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Doença dos ossos frágeis: relato de caso

Resumos

Relata-se caso de paciente feminina, de 27 anos, com diversos episódios de fraturas após traumas de baixa energia, o primeiro documentado aos 18 anos. A extensiva investigação até o momento não concluiu a exata etiologia da doença. O acompanhamento ortopédico tem visado à prevenção e ao tratamento das fraturas

Osteogênese imperfeita; Síndrome de Ehlers-Danlos ; Doenças ósseas metabólicas


We report a case of a female patient, 27 years old, with several episodes of fractures after low energy trauma and the first documented episode only to 18 years of age. Extensive research has not found the exact etiology of the disease. The orthopedic monitoring has targeted prevention and treatment of fractures.

Osteogenesis imperfect ; Ehlers-Danlos syndrome ; Metabolic Bone diseases


Introdução

Por osteogênese imperfeita (OI) entende-se um distúrbio hereditário do tecido conjuntivo, caracterizado por fragilidade óssea com manifestações clínicas muito variadas em razão de defeito do colágeno tipo 1.1 O número de portadores e a incidência no Brasil são desconhecidos, ao passo que nos Estados Unidos a incidência estimada é de um caso para 15.000 a 25.000 nascidos vivos.2

A OI abrange um grupo de alterações hereditárias, autossômicas dominantes em sua maioria, causadas por inúmeras mutações em um dos dois genes que codificam as cadeias alfa - COL1A1 e COL1A2 - do colágeno tipo 1.1,2 Contudo, em aproximadamente 10%-20% de seus portadores, não é possível identificar o sítio das mutações.3

A fragilidade óssea é condicionada pela quantidade e qualidade da proteína estrutural anormal do colágeno e assim esperamos encontrar deformidades ósseas ou fraturas aos mínimos traumas em portadores da doença. A OI se apresenta desde formas letais de fraturas intrauterinas até casos tardios em que as fraturas se iniciarão na adolescência ou mesmo na vida adulta.4

É esperado que, em razão das modificações do colágeno, outras alterações sejam observadas, além de fraturas tais como hiperfrouxidão ligamentar, cútis laxa, baixa estatura, dentinogênese imperfeita, escleras cinzas ou azuis e, mais raramente, alterações na valva mitral e dilatação aórtica.4,5

Dentre os diagnósticos diferenciais devemos excluir maus tratos, hipofosfatemia, doença de Paget, osteoporose juvenil idiopática, doença de Cushing, deficiência ou má absorção de cálcio, defeitos no metabolismo da vitamina D e a síndrome de Ehlers-Danlos tipos VIIA e VIIB, que são caracterizados por hiperfrouxidão ligamentar e podem predispor seus portadores a fraturas.6

Foi proposta por Sillence et al.7, em 1979, a classificação de uso consagrado atualmente dos tipos I a IV baseada nos achados clínicos. Embora mais abrangente do que a classificação anteriormente proposta por Looser e Seedorf em 1906, apud Kim e Gonzales,4 ela também não contempla todo o espectro de casos descritos. Recentemente foram incluídos os tipos V, VI, VII e VIII2,8 e, embora neles exista fragilidade óssea, o defeito não está no gene do colágeno.

Relato do caso

Paciente, sexo feminino, 27 anos, com altura de 162 cm e peso de 57 kg, farmacêutica, descendência italiana, em acompanhamento ortopédico desde os 18 anos em razão de episódios de fraturas após eventos de baixo impacto.

Trata-se de paciente previamente hígida, parto por via cesariana a termo por desproporção feto-pélvica (SIC) sem intercorrências no pré, peri ou pós-parto. Infância sem episódios mórbidos importantes, com relato de herniorrafia inguinal aos 12 meses.

Desenvolvimento neuropsicomotor normal iniciando marcha com 1 ano, micrognatia, com correção ortodôntica, menarca aos 15 anos, com ciclos regulares. Parentes informam traumas de baixa energia próprios de cada faixa etária sem necessidade de avaliação médica. Ao exame ortopédico destaca-se a presença de hiperfrouxidão ligamentar e escleras acinzentadas.

Refere que aos 18 anos, durante atividade recreativa, iniciou com dor súbita no pé direito e dificuldade para marcha e se constatou fratura do 5º metatarso direito. Foi atendida no município de Ouro Preto (MG), onde se optou por tratamento com imobilização do tipo bota gessada, que evoluiu para consolidação completa da fratura. Aos 22 anos apresentou novo episódio de dor súbita no mesmo pé direito ao se levantar da cama e foi atendida no município de Goiânia (GO), onde se constatou fratura do 4º metatarso direito, ocasião em que novamente foi tratada com imobilização gessada.

Nessa ocasião a paciente e seus parentes retornaram a Belo Horizonte (MG) e procuraram o Departamento de Ortopedia e Traumatologia do Hospital Universitário São José, da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, quando foi solicitada radiografia contralateral do pé e foram observados calosósseos nos metatarsos contralaterais, os quais a paciente não associou a evento de trauma ou dor (Fig. 1). Foi mantido, até a consolidação, o tratamento com a imobilização, seguida da prescrição de palmilhas ortopédicas sob molde, uma vez que ao footscan constataram-se pés cavos varo com antepé aduzido bilateralmente, o que ocasionava sobrecarga do 4º e 5º. Desde então evolui sem queixas de dor nos pés e não apresentou novas fraturas.

Fig. 1
- Imagens de radiografias em obliquo do pé esquerdo, AP e oblíquo do pé direito evidenciando fraturas em diferentes estágios de consolidação sem relato de trauma importante ou queixa de dor prévia.

Aos 25 anos, quatro anos após última visita ortopédica, alegou que, enquanto dançava, iniciou com dor importante em face anterior da coxa direita que se manteve por 30 dias, quando procurou atendimento ortopédico na cidade de Viçosa (MG). Informa que foi orientada a retirar carga e a retornar na semana seguinte, ocasião em que a paciente novamente procurou atendimento no Departamento de Ortopedia do HUSJ/FCMMG e se constatou uma fratura por estresse do colo do fêmur direito tipo A de Fullerton e Snowdy e do tipo B no colo contralateral (Fig. 2). Optou-se por fixação com placa e parafuso DHS à direita e dois parafusos canulados de grandes fragmentos no colo esquerdo, pois se previa possibilidade de progressão do traço fraturário. Iniciou-se propedêutica investigativa no intuito de triar erro inato do metabolismo ou osteogênese imperfeita (OI), o que se seguiu com investigação endocrinológica, cardiológica e genética.

Fig. 2
- Radiografia em AP das coxo-femurais com sinais de fraturas por estresse do colo do fêmur nas setas.

Em novembro de 2011, aos 27 anos, iniciou com dor na face anterior da coxa esquerda, semelhante ao lado contralateral três anos antes. Procurou o departamento e se observou diástase no colo do fêmur esquerdo com traço tipo A de Fullerton e Snowdy para fraturas por estresse do colo do fêmur, que havia sido fixado preventivamente dois anos antes, quando apresentava traço do tipo B de Fullerton e Snowdy (Fig. 3). Em razão do bom nível sociocultural da paciente e da fragilidade emocional de ser submetida a novo procedimento cirúrgico, optou-se por protelar tratamento operatório e retirar carga do membro inferior esquerdo. A paciente evoluiu satisfatoriamente para consolidação sem dor, conforme retorno em março de 2012 (Fig. 4). Mantém acompanhamento multidisciplinar rigoroso, porém ainda sem definição de certeza quanto à patologia de base.

Fig. 3
- Sinal de nova fratura por estresse do colo do fêmur esquerdo apesar de fixação preventiva dois anos antes da queixa de dor no quadril.

Fig. 4
- Radiografia em AP da coxo-femoral esquerda evidencia consolidação da fratura após tratamento conservador.

Extensiva investigação laboratorial evidenciou TSH muito baixo (0,01 μUI/mL) e T4 normal em dezembro de 2009. Foi mantido o acompanhamento endocrinológico e a paciente foi submetida à PAAF em agosto de 2010 com diagnóstico de bócio nodular tóxico. Foi submetida a tratamento cirúrgico em 2011 e fez uso regular de levotiroxina sódica 88mcg ao dia. Demais rotinas laboratoriais, como fosfatase alcalina, PTH, Vitamina D (25-OHD), C-Telopeptídeo, cálcio iônico, fósforo, potássio, magnésio, antiestreptolisina-O, FAN, calciúria 24 horas, são todas repetidas anualmente desde 2009 até 2011 e sempre dentro dos limites da normalidade.

Densitometria óssea de 16/9/2010 apresentava T-score -2,7 e Z-score -2,7 e apontava decréscimo de massa óssea da paciente, atualmente com 73% do esperado para sua faixa etária e seu peso.

Ecocardiograma de 4/12/2008 aponta prolapso valvar mitral associado à insuficiência mitral leve, shunt interatrial E-D (forame oval patente) e dilatação aórtica leve.

ECG feito em 2009 na ocasião do risco cirúrgico apontou arritmia atrial. A paciente vem fazendo uso diário de metoprolol, com normalização do ritmo desde então.

Estudo genético feito em 15/12/2010 não demonstrou consanguinidade entre os pais, irmão 10 anos mais novo sadio, negativo para OI ou outras desordens genéticas mais comuns. Sugeriu-se pelo exame clínico que a paciente fosse portadora de síndrome de Ehlers-Danlos, um possível caso de mutação, uma vez que se trata de herança autossômica dominante e os pais não apresentam as mesmas características. É importante ressaltar que não existe exame confirmatório de prova diagnóstica.

Discussão

Trata-se de um caso atípico às práticas diárias do consultório ortopédico e apesar da impressão pelo geneticista de síndrome de Ehlers-Danlos, que não pode ser descartada, epistemologicamente a paciente satisfaz critérios que permitem ser classificada como portadora de OI, embora a confirmação laboratorial não seja possível. Geneticamente não se pôde atestar o caso. Pode se assemelhar aos novos tipos descritos por Glorieux et al. no Canadá. Atualmente mantém uso regular de metoprolol, teriparatida injetável e rizendronato, além de suplementação de cálcio e vitamina D. Até que um novo tratamento esteja disponível, mantemos acompanhamento multidisciplinar regular. Cabe à equipe de ortopedia auxiliar no intuito de evitar novas fraturas ou agir no tratamento dessas para que a paciente tenha qualidade de vida e rotina diária o mais próximo possível da normalidade.

REFERENCES

  • 1
    Whyte MP. Osteogenesis imperfecta. In: Favus MJ. Primer on the metabolic bone diseases and disorders of mineral metabolism. 4th ed. Philadelphia: Lippincott Williams Wilkins; 1999. p. 386-9.
  • 2
    Rauch F, Glorieux FH. Osteogenesis imperfecta. Lancet. 2004;363(9418):1377-85.
  • 3
    Byers PH, Wallis GA, Willing MC. Osteogenesis imperfecta: translation of mutation to phenotype. J Med Genet. 1999;28(7):433-42.
  • 4
    Kim CA, Gonzalez CH. Osteogenese imperfeita: revisao. Pediatria (São Paulo). 1993;15(1):8-21.
  • 5
    Pyertz RE, Levin LS. Aortic root dilatation and valvular dysfuntion in Osteogenesis imperfecta. Circulation. 1981;64:1193A.
  • 6
    Glorieux FH, Pettifor JM, Juppner H, editors. Pediatric bone, biology and diseases. San Diego: Elsevier; 2003.
  • 7
    Sillence DO, Senn A, Danks DM. Genetic heterogeneity in osteogenesis imperfecta. J Med Genet. 1979;16(2):101-16.
  • 8
    Cabral WA, Chang W, Barnes AM, Weis M, Scott MA, Leikin S, et al. Prolyl 3-hydroxylase 1 deficiency causes a recessive metabolic bone disorder resembling lethal/severe osteogenesis imperfecta. Nat Genet. 2007;39(3):359-65.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May/June 2013

Histórico

  • Recebido
    02 Maio 2012
  • Aceito
    28 Maio 2012
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