Acessibilidade / Reportar erro

Ensaios clínicos controlados e randomizados na ortopedia: dificuldades e limitações

Resumos

Os ensaios clínicos controlados e randomizados (ECCR) são considerados o padrão ouro da medicina baseada em evidências na atualidade, sendo importantes para direcionar a conduta médica através de observações científicas consistentes. Passos como seleção dos pacientes, randomização e cegamento são fundamentais na realização de um ECCR e apresentam algumas dificuldades extras nos ensaios que envolvem procedimentos cirúrgicos, como é comum na Ortopedia. O objetivo deste artigo é destacar e discutir algumas dificuldades e eventuais limitações dos ECCR na área cirúrgica.

Medicina Baseada em Evidências; Ortopedia; Ensaios Clínicos Controlados como Assunto; Estudo Comparativo


Randomized controlled clinical trials (RCTs) are considered to be the gold standard for evidence-based medicine nowadays, and are important for directing medical practice through consistent scientific observations. Steps such as patient selection, randomization and blinding are fundamental for conducting an RCT, but some additional difficulties are presented in trials that involve surgical procedures, as in common in orthopedics. The aim of this article was to highlight and discuss some difficulties and possible limitations on RCTs within the field of surgery.

Evidence-Based Medicine; Orthopedics; Randomized Controlled Trials as Topic; Comparative Study


ARTIGO DE REVISÃO

Ensaios clínicos controlados e randomizados na ortopedia: dificuldades e limitações

Eduardo Angeli MalavoltaI; Marco Kawamura DemangeII; Riccardo Gomes GobbiIII; Marta ImamuraIV; Felipe FregniV

IMédico Assistente do Grupo de Ombro e Cotovelo do Instituto de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP - São Paulo, Brasil

IIMestre em Medicina; Médico Assistente do Grupo de Joelho do Instituto de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP - São Paulo, Brasil

IIIMédico Assistente do Grupo de Joelho do Instituto de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP - São Paulo, Brasil

IVDoutora em Medicina; Professora Colaboradora da Faculdade de Medicina do USP; Médica da Divisão de Medicina Física e Reabilitação do Instituto de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da USP - São Paulo, Brasil

VDoutor em Medicina; Responsável pelo Laboratório de Neuromodulação e pelo Centro de Ensino em Pesquisa Clínica - Harvard Medical School, Boston, MA

Correspondência Correspondência: Rua Ovídio Pires de Campos, 333, Cerqueira Cesar 05403-010 - São Paulo, SP E-mail: eduardomalavolta@hotmail.com

RESUMO

Os ensaios clínicos controlados e randomizados (ECCR) são considerados o padrão ouro da medicina baseada em evidências na atualidade, sendo importantes para direcionar a conduta médica através de observações científicas consistentes. Passos como seleção dos pacientes, randomização e cegamento são fundamentais na realização de um ECCR e apresentam algumas dificuldades extras nos ensaios que envolvem procedimentos cirúrgicos, como é comum na Ortopedia. O objetivo deste artigo é destacar e discutir algumas dificuldades e eventuais limitações dos ECCR na área cirúrgica.

Descritores: Medicina Baseada em Evidências; Ortopedia; Ensaios Clínicos Controlados como Assunto; Estudo Comparativo

INTRODUÇÃO

Os ensaios clínicos controlados e randomizados (ECCR) são considerados o padrão ouro da medicina baseada em evidências na atualidade(1-3). Os ensaios clínicos têm como objetivo criar subsídios para embasar o uso de uma ou outra terapêutica por meio da análise de diferentes intervenções, ou ao comparar intervenções com placebo. A medicina baseada em evidências tem como objetivo direcionar a conduta médica através de observações científicas consistentes.

O nível de evidência dos estudos clínicos pode ser classificado da seguinte forma - na ordem do de menor para o de maior evidência: relatos de caso, estudos caso-controle, estudos observacionais prospectivos e ensaios clínicos randomizados. O principal problema de estudos observacionais é viés de seleção e falta de um grupo controle. Nesse contexto, a principal vantagem dos ECCR é justamente a randomização que diminui a chance de efeito "confundidor" e viés de seleção.

Apresentar validade interna e externa é uma condição para que o ensaio clínico tenha de fato potencial de sugerir aos médicos o uso de determinada terapêutica como a mais indicada. De fato, estudos têm que responder duas perguntas essenciais dos clínicos: "os resultados são válidos?" - o que pode ser analisado pela validade interna do estudo - e "os resultados são aplicáveis ao meu paciente?" - o que pode ser analisado pela validade externa do estudo. Validade interna pressupõe que o desenho do trabalho seja adequado para responder a pergunta proposta na amostra estudada. Validade externa, por sua vez, implica no potencial dos resultados daquele ensaio serem extrapolados para outras populações (sendo válidos não apenas para os participantes daquela pesquisa(4)). Apresentar validade interna adequada é condição sine qua non para apresentar validade externa; ou seja, problemas metodológicos que afetam o estudo em si não permitem que seus resultados sejam extrapolados, uma vez que podem não ser válidos nem para a amostra estudada(5).

O desenho de estudo perfeito, com mínimo viés, pode não ser factível por tornar a realização do estudo inviável (como, por exemplo, aumentar muito o custo ou o número de indivíduos a serem incluídos). Por isso, na maioria das vezes, o ensaio deve buscar um equilíbrio entre factibilidade e rigor metodológico, tendo um desenho bastante cuidadoso para evitar erros que possam invalidar internamente o estudo. Passos como seleção dos pacientes, randomização e cegamento são fundamentais e apresentam algumas dificuldades extras nos ensaios que envolvem procedimentos cirúrgicos, como é comum na Ortopedia. O objetivo deste artigo é destacar e discutir algumas dificuldades e eventuais limitações dos ECCR na área cirúrgica.

DIFICULDADES E LIMITAÇÕES

Desenho e pergunta primária

O desenho de qualquer estudo deve ser escolhido baseado em uma questão específica, que corresponde ao problema a ser investigado. Uma pergunta inicial muito ampla dificulta o cálculo da amostra e a escolha das variáveis de desfecho. Um exemplo: qual o resultado da artroplastia total do joelho não cimentada? Se a pergunta for mais específica, já ajuda a delinear o desenho do estudo: o resultado funcional no primeiro ano de uma artroplastia total de joelho não cimentada difere da cimentada? Na pergunta primária deve ser definida a população de interesse, o desfecho primário, o tempo de seguimento para o desfecho primário e o grupo de comparação.

Alguns desenhos de estudo apresentam limitações nos ensaios cirúrgicos. Por exemplo, não é possível a realização de design tipo cross-over. Em estudos em Ortopedia, a intervenção é frequentemente permanente, e não existe o wash-out como na utilização de medicações. Além disso, não é possível utilizar o paciente como controle de si mesmo para duas intervenções seguidas nos casos de órgãos únicos. No caso dos órgãos duplos (cirurgias em ambos os joelhos, por exemplo), o paciente, no momento da segunda intervenção, não é igual ao da primeira, pois aproveita-se dos benefícios da intervenção anterior. Porém, um possível desenho consiste em comparar efeitos entre órgãos duplos se houver um nível de doença similar - o que raramente ocorre.

Além disso, convém ressaltar que o uso de grupos placebo nos ensaios cirúrgicos com frequência apresenta limitações éticas importantes, sendo algumas vezes até impossível de serem realizados(6).

Cálculo da amostra

Outra limitação importante que os ensaios cirúrgicos frequentemente apresentam consiste no restrito número de casos estudados e sua consequente implicação no poder estatístico do trabalho. O poder de um estudo depende do tamanho da amostra, da homogeneidade da amostra, da homogeneidade dos resultados (do desvio padrão dos resultados) e das diferenças entre as médias dos resultados de cada grupo. Com frequência, nos estudos cirúrgicos, é difícil atingir o número de pacientes (tamanho da amostra) mínimo para se obter um poder estatístico de 80%, percentual considerado como mínimo aceitável na maioria dos ensaios clínicos. Isso ocorre por vários motivos: custo do estudo (normalmente maior quando envolve procedimentos cirúrgicos) inviável para atingir o n ideal; baixa frequência de determinadas patologias e, consequentemente, de seus procedimentos cirúrgicos; dificuldade para realizar um cálculo de amostra ideal, principalmente quando envolve novos procedimentos cirúrgicos pela imprecisão da estimativa da magnitude do efeito do tratamento; entre outros. Como exemplo, Freedman et al(7) mostraram que apenas 9% dos ensaios ortopédicos incluíram cálculo de tamanho da amostra a priori.

Diante disso, muitas vezes propõe-se a realização de ensaios multicêntricos com o objetivo de ampliar o número de indivíduos. Nesta situação, pode surgir o viés da padronização da intervenção. É difícil afirmar que a intervenção cirúrgica realizada pelos diversos centros é a mesma, posto que há variabilidade de cirurgiões e inclusão de inúmeras outras variáveis. Como exemplo, tem-se o tipo de anestesia, a diferença entre os equipamentos de anestesia e de cirurgia, os métodos de esterilização dos materiais cirúrgicos, a expertise da equipe de enfermagem nos cuidados pós-operatórios, a organização da equipe de centro cirúrgico (influenciando no tempo das cirurgias), a diferente disponibilidade de tecnologia (como qualidade dos equipamentos tecnológicos - radioscopia e microscópio), a diferente flora bacteriana hospitalar, entre diversos outros fatores (detectáveis e não detectáveis) que influenciam o resultado final. Poder-se-ia até argumentar que esses vieses influenciariam ambos os braços do trabalho, sendo diluídos com o aumento do número de indivíduos. Isso pode ser verdade em alguns casos, porém pode gerar efeito contrário em outros quando determinado fator causa viés em apenas um dos braços (o uso da radioscopia, quando necessária, em apenas uma das técnicas cirúrgicas estudadas, por exemplo). Além disso, nos casos em que o aumento do número de indivíduos possa diluir toda essa variância, uma amostra enorme é necessária, implicando em um estudo muitas vezes impraticável do ponto de vista financeiro. Por outro lado, ECCR com grandes amostras geralmente são patrocinados pela indústria e conduzidos por pesquisadores ligados a estas empresas, criando conflito de interesses e aumentando consideravelmente o risco de vieses(8,9).

Por outro lado, aumentando a heterogeneidade do estudo, aumentará a validade externa do estudo. De fato, um dos fatores para explicar resultados extremamente favoráveis em alguns estudos pequenos em Ortopedia pode ser a presença de condições excelentes no local onde foi realizado o estudo que são dificilmente reproduzidas em outros locais.

Um outro ponto importante é que, mesmo que apresentem baixo poder, os estudos podem ser valiosos ao serem agregados em meta-análises, assim como ao fornecerem dados preliminares para cálculo da amostra e da exequibilidade de estudos futuros semelhantes.

Convém ressaltar que o cálculo da amostra deve sempre ser feito antes do início do estudo, nunca posteriormente e com o objetivo de validar o resultado.

Erro tipo I

O erro tipo I (ou erro alfa) consiste em concluir que existe diferença entre os grupos estudados, quando ela, na verdade, não existe (também chamado de falso-positivo). Normalmente, considera-se uma chance aceitável desse erro ocorrer de até 5%. Uma causa comum desse erro é a realização de múltiplos testes estatísticos, testando diferentes hipóteses até se encontrar um resultado positivo. A melhor forma de evitar essa situação é definir previamente o teste estatístico a ser realizado ao final do trabalho e a principal pergunta do estudo, minimizando o número de testes para o desfecho primário. Outra situação que pode favorecer esse erro é a utilização de múltiplos desfechos com muitas variáveis, o que aumenta o número final de testes. Para desfechos secundários, entretanto, o número de testes não influencia no erro tipo I do estudo.

Em ECCR cirúrgicos, muitas vezes são utilizadas várias medidas de desfechos, uma vez que o resultado de uma cirurgia pode ser analisado sob diferentes formas: escalas para dor, escalas funcionais, escalas de qualidade de vida, escalas de satisfação, escalas de exames complementares. Mais uma vez, o desenho do estudo deve ser direcionado para responder apenas uma questão específica. Os demais desfechos devem ser analisados como desfechos secundários.

Erro tipo II

O erro tipo II consiste em concluir que não existe diferença entre os grupos estudados, quando, na verdade, ela existe (falso negativo). Por convenção, na maioria das vezes, coloca-se como limite a chance de 20% desse erro ocorrer (ou seja, poder do estudo de 80%). São causas de erro tipo II o número insuficiente de pacientes no estudo, em geral por falta do cálculo do tamanho da amostra ou erro nesse cálculo, ou ainda pela dificuldade em obter o número suficiente de sujeitos, como discutido acima. Lochner et al(10), em uma revisão da literatura sobre trauma ortopédico, evidenciam uma incidência de 90,52% deste problema em um total de 117 estudos randomizados avaliados. Em estudos pequenos, no qual os pesquisadores concluem que existe uma possibilidade de erro tipo II aumentada, uma solução é aumentar a homogeneidade do estudo para diminuir variância e aumentar o poder do estudo. Porém, essa medida reduz a validade externa do estudo.

Intenção de tratamento (Intention-to-treat)

Em um ensaio clínico, sugere-se realizar a análise dos dados obtidos baseado no grupo para qual o paciente foi selecionado, princípio denominado de análise baseada na intenção de tratamento, ou intention-to-treat analysis. Este método de avaliação dos resultados permite a proteção da randomização, ponto fundamental nos ECCR.

Nos ensaios cirúrgicos, seguir este princípio pode gerar respostas estranhas ou até mesmo incongruentes, dependendo de como esse método é aplicado. Por exemplo, um paciente sorteado para tratamento não operatório que, por qualquer motivo, é submetido ao tratamento cirúrgico, seguindo o princípio de intenção de tratamento, deveria ser analisado como não cirúrgico. Caso esse paciente venha a apresentar infecção no sítio da cirurgia, nos resultados deste trabalho teremos "ocorrência de infecção do sítio cirúrgico" como "complicação do tratamento não cirúrgico". Dessa forma, a aplicação do princípio de intenção de tratamento deve ser realizada com dados antes da realização da cirurgia de resgate, caso contrário os resultados serão enviesados.

Apesar de drop-outs serem um problema frequente em pesquisa clínica, esse problema é diferente na Ortopedia, pois, geralmente, a intervenção é aplicada plena aos pacientes (diferente de estudos com drogas nos quais os pacientes podem desistir a qualquer momento, no início ou final do estudo). Nesse aspecto, estudos em Ortopedia apresentam uma vantagem adicional. Investigadores nessa área devem, portanto, realizar medidas frequentes no caso de haver uma desistência ou cruzamento de tratamentos.

Herman et al(11), em estudo recente, observaram que apenas 16,4% dos trabalhos aplicaram adequadamente este princípio nos ECCR em Ortopedia entre 2005 e 2008. A maioria desses estudos excluiu os doentes perdidos no seguimento da análise estatística final, notadamente em ensaios que envolviam procedimentos cirúrgicos. A omissão desses dados pode levar a viés, pois afeta a integridade da randomização.

Validade externa

Quando se pretende extrapolar o resultado de um ensaio clínico, tem-se como premissa que a intervenção realizada, ou que se pretende realizar, será semelhante em todo local ou para todos os médicos. Assim, consideramos que determinado medicamento surtirá efeito semelhante se prescrito por diferentes médicos em diferentes locais. Isto porque tanto a fórmula do fármaco como sua farmacocinética e farmacodinâmica são os mesmos, independentemente de quem o prescreve. O problema é que, muitas vezes, a validade externa de ECCR é baixa. Isso ocorre em ensaios cirúrgicos por três motivos básicos: o cirurgião, o ambiente e o paciente.

A intervenção realizada por um cirurgião não é necessariamente idêntica à realizada por outro. Isto é, por mais que a técnica seja reprodutível, ela não é idêntica. Além disso, em geral, as novas técnicas cirúrgicas dependem de curva de aprendizado, curva esta que pode variar para cada técnica e para cada cirurgião. Desta forma, mesmo para o mesmo cirurgião, cirurgias realizadas em diferentes momentos podem diferir significativamente. Assim, resultados de uma técnica cirúrgica obtida por determinados autores podem ser diferentes do obtido por outros, sem implicar em falhas metodológicas ou ao efeito do acaso, mas sim em decorrência de o fato das intervenções não serem iguais. Este fenômeno, não mensurável, pode implicar em limitação à validade externa dos trabalhos cirúrgicos, principalmente para aqueles realizados por um ou poucos cirurgiões.

O ambiente de um hospital-escola, onde muitos estudos são conduzidos, também pode não ser representativo para a população geral. Além disso, pacientes participando de estudos tendem a ter uma atenção diferenciada em relação aos pacientes habituais. Finalmente, os pacientes que aceitam ingressar no estudo e aqueles que se enquadram nos - muitas vezes restritivos - critérios de inclusão podem não ser representativos da população geral.

Entretanto, particularidades dos ensaios cirúrgicos, como as descritas acima, não justificam falhas metodológicas evitáveis. Conforme relatado por Ahmad et al(12), em um estudo sobre osteoartrose do quadril e joelho, os pesquisadores falham ao descrever detalhes sobre a pesquisa. Enquanto o procedimento cirúrgico empregado foi descrito em todos, os cuidados pré e pós-operatórios e a anestesia empregada foram descritos em apenas 7%, 50% e 13%, respectivamente. A falta de informações como estas compromete gravemente a generalização dos dados e, consequentemente, a validade externa.

Recrutamento

A aceitação para a participação de um ECCR cirúrgico geralmente é menor do que 50%, sendo as principais razões apontadas pelo paciente a preferência por um dos braços de tratamento, o descontentamento com a randomização e a possibilidade de gastos maiores(13). Um procedimento cirúrgico novo e experimental gera no paciente ansiedade e apreensão maiores do que uma medicação, seja pela maioria das pessoas já ter tomado algum remédio durante a vida, mas nunca ter passado por uma cirurgia, seja pela real preocupação de uma sequela gerada por uma cirurgia mal sucedida. Assim, o recrutamento de sujeitos para um ensaio cirúrgico é mais difícil, aumentando seu tempo e muitas vezes forçando para baixo o tamanho da amostra. Apesar de não existir uma forma ideal de lidar com essa dificuldade, realizar o estudo vinculado a grandes e conceituadas instituições pode estimular a aceitação. Pequenas variações em técnicas já consagradas ou utilizar uma nova cirurgia para tratar uma patologia sem tratamento eficaz podem estimular também a entrada no estudo. Nunca se deve omitir informações sobre riscos e evidências existentes no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que todos os pacientes devem obrigatoriamente assinar previamente à entrada no estudo, como exigido pelos comitês de ética institucionais.

Outro problema importante no recrutamento é o viés de seleção. Pacientes que aceitam participar do estudo podem ter características diferentes de pacientes recebendo tratamento em um centro clínico. Nesse contexto, é importante que o grupo que não aceitou participar do estudo seja comparado com o grupo que aceitou, e, se houver diferenças em alguns fatores, estes devem ser incluídos em uma análise de covariância.

Randomização

A aleatoriedade dos pacientes demanda que ambas as técnicas cirúrgicas possam ser realizadas obedecendo a randomização. Qualquer limitação à realização de uma das técnicas (apenas em determinado dia da semana, apenas por determinado cirurgião etc) implica em risco de prejuízo a este princípio. Por exemplo, nos casos de urgências ou de traumas em que o procedimento é complexo e só é realizado por determinado cirurgião, a randomização fica sujeita à disponibilidade do médico, exigindo uma alocação por conveniência, prejudicando a aleatoriedade.

Quando o estudo envolve a comparação entre diferentes implantes, surgem mais dificuldades. Idealmente, o sorteio deveria ser feito no momento da cirurgia. Entretanto, existem desvantagens operacionais e financeiras decorrentes do transporte e esterilização dos materiais, em especial no caso de implantes fornecidos em consignação, que não fazem parte do arsenal hospitalar (os dois implantes estudados deverão estar disponíveis e esterilizados dentro da sala operatória). Por outro lado, se o sorteio for feito previamente, o risco de perda do cegamento é consideravelmente maior, já que uma série de pessoas (centro de materiais e equipe de enfermagem) saberá em que grupo se encontra o sujeito. Além disso, se o cirurgião for desmascarado, pode inserir, mesmo inconscientemente, vieses.

Outra dificuldade na randomização ocorre quando a inclusão de determinado paciente só pode ser definida após avaliação intraoperatória. Por exemplo, em um estudo de sutura meniscal, o paciente só poderá ser incluído no estudo se a sutura for possível. Desta forma, a equipe deve estar preparada para randomizar intraoperatoriamente ou utilizar um método de randomização pré-operatória que não gere desbalanços entre os grupos caso ocorra a exclusão do paciente durante a cirurgia.

Dentre os ECCR em Ortopedia publicados entre 1988 e 2000, apenas 41% apresentavam randomização considerada apropriada, de acordo com Bhandari et al(14).

Proteção da randomização (Concealment)

As formas mais utilizadas de randomização (envelopes lacrados e listas geradas por programas de computador) são suscetíveis a vieses. No primeiro caso, os envelopes devem ser lacrados de tal maneira que seja impossível a abertura sem rasgá-lo, e confeccionado com material opaco, que impossibilite a visualização por transiluminação(1). As listas geradas por softwares devem permanecer protegidas do pesquisador executante por toda a duração do estudo, devendo ficar aos cuidados de alguém que não participe do ensaio. Os métodos ideais de proteção da lista de randomização seriam aqueles mantidos por empresas terceirizadas e disponíveis 24h por dia, através da internet ou telefone. Não são consideradas formas válidas de aleatorização a utilização de data de nascimento e número de registro hospitalar, assim como uma lista que seja aberta para leitura de todos.

Como citado acima, para protegê-la em ensaios comparando dois procedimentos cirúrgicos, de preferência esta deve ser feita dentro da sala de cirurgia, após a anestesia, diminuindo a chance de desmascarar a coleta de dados pré-operatória e o próprio paciente.

Cegamento

O cegamento, ou mascaramento, é parte importante na realização dos ECCR, minimizando os vieses. O estudo do tipo duplo-cego (paciente que recebe a intervenção e o médico ou condutor do estudo cegos) é o mais utilizado dentre os ECCR, sendo algumas vezes sugerido também o triplo-cego (associa-se o mascaramento de quem analisa os dados e quem escreve o texto)(15). Estes termos podem ser motivos de confusão para o leitor, e a recomendação mais aceita atualmente é a de que relate-se, de maneira descritiva, quem foi cegado no estudo(16).

O mascaramento em ensaios não farmacológicos já foi evidenciado como mais trabalhoso do que nos farmacológicos, em um estudo comparativo de Boutron et al(17). São dificuldades no que diz respeito ao mascaramento dos ECCR envolvendo intervenções relacionadas a procedimentos cirúrgicos:

a) Cegamento do cirurgião

Podem se apresentar duas situações: estudos comparando duas intervenções cirúrgicas, e estudos comparando uma intervenção cirúrgica com um tratamento não cirúrgico.

Para o cirurgião que realiza a cirurgia, se a técnica operatória difere (seja pela via ou por implante diferentes), o cegamento é impossível(18). Pode-se argumentar que, se a coleta dos dados pós-operatórios for cegada, minimiza-se um viés; mas, se o cirurgião acreditar mais em uma das técnicas, pode se empenhar mais nesta, induzindo a erros. Se a técnica operatória é idêntica, sendo a intervenção a adição de algum fator adicional (injeção de fator de crescimento, medicação pós-operatória, uso de uma nova sutura etc), pode ser possível o cegamento, inclusive do cirurgião, desde que a intervenção permita ser mascarada por placebo ou tenha os mesmos aspectos físicos que o controle.

Se o trabalho envolve um grupo não cirúrgico, obviamente não é possível cegar o cirurgião.

Cabe ressaltar que em estudos nos quais o cirurgião não é mascarado, alguns dados coletados no próprio ato cirúrgico, como o volume de sangramento, por exemplo, são passíveis de viés de coleta.

b) Cegamento do paciente

Esta forma de mascaramento é muito difícil de ser realizada na comparação entre o tratamento cirúrgico e não cirúrgico, por motivos óbvios.

Quando o objetivo do trabalho envolve a comparação entre duas técnicas cirúrgicas diferentes, existe nova dificuldade quando as vias de acesso utilizadas são diferentes. Durante o seguimento, caso o paciente tenha acesso aos exames radiográficos (o que normalmente ocorre), diferenças entre os implantes utilizados também podem ser constatadas e, desta maneira, alterar a confiabilidade dos dados a serem analisados.

Estudos com cegamento praticamente "perfeito" dos pacientes existem, como o descrito por Moseley et al(19). Neste ensaio clínico sobre a eficácia da artroscopia do joelho no tratamento da osteoartrose do joelho, três grupos foram avaliados: desbridamento artroscópico, simples lavagem da articulação e cirurgia placebo, nos quais foram feitas apenas as incisões na pele (sham surgery). O grupo placebo, durante o procedimento, assistia um vídeo simulando a cirurgia. Mas as implicações éticas de estudos como este são evidentes, e raramente é obtida a sua aprovação nos Comitês de Ética e Pesquisa e junto aos pacientes(20,21). É necessário lembrar que se o estudo tiver qualquer problema de cegamento em outras fases (como na alocação ou na coleta de dados), uma cirurgia placebo se torna completamente antiética. Além disso, deve ser lembrado que uma cirurgia não é só uma incisão e sutura na pele; se a cirurgia gerar outros sinais (como derrame articular, hematoma etc) no período pós-operatório, o cegamento pode ser comprometido e uma cirurgia placebo (só incisão, por exemplo) pode não ser justificada.

Em caso de dificuldade de cegamento, o grupo de pesquisadores deve considerar soluções alternativas, como uso de desfechos objetivos (como medidas laboratoriais) ou desfechos a curto prazo no qual é mais factível ter o paciente cego por um período menor de tempo - por exemplo, durante a internação hospitalar.

c) Cegamento do avaliador

O avaliador independente, geralmente um médico ou fisioterapeuta que não participa diretamente do trabalho, é peça importante dos ECCR dentro da Ortopedia. A aplicação das escalas funcionais, presentes em virtualmente todos os estudos deste tipo, são realizadas por ele. O avaliador pode apresentar perda do mascaramento, especialmente se os procedimentos em estudo são realizados por vias de acesso diferentes, gerando cicatrizes cirúrgicas que levam à identificação do grupo. Mascarar a cicatriz em todas as avaliações, com a utilização de roupas apropriadas, é uma das formas de assegurar este princípio, mas, na prática diária, especialmente durante as sessões de fisioterapia, isto pode não ser atingido.

Quando as diferentes técnicas cirúrgicas exigirem protocolos de reabilitação diferentes, o mascaramento pode mais uma vez ser perdido, se o fisioterapeuta que realiza as sessões regulares for o mesmo que aplica as escalas funcionais.

Poolman et al(22), em uma revisão sistemática, constataram que apenas 50% dos ECCR em Ortopedia realizaram este mascaramento. Além disso, evidenciaram que o efeito do tratamento foi significativamente maior nos estudos sem o cegamento, explicitando o viés de avaliação.

d) Cegamento do avaliador dos dados

Este mascaramento é o mais simples de ser obtido, bastando a planilha de resultados não conter a descrição do grupo ao qual o paciente pertence, apenas números, e poderia ser realizado em virtualmente todos os ECCR. Entretanto, nenhum artigo publicado em uma revista ortopédica citou este método entre os anos de 1988 e 2000, de acordo com Bhandari et al(14).

Aderência

Diferentemente de diversas condições clínicas que exigem o controle contínuo e regular por longos períodos, eventualmente por toda a vida do paciente, como hipertensão ou diabetes, as intervenções ortopédicas muitas vezes são "curativas". Doenças agudas (fraturas) e mesmo afecções crônicas (artrose submetida a artroplastia, por exemplo) apresentam melhora significativa dos sintomas em curto e médio prazos, e, na ausência de complicações, o seguimento pode ser difícil de ser mantido por longo prazo, gerando perda de sujeitos.

Outra dificuldade na aderência de pacientes a protocolos cirúrgicos ortopédicos é a necessidade de reabilitação. Tomar um comprimido em casa demanda menos do paciente do que, após uma cirurgia e com dor, sair de casa e se deslocar ao local da fisioterapia. Como a falta de reabilitação adequada ou desistência da mesma muitas vezes é critério de exclusão do trabalho e pode comprometer o resultado cirúrgico final, este problema deve ser lembrado ao desenvolver o protocolo. Facilitar e simplificar ao máximo os procedimentos pós-operatórios estimulam uma melhor aderência por parte dos pacientes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os ECCR têm aplicação excelente na avaliação de novas medicações. Para uma nova medicação ser aprovada atualmente pelo Food and Drug Administration (FDA)* norte-americano, ela deverá passar por avaliações em diversos níveis (estudos em animais, análise de segurança e estudos clínicos). Antes da regularização do produto, os chamados estudos de fase III envolvem milhares de pacientes de maneira randomizada, e mesmo após a comercialização é mantida a monitorização de amostras ainda maiores de pacientes. No caso de intervenções cirúrgicas não há uma padronização de regras específicas para sua aprovação, não sendo exigidos estudos controlados e randomizados para uma determinada técnica cirúrgica ser incorporada na prática clínica. Normalmente, bastam séries de casos mostrarem bons resultados clínicos para que a técnica seja utilizada.

Os ECCR apresentam diversas vantagens, principalmente no que diz respeito à diminuição dos vieses na coleta e análise dos dados, justificando o seu grande prestígio na pesquisa médica. Entretanto, não são poucas as limitações e dificuldades na aplicação dos seus princípios aos estudos nas áreas cirúrgicas. Estas particularidades geram desvantagens ao buscar-se a publicação em revistas médicas gerais, onde a disputa por espaço editorial é acirrada.

Um ponto importante é que muitas das dificuldades na realização de ECCR podem ser resolvidas com soluções alternativas, como algumas discutidas neste estudo. Em outros casos, pesquisadores devem estar cientes das limitações e avaliarem se os dados coletados serão válidos. Vale ressaltar que estudos observacionais abertos também são importantes, especialmente em fases iniciais de teste de uma nova intervenção. Porém, nesse caso, são fundamentais técnicas bem elaboradas de análise de dados com construção de modelos de regressão multivariada controlando para potenciais confundidores.

Concluindo, ortopedistas devem priorizar a realização de ECCR sempre que factível. Apesar do conhecimento derivado de outros desenhos de estudo considerados com menor nível de evidência (caso-controle, coorte, séries de casos, descrições de técnicas e opiniões de especialistas) também ser importante, vieses e validade de resultados desses estudos devem ser interpretados criticamente, e, se possível, serem analisados juntamente com resultados de ECCR.

Trabalho recebido para publicação: 20/12/2010, aceito para publicação: 21/03/2011.

Trabalho realizado no LIM 41 - Laboratório de Investigação Médica do Sistema Musculoesquelético do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Os autores declaram inexistência de conflito de interesses na realização deste trabalho / The authors declare that there was no conflict of interest in conducting this work

  • 1. Zlowodzki M, Jonsson A, Bhandari M. Common pitfalls in the conduct of clinical research. Med Princ Pract. 2006;15(1)1-8.
  • 2. Chaudhry H, Mundi R, Singh I, Einhorn TA, Bhandari M. How good is the orthopaedic literature. Indian J Orthop. 2008;42(2):144-9.
  • 3. Soucacos PN, Johnson EO, Babis G. Randomised controlled trials in orthopaedic surgery and traumatology: overview of parameters and pitfalls. Injury. 2008;39(6):636-42.
  • 4. Portney LG, Watkins MP. Validity in experimental design. In: Portney LG, Watkins MP, editores. Foundations of clinical research - applications to practice. 3rd ed. New Jersey: Pearson Prentice Hall; 2009. p. 161-91.
  • 5. Paradis C. Bias in surgical research. Ann Surg. 2008;248(2):180-8.
  • 6. Black N. Evidence-based surgery: a passing fad? World J Surg. 1999;23(8):789-93.
  • 7. Freedman KB, Back S, Bernstein J. Sample size and statistical power of randomised, controlled trials in orthopaedics. J Bone Joint Surg Br. 2001;83(3):397-402.
  • 8. Bhandari M, Jönsson A, Bühren V. Conducting industry-partnered trials in orthopaedic surgery. Injury. 2006;37(4):361-6.
  • 9. Lynch JR, Cunningham MRA, Warme WJ, Schaad DC, Wolf FM, Leopold SS. Commercially funded and United States-based research is more likely to be published; Good-quality studies with negative outcomes are not. J Bone Joint Surg. 2007;89(5):1010-8.
  • 10. Lochner HV, Bhandari M, Tornetta P. Type-II error rates (beta errors) of randomized trials in orthopaedic trauma. J Bone Joint Surg. 2001;83(11):1650-5.
  • 11. Herman A, Botser IB, Tenenbaum S, Chechick A. Intention-to-Treat Analysis and Accounting for Missing Data in Orthopedic Randomized Clinical Trials. J Bone Joint Surg Am. 2009;91(9):2137-43.
  • 12. Ahmad N, Boutron I, Moher D, Pitrou I, Roy C, Ravaud P. Neglected external validity in reports of randomized trials: the example of hip and knee osteoarthritis. Arthritis Rheum. 2009;61(3):361-9.
  • 13. Abraham NS, Young JM, Solomon MJ. A systematic review of reasons for nonentry of eligible patients into surgical randomized controlled trials. Surgery. 2006;139(4):469-83.
  • 14. Bhandari M, Richards RR, Sprague S, Schemitsch EH. The quality of reporting of randomized trials in The Journal of Bone and Joint Surgery from 1988 through 2000. J Bone Joint Surg Am. 2002;84(3):388-96.
  • 15. Gotzsche PC. Blinding during data analysis and writing of manuscripts. Control Clin Trials. 1996;17(4):285-90.
  • 16. Schulz KF, Grimes DA. Blinding in randomised trials: hiding who got what. Lancet. 2002;359(9307):696-700.
  • 17. Boutron I, Tubach F, Giraudeau B, Ravaud P. Blinding was judged more difficult to achieve and maintain in nonpharmacologic than pharmacologic trials. J Clin Epidemiol. 2004;57(6):543-50.
  • 18. Simunovic N, Devereaux PJ, Bhandari M. Design considerations for randomised trials in orthopaedic fracture surgery. Injury. 2008;39(6):696-704.
  • 19. Moseley JB, O'Malley K, Petersen NJ, Menke TJ, Brody BA, Kuykendall DH, et al. A controlled trial of arthroscopic surgery for osteoarthritis of the knee. N Engl J Med. 2002;347(2):81-8.
  • 20. Heckerling PS. Placebo surgery research: a blinding imperative. J Clin Epidemiol. 2006;59(9):876-80.
  • 21. Horng S, Miller FG. Is placebo surgery unethical? N Engl J Med. 2002;347(2):137-9.
  • 22. Poolman RW, Struijs PAA, Krips R, Sierevelt IN, Marti RK, Farrokhyar F, et al. Reporting of outcomes in orthopaedic randomized trials: Does blinding of outcome assessors matter? J Bone Joint Surg Am. 2007;89(3):550-8.
  • Correspondência:

    Rua Ovídio Pires de Campos, 333, Cerqueira Cesar
    05403-010 - São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Out 2011
    • Data do Fascículo
      2011

    Histórico

    • Recebido
      20 Dez 2010
    • Aceito
      21 Mar 2011
    Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia Al. Lorena, 427 14º andar, 01424-000 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: 55 11 2137-5400 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: rbo@sbot.org.br