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Doença de Legg-Calvé-Perthes: 100 anos

EDITORIAL

Doença de Legg-Calvé-Perthes: 100 anos

Prof. Roberto Guarniero

A doença de Legg-Calvé-Perthes (DLCP) começou a ser estudada há 100 anos (1910) graças ao advento da possibilidade dos estudos clínicos por imagem radiográfica (1895). Entretanto, muitas questões permanecem em aberto tanto em relação à etiologia da afecção ortopédica bem como às medidas terapêuticas válidas e, assim, gerando grande controvérsia.

Em 1910, três estudos foram publicados respectivamente por A. Legg, J. Calvé e G. Perthes; estes estudos descreviam uma nova afecção do quadril da criança, diferente da tuberculose articular que era a doença mais comumente encontrada naquela época. Calvé (1875-1954) trabalhava no hospital "Berck Sur Mer" que era o maior serviço especializado em tuberculose na França; o autor adquiriu um aparelho de raios-X em 1898 e, com isto, identificou 10 pacientes com a nova doença, que denominou pseudocoxalgia. Perthes (1869-1927), por sua vez, trabalhando em Leipzig, na Alemanha, foi um dos primeiros cirurgiões a utilizar radiografias no seu país e definiu seis casos clínicos de uma afecção que denominou "Artrite deformante juvenil", que era diferente da tuberculose do quadril. No mesmo ano, Legg (1874-1939), em Boston (graduado por Harvard), descreveu a nova afecção com um trabalho sobre "Uma afecção obscura do quadril".

Nestes anos todos, cerca de 2.000 trabalhos foram publicados em relação ao tema. Algumas técnicas e conceitos são descritos tanto para o tratamento conservador como para o operatório.

A incidência da DLCP é de, aproximadamente, 15 por 100.000, sendo mais comum nos meninos do que nas meninas na proporção de 5:1. A doença é muito rara nos indivíduos afrodescendentes e nos chineses. Interessante salientar a maior incidência nos indivíduos de classe social mais pobre (Classe 5: 26/100.000) sendo na denominada Classe 1, de 4/100.000.

O que sabemos em relação à etiologia? A etiologia continua obscura, ocorrendo um distúrbio da circulação arterial, da drenagem venosa da cabeça femoral em crescimento ou de ambos. Trueta (1949) atribui a causa de necrose ao fechamento dos vasos epifisários localizados na região posterossuperior do quadril, demonstrando que nas crianças na faixa etária dos quatro aos sete anos a única fonte de suprimento sanguíneo para a epífise femoral proximal são os vasos epifisários laterais, os quais por traumatismos ou processo inflamatório, com consequente obstrução, poderiam levar à DLCP. Camargo et al (1984) e Godoy Jr. (1988) demonstram com estudos angio-gráficos seletivos da artéria profunda que os pacientes com DLCP apresentam oclusão parcial ou total da artéria circunflexa medial dos quadris acometidos, o que poderia tornar a epífise femoral proximal susceptível à isquemia na faixa etária dos quatro aos oito anos.

Dr. Robert Salter foi quem contribuiu sobremaneira em relação á anatomopatologia da afecção graças aos estudos com o modelo experimental em suínos. Entretanto, não há razão para questionar a hipótese de que a DLCP é causada por uma isquemia da epífise. Pode ocorrer também um déficit na drenagem venosa do quadril. Então, a etiopatogenia da moléstia seria assim explicada: 1) ao nascer, a criança traz consigo alterações vasculares provavelmente de origem genética; 2) com o passar do tempo, alterações no crescimento esquelético e na maturação óssea da criança ocorrem; 3) na faixa etária dos quatro aos oito anos, quando a epífise é mais susceptível à isquemia, pelo padrão vascular desta faixa etária, o processo seria desencadeado por um fator capaz de romper o precário equilíbrio circulatório mantido até então. Este fator desencadeante seria: um traumatismo à articulação provocando a obstrução arterial e/ou venosa; um episódio de sinovite, traumática ou inflamatória (por foco infeccioso à distância) produzindo tamponamento e obstrução arterial e/ou venosa; uma fratura por estresse ou patológica da epífise, interrompendo a irrigação sanguínea em maior ou menor grau. As alterações vasculares evidentes na DLCP são: diminuição da vascularização no lado afetado, ausência da artéria circunflexa medial ou, então, a presença de artéria circunflexa medial atrófica ou com obstrução de seus ramos distais. Dimeglio (1995) defende estas ideias em relação ao retardo no desenvolvimento articular do quadril, a ocorrência de microtraumatismos locais e as alterações vasculares.

As pesquisas e publicações sobre o tema no Brasil datam de mais de 50 anos. O Prof. Flavio Pires de Camargo, em 1957, publicou os resultados do trabalho original sobre o denominado "enxerto ósseo por inversão" com resultados satisfatórios no tratamento operatório da DLCP. Esta pesquisa mostra a possibilidade de um tratamento "biológico", com estímulo à vascularização da epífise femoral proximal, fundamentado nas teorias de Trueta, estudioso e pesquisador da circulação no tecido ósseo; a proposta é a revascularização do colo femoral com o enxerto ósseo invertido e pelo estímulo à formação de vasos colaterais que se anastomosam com os vasos epifisários.

O que sabemos sobre o tratamento? O tratamento da DLCP tem sempre como objetivo melhorar a mobilidade do quadril e a relação anatômica entre a cabeça femoral e o acetábulo, tentando diminuir o efeito deletério da afecção sobre a articulação. A indicação precisa do melhor tipo de tratamento é por vezes difícil, variando entre o acompanhamento clínico e radiográfico da criança, ao tratamento conservador com uso de tração, de aparelhos ortopédicos, ou gessados, de abdução do quadril ou operatório quando critérios definidos permitam tal indicação. O tratamento operatório indicado primordialmente nas fases iniciais da DLCP está fundamentado em duas escolas distintas: a que indica a realização de uma osteotomia femoral proximal - varizante e derrotativa - e a que recomenda a osteotomia do osso ilíaco, nas região inominada do osso. As duas osteotomias têm o objetivo de melhorar a cobertura da cabeça femoral comprometida. Vários estudos comparam as técnicas de osteotomia femoral e do ilíaco, sendo demonstrado que os resultados quanto à forma e à contenção da cabeça do fêmur são similares, aumentando a polêmica sobre a questão.

Cordeiro (1972,1980) analisa o papel da osteotomia femoral intertrocanteriana como modalidade de tratamento operatório "mecânico e biológico" na DLCP e mostrando cerca de 60% de resultados satisfatórios. Guarniero et al (1995,1997) publica nova análise dos resultados da osteotomia femoral com 65% de resultados satisfatórios. Rossi (1995) sugere uma técnica mais fácil para a realização da osteotomia.

Telöken (1992) acompanha 31 pacientes tratados por osteotomia acetabular tipo Salter concluindo que ocorre uma diminuição do tempo normal da fase de fragmentação da doença justificada pelo aumento do fluxo sanguíneo na cabeça femoral promovido pela cirurgia, com aumento da rede vascular colateral para a epífise. Kuwajima, em estudo realizado em 1993, encontra diminuição do tempo de evolução do estágio de necrose para o de fragmentação com a realização da osteotomia tipo Salter, ocorrendo aumento da vascularização da epífise.

Qual seria o papel da artrodiastase com fixador externo na DLCP? De acordo com as pesquisas e estudos realizados em nosso Serviço desde 1991, podemos afirmar que a artrodiastase com fixador externo monolateral, articulado ou não, aplicado no quadril, promove a aceleração da reossificação da cabeça femoral, induz a melhora do grau de mobilidade articular, estando o procedimento indicado nas fases de necrose e de fragmentação na DLCP.

Os fatores prognósticos da afecção incluem: a idade do paciente quando do início da moléstia; a extensão do comprometimento da epífise femoral; a presença de dois ou mais dos denominados "sinais radiográficos de cabeça em risco" (segundo Catterall); a altura do pilar lateral (classificação de Herring) e o fechamento prematuro da placa de crescimento da epífise. Podemos concluir com a revisão dos trabalhos recentemente publicados que o tratamento empregado na DLCP está fundamentado muito mais na experiência pessoal do ortopedista do que em bases realmente científicas. São necessários estudos prospectivos adicionais, para aprofundar os nossos conhecimentos em relação aos diferentes resultados do tratamento ortopédico. Existe também a necessidade de diretrizes e protocolos para a uniformização dos diferentes tipos de possibilidades terapêuticas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2011
  • Data do Fascículo
    2011
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