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Prótese do tornozelo híbrida em um caso de necrose avascular pós-traumática do tálus

Resumos

As fraturas do astrágalo originam frequentemente artrose pós-traumática tardia. Nestes casos, a utilização de próteses do tornozelo não cimentadas de última geração tem sido evitada pela presença de necrose avascular. Relatamos o caso de um paciente com 65 anos que se apresenta quatro anos após uma fratura do colo do astrágalo. Apresentava uma artrose do tornozelo dolorosa (escala AOFAS do retropé e tornozelo 19) e necrose avascular com colapso de toda a cúpula astragalina. Dada a extensão da necrose, foi decidido cimentar o componente protésico astragalino. Um ano após a cirurgia, o paciente apresenta bom resultado clínico e radiológico (escala AOFAS do retropé e tornozelo 87) e está satisfeito com o procedimento. Não temos conhecimento de nenhum relato semelhante na literatura.

Articulação do Tornozelo; Tálus; Osteonecrose; Cimentação


Talus fractures often lead to late post-traumatic arthrosis. In such cases, the use of latest generation, cementless prostheses has been hindered by the presence of avascular necrosis. We report the case of a 65-year-old patient who presented four years after a talus neck fracture. He had painful ankle arthrosis (AOFAS ankle-hindfoot score 19) and avascular necrosis, with collapse of the entire talar dome. Given the extent of the necrosis, it was decided to cement the talus prosthetic component. One year after the surgery, the patient shows good clinical and radiological results (AOFAS ankle-hindfoot score 87) and is satisfied with the procedure. We are not aware of any similar reports in the literature.

Ankle Joint; Talus; Osteonecrosis; Cementation


RELATO DE CASO

Prótese do tornozelo híbrida em um caso de necrose avascular pós-traumática do tálus

Hybrid ankle prosthesis in a case of post-traumatic avascular necrosis of the talus

Ricardo Jorge Gomes de SousaI; Ricardo Pedro Ferreira Rodrigues PintoI; Marta Maria Teixeira de Oliveira MassadaI; Manuel Alexandre Negrais Pinho Gonçalves PereiraI; José Muras GeadaII; Isabel Maria Gonçalves CostaIII

IInterno Complementar de Ortopedia. Serviço de Ortopedia do Hospital de Santo António - Porto, Portugal

IIAssistente de Ortopedia. Serviço de Ortopedia do Hospital de Santo António - Porto, Portugal

IIIAssistente Hospitalar Graduado de Ortopedia. Serviço de Ortopedia do Hospital de Santo António - Porto, Portugal

Correspondência Correspondência: Serviço de Ortopedia do Hospital de Santo António Centro Hospitalar do Porto - Largo do Professor Abel Salazar 4099 - 001 Porto, Portugal E-mail: ricardojgsousa@gmail.com

RESUMO

As fraturas do astrágalo originam frequentemente artrose pós-traumática tardia. Nestes casos, a utilização de próteses do tornozelo não cimentadas de última geração tem sido evitada pela presença de necrose avascular. Relatamos o caso de um paciente com 65 anos que se apresenta quatro anos após uma fratura do colo do astrágalo. Apresentava uma artrose do tornozelo dolorosa (escala AOFAS do retropé e tornozelo 19) e necrose avascular com colapso de toda a cúpula astragalina. Dada a extensão da necrose, foi decidido cimentar o componente protésico astragalino. Um ano após a cirurgia, o paciente apresenta bom resultado clínico e radiológico (escala AOFAS do retropé e tornozelo 87) e está satisfeito com o procedimento. Não temos conhecimento de nenhum relato semelhante na literatura.

Descritores: Articulação do Tornozelo; Tálus; Osteonecrose; Cimentação

ABSTRACT

Talus fractures often lead to late post-traumatic arthrosis. In such cases, the use of latest generation, cementless prostheses has been hindered by the presence of avascular necrosis. We report the case of a 65-year-old patient who presented four years after a talus neck fracture. He had painful ankle arthrosis (AOFAS ankle-hindfoot score 19) and avascular necrosis, with collapse of the entire talar dome. Given the extent of the necrosis, it was decided to cement the talus prosthetic component. One year after the surgery, the patient shows good clinical and radiological results (AOFAS ankle-hindfoot score 87) and is satisfied with the procedure. We are not aware of any similar reports in the literature.

Keywords: Ankle Joint; Talus; Osteonecrosis; Cementation

INTRODUÇÃO

As fraturas do corpo e colo do astrágalo são lesões pouco frequentes mas com potencial para sequelas funcionais a longo prazo cuja prevenção nem sempre é possível. A prevalência de artrose pós-traumática ronda os 35-100% atingindo o tornozelo bem como a articulação subastragalina(1-3). Na nossa própria série, aos cinco anos de seguimento, a artrose do tornozelo está presente em 40% dos casos(4).

A necrose avascular representa uma complicação ca-racterística após fraturas do colo e corpo do astrágalo e resultam da interrupção da irrigação sanguínea oriunda do seio e túnel do tarso no colo astragalino. A sua prevalência relaciona-se com o grau de desvio inicial(5).

O desenvolvimento da artroplastia total do tornozelo começou nos anos 70(6). Os modelos originais eram cimentados e altamente constritivos pelo que eventualmente falhavam. Novas gerações foram desenvolvidas e atualmente, as próteses de tornozelo, mais comumente utilizadas, compartilham uma característica comum: todas têm revestimento poroso de modo a favorecer a interdigitação óssea não dependendo da cimentação para fixação mas sim da osteointegração(6). Assim, a necrose avascular do astrágalo classicamente tem sido considerada uma contraindicação à realização de uma artroplastia total do tornozelo(7).

Relatamos o resultado, ao fim de um ano de seguimento, de uma prótese total do tornozelo realizada em paciente com necrose avascular e colapso de toda a cúpula astragalina. A prótese utilizada foi a Salto Total Ankle Prosthesis (Tornier, França) que foi implantada utilizando cimentação para fixação do componente astragalino.

RELATO DE CASO

Um homem de 65 anos apresenta-se com história prolongada de dor com agravamento progressivo e rigidez do tornozelo esquerdo que obrigou à utilização de duas canadianas nos últimos dois anos. Tem como antecedentes um acidente de aviação quatro anos antes de que resultou uma fratura tipo II de Hawkins do colo do astrágalo. Foi tratado cirurgicamente com redução aberta e osteossíntese com dois parafusos de esponjoso 6.5 através de abordagem anteromedial. A Figura 1 mostra a radiografia inicial, bem como o controle pós-operatório.


A avaliação clínica revelou um arco de movimento de flexão-extensão do tornozelo limitado com um valor da escala do retropé e tornozelo da American Orthopedic Foot and Ankle Society (AOFAS) extremamente baixo: 19. O estudo radiográfico realizado revelou sinais de artrose pós-traumática do tornozelo esquerdo e colapso de quase 100% da cúpula astragalina secundário à necrose avascular (Figura 2). Apesar de radiograficamente serem visíveis alterações degenerativas na articulação subastragalina, o doente não tinha dor nos movimentos de inversão-eversão do retropé.


A artroplastia do tornozelo foi realizada através de abordagem anterior extensa segundo a técnica original do implante escolhido utilizando um componente astragalino custom-made preparado para cimentação. O guia de corte da cúpula astragalina foi utilizado para determinar o nível de corte e optamos por não extrair o parafuso de esponjoso mais inferior, uma vez que não interferia com o posicionamento do implante. Foi utilizado cimento para preencher os defeitos ósseos para além de obter a fixação do componente astragalino. A cirurgia e o pós-operatório decorreram sem intercorrências.

Na mais recente consulta de seguimento, aos 12 meses, o doente revela excelente resultado clínico e radiológico. Atualmente, é capaz de deambular praticamente sem dor, sem ajuda de apoios externos e está extremamente satisfeito com a cirurgia. O estudo radiológico não revela qualquer migração de componentes ou sinais de descelagem como se pode apreciar na Figura 3. O valor da escala AOFAS de retropé e tornozelo melhorou de forma muito significativa e é agora de 87 (Tabela 1).


DISCUSSÃO

As fraturas do corpo e colo do astrágalo têm uma elevada proporção de artrose pós-traumática tardia que pode causar significativa perturbação funcional(1-4). Após o desapontamento inicial com designs mais iniciais, a artroplastia total do tornozelo tem ressurgido recentemente como uma alternativa válida à artrodese para o tratamento de artrose do tornozelo(7).

O modelo de prótese habitualmente utilizado na nossa instituição é a Salto Total Ankle Prosthesis (Tornier, França) que foi desenhado como um implante não cimentado(8). A sua superfície porosa apropriada para a interdigitação óssea é um traço fundamental de todos os modelos de próteses de "última geração"(6). Esta característica é uma das principais razões pela qual a necrose avascular do astrágalo tem sido considerada uma contraindicação. O potencial para integração óssea e fixação não cimentada do componente é extremamente baixo em áreas de necrose óssea (9). Hintermann(7) vai mesmo ao ponto de afirmar que a necrose avascular superior a 25% do corpo do astrágalo constitui uma contraindicação relativa e um atingimento superior a 50% constitui uma contraindicação absoluta à realização de artroplastia total do tornozelo.

De modo a ultrapassar esta dificuldade, decidimos utilizar cimento ósseo para alcançar a fixação do componente astragalino. Não só utilizamos cimento para fixação mas também para o preenchimento de defeitos ósseos encontrados no astrágalo durante a cirurgia. Decidimos não extrair o segundo parafuso uma vez que não interferia com o corte a efetuar e o posicionamento correto do implante e, desta forma, evitamos fragilizar ainda mais o astrágalo.

Um ano após o procedimento, quer o paciente quer a equipe médica estão satisfeitos com o resultado obtido. Complicações futuras, particularmente descelagem e/ ou "afundamento" do conjunto componente/cimento no restante astrágalo ou mesmo calcâneo não podem ser excluídas. Os autores estão cientes dos riscos envolvidos nesta opção heterodoxa e eles foram devidamente explicados e discutidos com o doente. A artrodese do tornozelo foi apresentada como uma cirurgia alternativa ou como procedimento de resgate no caso de falência da artroplastia(10). O doente escolheu submeter-se à artroplastia do tornozelo e não à artrodese, aceitando que poderia vir a necessitar de ulteriores cirurgias no futuro. A opção tomada é controversa e não existe suporte científico que a apoie. Não temos conhecimento de nenhum relato de caso semelhante na literatura. Contudo, a grande motivação do doente para realização de artroplastia ao invés de artrodese levou os autores a tomar esta opção de risco. A extensão de necrose talar presente seria considerada uma contraindicação à artroplastia, uma vez que não só compromete a integração do implante como cria condições para um colapso progressivo do conjunto prótese/cimento. O bom resultado obtido neste caso levanta a hipótese de não se considerar a necrose talar como uma contraindicação absoluta à realização de artroplastia do tornozelo. Para tal será necessário utilizar cimentação para fixação do componente talar e ainda a presença de uma plataforma de osso saudável sobrejacente à subtalar para evitar colapso futuro.

Trabalho recebido para publicação: 02/02/10, aceito para publicação: 23/08/10.

Trabalho realizado no Serviço de Ortopedia do Hospital de Santo António - Centro Hospitalar do Porto.

Declaramos inexistência de conflito de interesses neste artigo

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  • Correspondência:

    Serviço de Ortopedia do Hospital de Santo António
    Centro Hospitalar do Porto - Largo do Professor Abel Salazar
    4099 - 001 Porto, Portugal
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Jun 2011
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Recebido
      02 Fev 2010
    • Aceito
      23 Ago 2010
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