência de tuberculose extrapulmonar parece decorrer da reativação de focos latentes, após uma primoinfecção(27). A maioria das formas articulares ocorre devido à extensão a partir de um foco ósseo adjacente, embora também possa ocorrer infecção hematogênica direta da membrana sinovial(24). O acometimento de tendões também parece ocorrer mais provavelmente por contiguidade(18). Bickel et al(18) propõem que a tenossinovite tuberculosa se origina do acometimento primário do osso, com posterior envolvimento tendíneo; o foco inicial, então, sofreria cura e a doença localizar-se-ia apenas no tendão. Embora reconheçamos, através da revisão dos mecanismos patogênicos da tuberculose extrapulmonar, que o acometimento primário do tendão bicipital é improvável, não há como afirmar neste caso se a infecção osteoarticular precedeu o acometimento tendíneo ou vice-versa. De fato, nenhum caso de tendinite tuberculosa bicipital isolada foi encontrado durante a revisão bibliográfica feita para a confecção deste relato, embora muitos autores tenham reportado outras localizações atípicas(19,20,28,29,31-34). Apenas um terço dos pacientes com tuberculose musculoesquelética tem história de doença pulmonar(4), embora a presença de achados compatíveis com tuberculose antiga seja usual em exames de imagem (radiografia de tórax e tomografia computadorizada)(7,23). Nosso paciente, embora negasse passado de doença pulmonar, apresentava, à tomografia computadorizada, alterações cicatriciais no ápice do pulmão direito, compatíveis com tuberculose pulmonar antiga.

A ocorrência de tuberculose extrapulmonar, inclusive musculoesquelética, é mais comum em pacientes imunodeprimidos. Em indivíduos imunocompetentes, a tuberculose extrapulmonar corresponde a 15 a 20% de todas as formas de tuberculose; já em indivíduos imunodeprimidos, a tuberculose extrapulmonar perfaz 50% dos casos. Essa é mais uma particularidade do caso relatado: trata-se de paciente imunocompetente, com tuberculose disseminada e, ainda, com falha ao tratamento medicamentoso padrão.

A incidência de tuberculose multirresistente (TBMR) tem aumentado; estima-se que 3% de todos os casos novos sejam multirresistentes(36). Entretanto, por definição, TBMR é aquela em que testes in vitro demonstram resistência a pelo menos rifampicina e isioniazida. É salientado, no II Consenso Brasileiro de Tuberculose3, que um esquema de retratamento, com duração de 12 meses, deve ser proposto para pacientes com falência do esquema RHZ padrão, independente da realização de testes de sensibilidade. Da mesma forma, a Organização Mundial da Saúde propõe adotar a falha do tratamento padrão em locais onde os testes de sensibilidade não são disponíveis(35). Nos casos confirmados de multirresistência, o tratamento medicamentoso alternativo deve durar até 18 meses(3,36). No caso relatado, a realização de testes de sensibilidade a partir do material obtido da coleção na bainha sinovial do bíceps não foi possível, pois o bacilo de Koch não foi isolado na cultura. Entretanto, a cultura do líquido pleural, realizada no início da evolução, dois meses antes do surgimento de sintomas relativos ao ombro direito, revelou M. tuberculosis sensível aos medicamentos de primeira linha. Neste caso, pode ter ocorrido resistência adquirida, muito mais comum que a resistência primária(3) ou, simplesmente, a não adesão do paciente ao tratamento; esta última possibilidade foi veementemente negada pelo próprio. De fato, devido à falha no tratamento inicial, nosso paciente foi submetido ao esquema de retratamento por 12 meses, com resolução completa do quadro infeccioso disseminado.

O tratamento da tuberculose musculoesquelética é essencialmente clínico (medicamentoso) e sua duração deve ser estendida a 12 meses. A realização do diagnóstico e a instituição de tratamento precoces promovem recuperação completa ou quase completa da função articular em cerca de 95% dos casos(23). Segundo Erdem et al(23), o tratamento cirúrgico da tuberculose musculoesquelética deve ser indicado em caso de persistência dos sintomas após quatro meses de quimioterapia. Entretanto, no caso relatado, o tratamento cirúrgico se fez necessário devido à presença da grande coleção de conteúdo infeccioso no braço direito, com rápido aumento volumétrico em curto intervalo de tempo (Figura 1).

Por fim, a importância deste relato é salientar a presença crescente da tuberculose musculoesquelética e chamar a atenção dos ortopedistas para a realização desse diagnóstico. Devido a sua alta prevalência no Brasil, a tuberculose deve sempre ser considerada no diagnóstico diferencial dos casos de comprometimento crônico e progressivo das articulações, ossos, músculos, tendões e bursas, mesmo em indivíduos imunocompetentes.

Declaramos inexistência de conflito de interesses neste artigo

Trabalho realizado no Serviço de Traumato-Ortopedia do HUCFF - UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

  • 1. Mohan A, Sharma SK. Epidemiology. In: Sharma SK, Mohan A. Tuberculosis. New Delhi: Jaypee Brothers Medical Publishers; 2001. p.14-29.
  • 2. World Health Organization. Globa ltuberculosis controle surveillance, planning, financing. WHO report 2005 [WHO/HTM/TB/2005.349]
  • 3. Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia. II Consenso Brasileiro de Tuberculose 2004. Disponível em: (http://www.sbpt.org.br/downloads/arquivos/cons_tuberculose_2004.pdf)
  • 4. Watts HG, Lifeso RM. Current concepts review. Tuberculosis of bones and joints. J Bone Joint Surg. 1996;78(2):288-98.
  • 5. Yao DC, Sartoris DJ. Musculoskeletal tuberculosis. Radiol Clin North Am. 1995;33(4):679-89.
  • 6. Malaviya AN, Kotwal PP. Arthritis associated with tuberculosis. Best Pract Res Clin Rheumatol. 2003;17(2):319-43.
  • 7. Al-Saleh S, Al-Arfaj A, Naddaf H, Haddad Q, Memish Z. Tuberculous arthritis: a review of 27 cases. Ann Saudi Med. 1998;18(4):368-9.
  • 8. Garrido G, Gomez-Reino J, Fernandez-Dapica P, Palenque E, Prieto S. A review of peripheral tuberculous arthritis. Semin Arthritis Rheum. 1988;18(2):142-9.
  • 9. Halsey JP, Reeback JS, Barnes CG. A decade of skeletal tuberculosis. Ann Rheum Dis. 1982;41(1):7-10.
  • 10. Neer CS 2nd. Anterior acromioplasty for the chronic impingement syndrome in the shoulder: a preliminary report. J Bone Joint Surg Am. 1972;54(1):41-50.
  • 11. Yocum LA. Assesing the shoulder. History, physical examination, differential diagnosis and special tests used. Clin Sports Med. 1983;2(2):281-9
  • 12. Hawkins RJ, Kennedy JC. Impingement syndrome in athletes. Am J Sports Med. 1980;8(3):151-8.
  • 13. O'Brien SJ, Pagnani MJ, Fealy S, McGlynn SR, Wilson JB. The active compression test: a new and effective test for diagnosing labral tears and acromioclavicular joint abnormality. Am J Sports Med. 1998;26(5):610-3.
  • 14. Crenshaw AH, Kilgore WE. Surgical treatment of bicipital tenosynovitis. J Bone Joint Surg Am. 1966;48(8):1496-502.
  • 15. Yergason RM. Supination sign. J Bone Joint Surg 1931;131:60.
  • 16. Ellman H, Hanker G, Bayer M: Repair of the rotator cuff: end-result study off actors influencing reconstruction. J Bone Joint Surg Am. 1986;68(8):1136-44.
  • 17. Albornoz MA, Mezgarzedeh M, Neumann CH, Myers AR. Granulomatous tenosynovitis: a rare musculoskeletal manifestation of tuberculosis. Clin Rheumatol. 1998;17(2):166-9.
  • 18. Bickel WH, Kimbrough RF, Dahlin DC. Tubercular tenosynovitis. JAMA. 1953; 151(1):31-5.
  • 19. Abdelwahab IF, Kenan S, Hermann G, Klein MJ, Lewis MM. Tuberculous Peroneal Tenosynovitis. A case report. J Bone Joint Surg. 1993;75(11):1687-1690.
  • 20. Adams R, Jones G, Marble HC. Tuberculous tenosynovitis. N Engl J Med. 1940;223:706-8.
  • 21. Hortas C, Ferreiro JL, Galdo B, Arasa FJ, Barbazán C, Mera AJ, et al. Tuberculosis and arthritis of peripheral joints with previous inflammatory rheumatic disease. Br J Rheum. 1988;27(1):65-7.
  • 22. Aboudola S, Sienko A, Carey RB, Johnson S. Tuberculous Tenosynovitis. Hum Pathol. 2004;35(8):1044-1046.
  • 23. Erdem H, Baylan O, Simsek I, Dinc A, Pay S, Kocaoglu M. Delayed diagnosis of tuberculous arthritis. Jpn J Infect Dis. 2005;58(6):373-5.
  • 24. Kapukaya A, Subasi M, Bukte Y, Gur A, Tuzuner T, Kilnc N. Tuberculosis of the shoulder joint. Rev Rhum. 2006;73:263-8.
  • 25. De Vuyst D, Vanhoenacker F, Gielen J, Bernaerts A, De Schepper AM. Imaging features of musculoskeletal tuberculosis. Eur Radiol. 2003;13(8):1809-19.
  • 26. Gahlaut DS, Nath K, Sikka KK, Singh KN, Samuel KC. Generalized skeletal muscle tuberculosis. J Indian Med Assoc. 1973;61(2):92-4.
  • 27. Sharma SK, Mohan A. Extrapulmonary tuberculosis. Indian J Med Res. 2004;120(4):316-53.
  • 28. Goldberg I, Avidor I. Isolated tuberculous tenosynovitis of the Achilles tendon. A case report. Clin Orthop Relat Res. 1985;(194):185-8.
  • 29. Varshney MK, Trikha V, Gupta V. Isolated tuberculosis of Achilles tendon. Joint Bone Spine. 2007;74(1):103-6.
  • 30. Trikha V, Gupta V. Isolated tuberculous abscess in biceps brachii muscle of a young male.. J Infect. 2002;44(4):265-6.
  • 31. Nishida J, Furumachi K, Ehara S, Satoh T, Okada K, Shimamura T. Tuberculous bicipitoradial bursitis: a case report. Skeletal Radiol. 2007;36(5):445-8.
  • 32. Jira M, Qacif H, Sekkach Y, ElQatni M, Elouennass M, Ghafir D. Ténosynovite tuberculeuse: une localisation rare. Rev Med Interne. 2007;28(1):56-8.
  • 33. Learch TJ, Hsiao NM. Tuberculous infection of the gracilis muscle and tendon clinically mimicking deep venous thrombosis: sonographic findings. Skeletal Radiol. 1999;28(8):457-9.
  • 34. Holder SF, Hopson CN, Vonkuster LC. Tuberculous arthritis of the elbow presenting as chronic bursitis of the olecranon. A case report. J Bone Joint Surg.1985;67(7):1127-9.
  • 35. Crofton J, Chaulet P, Maher D, Grosset J, Harris W, Horne N, et al. Guidelines for the management of drug resistant tuberculosis. WHO/TB/96.210 Rev1. Geneva:World Health Organization; 1997.
  • 36. Sharma SK, Mohan A. Multidrug-resistant tuberculosis Indian. J Med Res. 2004;120:354-76.
  • Correspondência:
    Av. Afrânio de Melo Franco, 141/110
    CEP: 22430-060 - Rio de Janeiro, RJ
    Tel.: (21) 2274-3244; tele/fax: (21) 2274-2561
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009
    Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia Al. Lorena, 427 14º andar, 01424-000 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: 55 11 2137-5400 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rbo@sbot.org.br