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Variação anatômica do músculo piriforme como causa de dor glútea profunda: diagnóstico por neurografia RM e seu tratamento

Resumos

Paciente do sexo feminino, 42 anos, com histórico de lombociatalgia à esquerda havia 17 anos. O diagnóstico definitivo da etiologia da dor só foi evidenciado após a neurografia por ressonância magnética do ciático. Nesse exame identificou-se a presença de variação anatômica entre o músculo piriforme e o nervo ciático. Descrevemos detalhes sobre a técnica de imagem e sua importância nos quadros de lombociatalgia refratária, como também o tratamento instituído para o caso.

Síndrome do músculo piriforme; Diagnóstico; Imagem por ressonância magnética; Endoscopia


Female patient, 42 years old with a history of low back pain on the left for seventeen years in which the definitive diagnosis of the etiology of pain was evident after the completion of neurography magnetic resonance imaging of the sciatic nerve. In this test it was identified the presence of an anatomical variation in the relationship between the piriformis muscle and sciatic nerve. We discuss details of this imaging technique and its importance in the frames of refractory low back pain. We also describe the treatment given to the case.

Piriformis Muscle Syndrome Diagnosis Magnetic Resonance Imaging; Endoscopy


Introdução

Em 1928, Yeoman foi o primeiro a descrever o músculo piriforme como fator etiológico de ciatalgia e lombociatalgia.1 Entre o nervo ciático e o músculo piriforme existem muitas variações anatômicas e alguns autores relacionaram essa condição com a síndrome do piriforme2 e a síndrome de dor glútea profunda.3

Por causa da semelhança desse quadro com afecções da região lombar, não existe consenso em relação ao diagnóstico, não havendo critérios específicos para tal.4 Nesse contexto, além de critérios clínicos e exame físico direcionado, na maioria dos pacientes podemos usar a ressonância magnética, principalmente na avaliação da coluna lombossacra. No entanto, nem sempre esse método diagnóstico, quando feito por técnicas tradicionais, é capaz de identificar a origem do problema, principalmente quando há envolvimento do plexo lombossacro ou do nervo ciático. Nesses casos, a neurografia por ressonância magnética é o exame de escolha na definição de alterações intrínsecas no nervo ciático, possíveis variações anatômicas e caracterização de compressão extrínseca ao feixe nervoso, permitindo melhor planejamento cirúrgico.5

Nessa paciente, com histórico de lombociatalgia esquerda havia dezessete anos, o diagnóstico definitivo da etiologia da dor só foi conseguido pela neurografia por ressonân- cia magnética, sendo posteriormente feito tratamento endoscópico das alterações encontradas.

Relato do caso

Paciente, sexo feminino, 42 anos, fisioterapeuta. Aos 25 anos iniciou quadro de lombociatalgia à esquerda, sendo, na época, diagnosticada espondilolistese L5-S1, com hérnia discal associada. Após período de seis meses de tratamento com analgésicos e fisioterapia, evoluiu com déficit de força de extensão do hálux, sendo então submetida à artrodese L5-S1 sem instrumentação. Mesmo com esse tratamento, frequentemente sentia dores recorrentes na região glútea esquerda. Havia dois anos (fim de 2009), evoluiu com pioria da dor sem fator de melhoria, o que a impediu de continuar trabalhando. A dor piorava ao se sentar e no ortostatismo prolongado. Desde então fez tratamento com infiltração de cortisona na região glútea, com melhoria fugaz. Nos últimos dois anos fez cinco exames de ressonância magnética de coluna lombossacra e do quadril esquerdo, sem elucidação diagnóstica (Fig. 1). Em fevereiro de 2010 fez aplicação de toxina botulínica no músculo piriforme e permaneceu assintomática por quatro meses. Em maio de 2011, com a recidiva dos sintomas, procurou-nos para investigação diagnóstica e conduta.

Fig. 1
RM com diagnóstico normal. Plano axial T1 (a), FSE T2 com saturação de gordura nos planos axial (b) e coronal (c) com 5 mm de espessura - os músculos piriformes (*) são simétricos, sem alteração do sinal em T2. Os nervos ciáticos (setas) apresentam espessura e intensidade do sinal preservadas, sem obliteração da gordura perineural. O ventre muscular acessório do músculo piriforme esquerdo (cabeça de seta) é mais bem observado na neurografia por RM (d) com 1 mm de espessura.

Diagnóstico

Os testes de Friberg4 (adução e rotação interna passiva forçada do membro inferior acometido) e Pace4 (abdução e rotação externa contra resistência) eram positivos, a paciente apresentava dor na região glútea, que piorava com a palpação na topografia dos rotadores externos do quadril, a aproximadamente 1 cm lateral ao ísquio. Com a associação do exame físico ao relato de melhoria temporária da sintomatologia com a aplicação de toxina botulínica no músculo piriforme, suspeitou-se do diagnóstico de síndrome de dor glútea profunda. Após análise da ressonância magnética dos quadris e da coluna lombo-sacra com resultado normal (Fig. 1), foi feita neurografia por RM da região do quadril esquerdo. Também foi usado equipamento Philips (Achieva) de 1,5 Tesla, bobina phased array, sequência volumétrica isotrópica denominada Vista, T2 com TR/TE de 4.500/90 ms, espessura de 1 mm e FOV de 28 cm. Em seguida foram feitas reformatações multiplanares no maior eixo do nervo ciático (Fig. 2).

Fig. 2
Neurografia por RM - reformatação no maior eixo do nervo ciático (seta) do lado direito (a) que passa anteriormente ao músculo piriforme. No lado esquerdo (b) o ventre muscular acessório do piriforme (*) se insinua entre as bandas fibular comum e tibial do nervo ciático.

Foi identificado ventre muscular acessório do piriforme esquerdo (variação anatômica), sendo que o ramo fibular do nervo ciático passava por entre as fibras desse ventre acessório e o músculo piriforme propriamente dito (Fig. 2), o que corresponde a uma variação Tipo B (Fig. 3), segundo a classificação de Beaton e Anson.5 Em virtude disso, ocorria compressão e tensionamento do nervo ciático e consequentemente dor, refratária aos tratamentos até então instituídos. O tendão do músculo piriforme na verdade agia como um dardo, transfixando o nervo.

Fig. 3
Classificação de Beaton e Anson para as variações anatômicas entre o músculo piriforme e o nervo ciático.

Tratamento

Em julho de 2011, com o uso dos portais peritrocantéricos anterior e posterior e do portal auxiliar (Fig. 5), foi feita a liberação endoscópica do piriforme por meio de sua massa muscular, associada à tenotomia (Fig. 4).

Fig. 4
(a) imagem transoperatória da variação anatômica do músculo piriforme e (b) correlação com a imagem da neurografia por RM (seta). Imagem pós-operatória (c) após liberação cirúrgica do músculo piriforme.

Fig. 5
Portais artroscópicos paratrocantérico anterior (PTA), paratrocantérico posterior (PTP) e portal auxiliar (PAX).

No período pós-operatório, foi adotado protocolo de reabilitação específico para esses casos, usando-se exercícios de alongamento, crioterapia e reforço muscular. Após nove meses de cirurgia, a paciente encontrava-se assintomática.

Discussão

As primeiras descrições do músculo piriforme atuando como fator etiológico de ciatalgia e lombociatalgia datam de 1928, por Yeoman.1 A presença de variações anatômicas entre o nervo ciático e o músculo piriforme tem sido relacionada com o surgimento da síndrome do piriforme,2 caracterizada por distúrbios sensitivos, motores e tróficos na área de inervação do nervo ciático. A incidência dessa síndrome na população é de apenas 6%, sendo mais comum no sexo feminino do que no sexo masculino.6 Em cerca de 83% da população o nervo ciático deixa a pelve em tronco único e passa abaixo do músculo piriforme, mantendo um trajeto descendente em direção à fossa poplítea, onde se divide em dois ramos terminais, o nervo fibular comum e o tibial.5 Dentre os pacientes que apresentam variação anatômica, 81% têm aspecto semelhante ao apresentado pela paciente do caso, em que o nervo ciático emerge já dividido, com a parte fibular comum atravessando o meio do ventre do músculo piriforme e a parte tibial passando abaixo da margem inferior desse mesmo músculo.5 Pecina8 enfatizou que variações anatômicas desse tipo poderiam levar ao desenvolvimento da síndrome do piriforme, quando o alongamento do músculo piriforme poderia comprimir o ramo fibular comum entre as partes tendinosas desse músculo.

Em virtude da frequência das variações anatômicas entre o músculo piriforme e o nervo ciático, devemos sempre nos atentar para essa possibilidade diagnóstica, principalmente em pacientes com queixas de ciatalgia e lombociatalgia refratária, não explicada ou justificada por exames subsidiários como a ressonância magnética, já que essa não é capaz de avaliar dores com origem no plexo lombossacral ou no nervo ciático.5

A feitura de testes clínicos, como o de Friberg, Pace e FADIR4 (flexão, adução, rotação interna do quadril acometido), em que os pacientes apresentam dor glútea profunda com irradiação na topografia do nervo ciático, reforça a hipótese de compressão desse nervo na região glútea profunda. No entanto, esse diagnóstico é controverso e tem sido difícil obter evidências objetivas da existência dessa entidade.9 Nesse contexto, a neurografia por RM é importante opção diagnóstica. Nessa técnica usam-se cortes de 1 mm, de alta resolução, com sequências ponderadas em T1 e T2 com supressão de gordura.5 A sequência T1 permite avaliação anatômica dos planos musculares e melhor definição dos nervos periféricos, que apresentam padrão fascicular com sinal intermediário, envoltos pela gordura perineural com hipersinal. Na sequência T2 com saturação de gordura, o objetivo é definir se há espessamento e hipersinal do nervo ciático, assim como sinais de desnervação do músculo piriforme caracterizada por aumento do sinal.9

A aquisição volumétrica isotrópica permite o pós-processamento das imagens numa estação de trabalho sem distorção das mesmas, permitindo então reformatações no maior eixo do nervo ciático nos planos sagitais e coronais oblíquos.10

Lewis et al.11 avaliaram 14 pacientes com lombociatalgia e resultados normais de ressonância magnética que foram submetidos à neurografia por RM do plexo lombossacral e do nervo ciático. Desses, 12 apresentaram alterações de sinal no nervo ciático, sendo que em oito essas alterações de sinal se localizavam na incisura isquiática ou no músculo piriforme. A paciente do caso fez cinco exames de ressonância magnética do quadril esquerdo e da coluna lombossacral, todos com resultados normais. O diagnóstico definitivo, após suspeita clínica, só foi conseguido com a neurografia por RM, sendo identificada uma variação tipo B de Beaton e Anson.

O tratamento inicial desses casos é eminentemente clínico, com uso de anti-inflamatórios não esteroides, fisioterapia, exercícios de alongamento e fortalecimento, massagem, calor local, crioterapia, uso de relaxantes musculares, injeção periciática de corticoide e injeção de toxina botulínica guiada por tomografia computadorizada.12 Fanucci et al.13 analisaram 30 pacientes com seguimento de 12 meses após injeção de toxina botulínica intramuscular no piriforme guiada por tomografia computadorizada, obtendo alívio dos sintomas em todos os pacientes. Apesar dos bons resultados apresentados na literatura, a paciente do caso só obteve melhora por um período de aproximadamente quatro meses, com recidiva da sintomatologia.

Após falha do tratamento conservador, o tratamento cirúrgico é indicado. Descrições de exploração aberta demonstram bons resultados, embora o método endoscópico tenha menor morbidade e obtenha ampla exploração do trajeto do nervo, identificando também alterações anatômicas.13 Martin et al.3 relataram bons resultados com tratamento endoscópico numa série de 35 cinco pacientes com dor glútea profunda, seguimento médio de 23 meses e técnica semelhante à usada no caso relatado.

Portanto, nos parece importante a feitura da neurografia por RM do ciático (nos casos em que a etiologia da dor não foi elucidada com a ressonância magnética convencional) para esclarecimento diagnóstico das dores glúteas profundas e identificação de variações anatômicas que determinem efeito compressivo sobre o nervo ciático.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2013

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2011
  • Aceito
    04 Dez 2012
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