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Impacto isquiofemoral: uma etiologia de quadril doloroso: relato de caso

Resumos

A associação entre dor no quadril, anormalidade do músculo quadrado femoral na ressonância magnética (RM) e estreitamento do espaço isquiofemoral tem sido relatada na literatura atual, levantando a possibilidade de que essa lesão muscular seja causada pelo impacto isquiofemoral. Tal diagnóstico foi observado em algumas mulheres de meia-idade com ou sem história de trauma ou cirurgia. Os autores relatam aqui uma mulher de 31 anos de idade, que apresentava dor no quadril sem história de trauma, com evidência de estreitamento do espaço isquiofemoral e edema no músculo quadrado femoral. Foi realizado tratamento não cirúrgico com alívio dos sintomas. O diagnóstico de impacto isquiofemoral deve ser considerado em pacientes do sexo feminino com queixa de dor no quadril sem outra causa evidente.

Quadril; Nervo Ciático; Ísquio; Fêmur


An association between hip pain and quadratus femoris muscle abnormality on magnetic resonance imaging (MRI) with concurrent narrowing of the ischiofemoral space has been reported in the recent literature. This raises the possibility that the muscle damage observed is due to ischiofemoral impingement. This diagnosis has been noted in middle-aged females either with or without a history of trauma or surgery, is a rarely described feature. We report here on a 31-year-old woman who presented with non-traumatic hip pain and evidence of narrowing of the ischiofemoral space and edema in the quadratus femoris. Nonsurgical treatment was administered, which relieved her hip pain. The diagnosis of ischiofemoral impingement should be considered in female patients complaining of hip pain without any other evident cause.

Hip; Sciatic Nerve; Ischium; Femur


RELATO DE CASO

Impacto isquiofemoral – uma etiologia de quadril doloroso: relato de caso

Carlos Massao Aramaki YanagishitaI; Guilherme Guadagnini FalóticoI; Davi Araújo Veiga RosárioII; Gustavo Gambuggi PuginaIII; André Azambuja Neves WeverIV; Edmilson Takehiro TakataV

IMédico Estagiário do Grupo de Quadril da Escola Paulista de Medicina – Unifesp – São Paulo, SP, Brasil

IIMédico Residente do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Escola Paulista de Medicina – Unifesp – São Paulo, SP, Brasil

IIIMédico Estagiário do Grupo de Quadril do Hospital IFOR – São Bernardo do Campo, SP, Brasil

IVMédico Assistente do Grupo de Quadril da EPM – Unifesp – São Paulo, SP, Brasil

VChefe do Grupo de Quadril da Escola Paulista de Medicina – Unifesp; Mestre em Ortopedia pela EPM – Unifesp – São Paulo, SP, Brasil

Correspondência Correspondência: Rua Borges Lagoa, 1.065, conjunto 126 – Vila Clementino 04038-030 – São Paulo, SP E-mail: cmassao5@yahoo.com.br

RESUMO

A associação entre dor no quadril, anormalidade do músculo quadrado femoral na ressonância magnética (RM) e estreitamento do espaço isquiofemoral tem sido relatada na literatura atual, levantando a possibilidade de que essa lesão muscular seja causada pelo impacto isquiofemoral. Tal diagnóstico foi observado em algumas mulheres de meia-idade com ou sem história de trauma ou cirurgia. Os autores relatam aqui uma mulher de 31 anos de idade, que apresentava dor no quadril sem história de trauma, com evidência de estreitamento do espaço isquiofemoral e edema no músculo quadrado femoral. Foi realizado tratamento não cirúrgico com alívio dos sintomas. O diagnóstico de impacto isquiofemoral deve ser considerado em pacientes do sexo feminino com queixa de dor no quadril sem outra causa evidente.

Descritores: Quadril; Nervo Ciático; Ísquio; Fêmur

INTRODUÇÃO

O crescente número de exames de ressonância magnética (RM) na investigação de dores no quadril, assim como uma melhor interpretação destes exames, possibilitou averiguar alterações menos comuns que mimetizam doenças articulares ou extra-articulares do quadril.

A associação entre dor no quadril e alteração de sinal do músculo quadrado femoral (MQF) na ressonância magnética vem sendo discutida na literatura atual. A diminuição do espaço entre a tuberosidade isquiática e o trocânter menor, com consequente impacto isquiofemoral durante a movimentação repetida do quadril, pode ser responsável pela lesão do músculo quadrado femoral(1). A descrição inicial do impacto isquiofemoral em dois pacientes após artroplastia do quadril e em um paciente após osteotomia da região proximal do fêmur foi publicada na década de 70 e atribuiu o impacto ao aumento de tamanho do trocânter menor e a um estreitamento isquiofemoral(2).

Recentemente, a diminuição do espaço isquiofemoral foi observada também em pacientes sem cirurgias prévias no quadril e naqueles sem qualquer história de trauma(1-3), assim como alterações de sinal do músculo quadrado femoral na RM foram observadas também em pacientes sem estreitamento do espaço isquiofemoral(4-6), mantendo a patogênese do impacto isquiofemoral incerta.

O presente relato de caso tem por objetivo demonstrar a possível relação entre o impacto isquiofemoral e as alterações em exames de ressonância magnética do músculo quadrado femoral, assim como levantar a possibilidade do diagnóstico de impacto isquiofemoral nos casos de quadril doloroso sem causa evidente.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 31 anos, com história de dor na região posterior do quadril direito há quatro anos, sem história de trauma, com início insidioso e piora progressiva, principalmente aos esforços. Procurou atendimento ortopédico em outros serviços, sendo diagnosticada e tratada clinicamente como lombalgia mecânica.

Como não houve melhora do quadro, há oito meses procurou o Grupo de Quadril Adulto da Escola Paulista de Medicina/Unifesp. Na ocasião, relatava quadro de dor glútea profunda à direita, sem irradiação, não relacionada com a posição do tronco. No exame físico, apresentava trofismo muscular normal e marcha antálgica à direita. O arco de movimento dos quadris era normal. Dentre as manobras especiais, houve positividade no teste de Freiberg(7) e dor à manobra realizada em decúbito lateral com quadril em extensão, adução e movimentos de rotação interna e externa (teste sugerido pelos autores). Laségue, FADURI (flexão, adução e rotação interna), teste do piriforme e sinal de Pace foram negativos.

Dentre os exames complementares, foram realizados exames radiográficos da pelve e do quadril direito que demonstravam valgismo do colo femoral e estreitamento do espaço isquiofemoral bilateralmente e presença de cistos no ísquio direito (Figura 1). Frente aos achados clínicos e radiográficos e à incerteza diagnóstica, foi solicitada RM da pelve, que demonstrou aumento de sinal do músculo quadrado femoral nas sequências ponderadas em T2 (Figura 2). Feito diagnóstico de impacto isquiofemoral e introduzido tratamento não cirúrgico, baseado em anti-inflamatório não hormonal por sete dias e fisioterapia motora diária para alongamento e fortalecimento da musculatura pélvica, com melhora progressiva da sintomatologia. Após três meses de tratamento, paciente apresentou significativa melhora funcional, retomou atividades de Pilates, sem qualquer restrição.



DISCUSSÃO

O objetivo do relato acima é demonstrar aos ortopedistas esta nova entidade, que tende a ser mais diagnosticada com a ampliação no uso da RM na investigação do quadril doloroso. Abordaremos a anatomia, aspectos clínicos e radiológicos e os possíveis tratamentos do impacto isquiofemoral.

Anatomia

O músculo quadrado femoral (MQF) está localizado no aspecto posterior da articulação do quadril (Figuras 3 e 4). Origina-se na margem inferolateral do ísquio, anteriormente na tuberosidade isquiática, imediatamente anterior à musculatura isquiotibial. A inserção se dá ao longo da porção posteromedial do fêmur proximal, no tubérculo quadrado da linha intertrocantérica posterior. As fibras do MQF têm orientação horizontal e são entremeadas por gordura em sua porção isquiática(8).



As relações anatômicas são: anteriormente com o músculo obturador externo e posteriormente com o nervo ciático. No aspecto superior, encontra-se o músculo gêmeo inferior e na margem inferior está o adutor magno(8) (Figura 4).

Inervação e função

O músculo quadrado femoral é inervado por um pequeno ramo do plexo sacral, formado pelas raízes de L4, L5 e S1. O nervo para o MQF exterioriza na pelve através da incisura isquiática maior, com trajeto anteroinferior aos músculos gêmeos e ao obturador interno e penetra no MQF em sua superfície anterior. Este músculo realiza adução e rotação externa do quadril(8).

Avaliação clínica dos pacientes

A avaliação clínica dos pacientes com impacto isquiofemoral é bastante difícil, visto que as queixas são vagas e imprecisas, podendo ser confundidas com outras patologias lombares, intra ou extra-articulares do quadril, inclusive com a dor glútea profunda. Em nosso caso pudemos constatar uma exacerbação da sintomatologia através da manobra realizada em decúbito lateral com quadril em extensão, adução e movimentos de rotação interna e externa (teste sugerido pelos autores), assim como no teste de Freiberg(7), que é utilizado na pesquisa da síndrome do piriforme e consiste em dor à rotação interna com quadril em extensão.

Avaliação das imagens de RM

Evidentemente que os diversos cortes da RM são complementares e necessários; porém, o MQF é melhor evidenciado nos cortes axiais(4,8) (Figura 2). Nesta projeção, é possível avaliar sua origem, inserção, assim como suas relações anteriores e posteriores. O nervo ciático e os músculos isquiotibiais estão posteriormente relacionados e devem ser cuidadosamente inspecionados, por serem sítios possíveis de lesão. Na inserção femoral observa-se uma convergência das fibras(8).

Tipos de lesões ao músculo quadrado femoral

As lesões do MQF são descritas como estiramento miotendíneo, ruptura parcial e impacto no ventre muscular(4,5).

As lesões por impacto são mais frequentes em mulheres de meia-idade e idosas, com quadro de dor glútea posterior ou dor crescente com ou sem um evento traumático inicial considerável(8). A dor pode irradiar para a parte posterior da coxa, possivelmente, por uma irritação do nervo ciático que se encontra na porção posterior do músculo(9,10).

O estiramento miotendíneo se apresenta com edema muscular com ou sem presença de líquido, visto principalmente na sua porção femoral, enquanto que as rupturas podem ser evidenciadas por edema e líquido posterior ao trocânter menor(8).

Impacto isquiofemoral

Johnson(2), em 1977, e, posteriormente, Patti et al(3),associaram o estreitamento isquiofemoral com dor no quadril. Kassarjian(5)relata impacto entre o espaço do ísquio ou músculos isquiotibiais e a porção posteromedial do fêmur, comprimindo o músculo quadrado femoral.Uma variação anatômica na origem dos músculos isquiotibiais também poderia ocasionar impacto de partes moles, sem que haja significativo estreitamento isquiofemoral(1).

Diversas etiologias foram aventadas: aumento no diâmetro femoral na altura do trocânter menor, posição posteromedial congênita do fêmur, redução do offset horizontal nas artroplastias do quadril, colo femoral valgo, pós-operatório de osteotomias valgizantes, consolidação viciosa de fraturas intertrocanterianas, coxartrose com migração superomedial e osteocondromas no quadril(1-3). A morfologia feminina, com pelve larga e rasa, predispõe ao impacto isquiofemoral, sendo que todos os casos documentados na literatura são em mulheres(1).

Os achados radiográficos são infrequentes e, quando presentes, são inespecíficos para o impacto isquiofemoral. Patti et al(3) relataram, em um de seus casos, a presença de esclerose heterogênea no trocânter menor e no ísquio.

Na RM, as alterações de sinal desta lesão são tipicamente centradas no ventre muscular, local de máxima de compressão (Figura 2), diferente do edema causado pelo estiramento miotendíneo, que se situa na junção miotendínea insercional distal(8).Torriani et al(1), em sua casuística de 12 quadris, observaram edema em todos os casos, rupturas parciais em 33% e infiltração gordurosa em 8%.

Outras entidades envolvendo o MQF, como a tendinopatia(9) e as lesões degenerativas dos ramos sacrais que inervam o quadrado femoral, podem ser causa de dor no quadril.O achado de coleções líquidas na região do trocânter menor deve ser diferenciado das bursites do músculo iliopsoas, enquanto que as coleções junto à tuberosidade isquiática têm como diagnóstico diferencial a bursite isquiática(8).

Alguns autores, como Torriani et al(1), tentaram correlacionar um estreitamento entre a tuberosidade isquiática e o trocânter menor com o impacto sobre o MQF. Porém, em virtude da pequena amostra de casos e do difícil controle sobre a rotação do membro no momento dos exames de imagem, essa correlação tem validade incerta.

Há uma grande dificuldade para formulação diagnóstica desta entidade, uma vez que a história e o exame físico são imprecisos e de difícil interpretação(9-11). Portanto, a ressonância magnética é imprescindível para o correto diagnóstico(4).

Dentre os tratamentos possíveis, estão descritos exercícios apropriados de alongamento(10), infiltrações com acetato de metilprednisolona(11), neuroestimulação e fisioterapia ultrassonografia percutânea(9). Assim como em nosso caso, O'Brien e Bui-Mansfield(4), em seu estudo, consideraram que as intervenções não cirúrgicas foram adequadas para uma boa resolução nos casos de dor no quadril decorrentes de processos inflamatórios do músculo quadrado femoral.

O impacto isquiofemoral representa uma das etiologias de dor no quadril. Ainda que infrequente, ele deve ser reconhecido e adequadamente abordado pelos ortopedistas, pois somente com uma maior casuística e o compartilhamento de experiências poderemos estabelecer um padrão para o diagnóstico clínico e o tratamento uniforme desta entidade.

Trabalho recebido para publicação: 25/10/2011, aceito para publicação: 21/12/2011.

Os autores declaram inexistência de conflito de interesses na realização deste trabalho

Trabalho realizado no Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Escola Paulista de Medicina EPM – Unifesp.

  • 1. Torriani M, Souto SC, Thomas BJ, Ouellette H, Bredella MA. Ischiofemoral impingement syndrome: an entity with hip pain and abnormalities of the quadratus femoris muscle. AJR Am J Roentgenol. 2009;193(1):186-90.
  • 2. Johnson KA. Impingement of the lesser trochanter on the ischial ramus after total hip arthroplasty. Report of three cases. J Bone Joint Surg Am. 1977;59(2):268-9.
  • 3. Patti JW, Ouellette H, Bredella MA, Torriani M. Impingement of lesser trochanter on ischium as a potential cause for hip pain. Skeletal Radiol. 2008;37(10):939-41.
  • 4. O'Brien SD, Bui-Mansfield LT. MRI of quadratus femoris muscle tear: another cause of hip pain. AJR Am J Roentgenol. 2007;189(5):1185-9.
  • 5. Kassarjian A. Signal abnormalities in the quadratus femoris muscle: tear or impingement? AJR Am J Roentgenol. 2008;190(6):W379.
  • 6. Bui-Mansfield LT, O'Brien SD. Reply to letter. Am J Roentgenol. 2008;190(6):W380-1.
  • 7. Freiberg AH, Vinke TH. Sciatica and the sacroiliac joint. J Bone Joint Surg Am 1934;16:126-36.
  • 8. Kassarjian A, Tomas X, Cerezal L, Canga A, Llopis E. MRI of the quadratus femoris muscle: anatomic considerations and pathologic lesions. AJR Am J Roentgenol. 2011;197(1):170-4.
  • 9. Peltola K, Heinonen OJ, Orava S, Mattila K. Quadratus femoris muscle tear: an uncommon cause for radiating gluteal pain. Clin J Sport Med. 1999;9(4):228-30.
  • 10. Willick SE, Lazarus M, Press JM. Quadratus femoris strain. Clin J Sport Med. 2002;12(2):130-1.
  • 11. Klinkert P Jr, Porte RJ, de Rooij TP, de Vries AC. Quadratus femoris tendinitis as a cause of groin pain. Br J Sports Med. 1997;31(4):348-9.
  • Correspondência:

    Rua Borges Lagoa, 1.065, conjunto 126 – Vila Clementino
    04038-030 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      2012

    Histórico

    • Recebido
      25 Out 2011
    • Aceito
      21 Dez 2011
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