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Avaliação terciária em pacientes traumatizados em hospital na cidade de São Paulo: uma questão de necessidade

Resumos

OBJETIVO:

Com o intuito de minimizar a ocorrência de lesões despercebidas, foi introduzida a avaliação terciária, que consiste na reavaliação do paciente, 24 horas após sua internação, com: anamnese completa, exame físico detalhado, revisão dos exames subsidiários e complementação diagnóstica se houver necessidade.

MÉTODOS:

Estudo observacional que avaliou pacientes vítimas de trauma internados em hospital escola na cidade de São Paulo, guiado por protocolo para avaliação terciária.

RESULTADOS:

Entre fevereiro e maio de 2012, durante 12 semanas, foram submetidos à avaliação terciária 182 pacientes vítimas de trauma, 100 (55%) politraumatizados e 82 (45%) vítimas de trauma de baixa energia. As lesões negligenciadas foram observadas em 21 (11,5%) pacientes, que apresentavam 28 lesões despercebidas. Dessas 28 lesões, sete (25%) necessitaram de tratamento cirúrgico.

CONCLUSÃO:

Estratégias que incluem avaliação terciária formal, aplicada nas vítimas de trauma, sugerem ser benéficas aos pacientes, independentemente do mecanismo de trauma. É método de execução fácil, custo financeiro barato e efetivo na identificação de lesões negligenciadas nas vítimas de trauma.

Avaliação; Índices de gravidade do trauma; Traumatismo múltiplo


OBJECTIVE:

To minimize the occurrence of missed injuries, the tertiary evaluation was introduced consisting of reassessment of the patient, 24 hours after admission, with: complete history, physical examination, review of exams and diagnostic testing if necessary.

METHODS:

Observational study evaluating trauma patients admitted to a teaching hospital in São Paulo, according to a protocol for tertiary evaluation.

RESULTS:

Between February and May 2012, for 12 weeks, 182 patients were submitted to tertiary evaluation, 100 (55%) polytraumatized and 82 (45%) were victims of low-energy trauma. Neglected lesions were observed in 21 (11.5%) patients, who had 28 missed injuries. Of these 28 lesions, seven (25%) required surgical treatment.

CONCLUSION:

Strategies including formal tertiary evaluation, the protocol applied for assessing trauma victims, seem to be beneficial in these patients, regardless of the mechanism of trauma. The method is easily applied, effective and has low cost in identifying missed injuries in the victims of trauma.

Evaluation; Multiple trauma; Trauma severity indices


Introdução

No atendimento ao paciente traumatizado, seja o mecanismo de baixa ou alta energia, a abordagem inicial pode ocorrer de acordo com o atendimento preconizado pelo American College of Surgeons, que elaborou o ATLS (Advanced Trauma Life Support), que abrange a avaliação primária e secundária.11. Alexander RH, Proctor HJ. Advanced trauma life support student manual. Chicago: American College of Surgeons; 1993. , 22. Soundappan SV, Holland AJ, Cass DT. Role of an extended tertiary survey in detecting missed injuries in children. J Trauma. 2004;57(1):114-8. Mas também há um grupo de pacientes que é trazido ao serviço e acaba sendo submetido a um exame físico direcionado apenas pela sua própria queixa. O atendimento inicial pode negligenciar informações secundárias descritas ou, eventualmente, nem comentadas pelos próprios pacientes. Dessa maneira, lesões poderão não ser identificadas e agregar morbidades determinantes no prognóstico do paciente.

Com o intuito de minimizar a ocorrência de lesões despercebidas, foi introduzida a avaliação terciária,33. Enderson BL, Reath DB, Meadors J, Dallas W, DeBoo JM, Maull KI. The tertiary trauma survey: a prospective study of missed injury. J Trauma. 1990;30(6):666-9. que consiste na reavaliação do paciente, 24 horas após sua internação, com: anamnese completa, exame físico detalhado, revisão dos exames subsidiários e complementação diagnóstica se houver necessidade. Dessa forma o atendimento ao traumatizado atinge uma esfera maior de complexidade e tem como fase inicial a avaliação primária em ambiente préhospitalar ou hospitalar, a secundária na sala de urgência e a terciária com o paciente internado na enfermaria.

Em virtude da impossibilidade da obtenção de dados mais precisos a respeito das condições e outras situações por ocasião do trauma e da impossibilidade de maior colaboração do paciente na avaliação inicial que possibilitem diagnóstico completo de lesões traumáticas, propomos o uso de protocolo na avaliação terciária, baseado na anamnese e exame físico completos, detalhados e obedecendo a sequência lógica. A proposta da avaliação terciária melhora o prognóstico do paciente ao identificar lesões viscerais, neurológicas, tendinosas, fraturas e contusões despercebidas nas avaliações primária e/ou secundária.

Métodos

Foi feito estudo observacional que avaliou pacientes vítimas de trauma internados em um hospital escola na cidade de São Paulo(1), após 24 horas da internação, de acordo com o protocolo proposto para avaliação terciária. Os pacientes inconscientes ou sedados foram reavaliados após recobrar a consciência.

No período de 12 semanas entre fevereiro e maio de 2012, foram avaliados 182 pacientes internados no Hospital Central(1) com diagnóstico de pelo menos uma lesão de tratamento cirúrgico do sistema músculo-esquelético. Foram excluídos portadores das fraturas patológicas de qualquer etiologia e estipulados pacientes internados menos do que 24 horas.

As avaliações foram feitas por um dos três médicos residentes do terceiro ano de treinamento do serviço e autores do trabalho. O médico residente indicado não havia participado da avaliação inicial e/ou secundária na admissão do internado. O protocolo confeccionado para a execução do trabalho (Anexo 1) inclui dados de identificação, anamnese, exame físico padronizado e sistematizado, data e hora da reavaliação, necessidade de exames complementares e avaliações clínicas adicionais, nos casos de pacientes inconscientes ou intubados. Foi obrigatória a busca dos motivos para eventuais falhas de diagnóstico.

Ao aplicar o protocolo, também obtivemos os parâmetros: sexo, idade, escolaridade, índice de massa corporal, mecanismo do trauma, horário da admissão hospitalar, diagnósticos iniciais, data e hora da reavaliação. Feito o diagnóstico de lesões ignoradas, foi avaliada a necessidade de intervenção adicional e identificado o motivo que gerou a lesão negligenciada.

As variáveis categóricas foram expressas em valores absolutos e porcentagem e as variáveis contínuas, em média e desvio padrão.

Resultados

Entre fevereiro e maio de 2012, durante 12 semanas, foram submetidos à avaliação terciária 182 pacientes consecutivos, vítimas de trauma, sendo 100 (55%) politraumatizados e 82 (45%) vítimas de traumas considerados de baixa energia. Em 51 (30,2%) pacientes houve necessidade de abordagem cirúrgica de urgência; em 64 (35,2%) havia associação com trauma crânioencefálico; e um (0,5%) evoluiu para óbito.

As características demográficas basais dos pacientes estão expressas na tabela 1. Entre os pacientes estudados, 124 (68,1%) eram do sexo masculino; a média de idade foi de 41,2 ± 19,2 anos; 86 (48,3%) eram pardos, 69 (38%) brancos, 24 (13,2%) negros e três (1,6%) orientais; o índice médio da massa corporal (IMC) foi de 25,5 ± 4,4 kg/m2 ; 8,5 ± 4 anos era a média de anos estudados; 88 (48,4%) pacientes apresentavam lesões nos membros superiores (MMSS); 99 (54,4%) nos membros inferiores (MMII); três (1,6%) com fraturas na face; oito (4,4%) na coluna e cinco (2,7%) no anel pélvico. Cento e dezenove (65,5%) pacientes foram admitidos das 6 às 18 horas, considerado como diurno. Os pacientes inconscientes ou sedados foram reavaliados após recobrar a consciência. Todos os pacientes estavam internados aos cuidados da ortopedia isoladamente ou em conjunto com outras equipes do hospital.

Tabela 1
Características demográficas dos pacientes internados

As lesões negligenciadas foram observadas em 21 (11,5%) pacientes, que apresentavam 28 lesões despercebidas, descritas na tabela 2, e identificadas no protocolo. Lesões negligenciadas (fig. 1) no membro superior foram identificadas em três (14,3%) pacientes, o que correspondia a quatro (14,3%) lesões. Oito pacientes (38,1%) as apresentavam no membro inferior, o que correspondia a 14 (50%) lesões. Seis (28,6%) pacientes portavam lesões no tórax, dois (9,5%) pacientes na face e três (14,3%) pacientes na coluna vertebral. Dessas 28 lesões, sete (25%) necessitaram de tratamento cirúrgico. Dois (7,1%) pacientes sofreram esse tratamento na internação inicial, três (10,1%) lesões tiveram tratamento operatório eletivo postergado durante segunda internação. Os outros dois (7,1%) pacientes com condutas cirúrgicas encontravam-se na unidade de terapia intensiva até o término do trabalho e aguardavam melhoria clínica para liberação pré-operatória. Os demais 15 (53,5%) pacientes receberam tratamento incruento com imobilização, medicação sintomática oral e cuidados locais.

Tabela 2
Distribuição das lesões não diagnosticadas segundo segmento corpóreo

Figura 1
Expressão gráfica das lesões não diagnosticadas segundo o segmento corpóreo (MMSS: membros superiores; MMII: membros inferiores).

Em 16 (76,2%) dos pacientes com falha diagnóstica essa esteve associada à avaliação clínica inicial inadequada e em cinco (23,8%) a falhas de contato com paciente.

Discussão

Este método de avaliação mostrou-se seguro e eficaz para auxílio diagnóstico de lesões negligenciadas. Além disso, evidências sugerem que, em centros caracterizados pela alta demanda de pacientes vítimas de trauma, essa ação minimizaria o impacto negativo causado pelas lesões não diagnosticadas na atenção a esses pacientes.44. Hodgson NF, Stewart TC, Girotti MJ. Autopsies and death certification in deaths due to blunt trauma: what are we missing? Can J Surg. 2000;43(2):130-6. Lesões não diagnosticadas e que são clinicamente significativas podem culminar com complicações, aumento da morbidade e até morte.

Estudos de lesões não diagnosticadas relatam a incidência entre 0,6% e 65%, a depender do método usado.55. Janjua KJ, Sugrue M, Deane SA. Prospective evaluation of early missed injuries and the role of tertiary trauma survey. J Trauma. 1998;44(6):1000-6. , 66. Kremli MK. Missed musculoskeletal injuries in a University Hospital in Riyadh: types of missed injuries and responsible factors. Injury. 1996;27(7):503-6. A falta de estudos padronizados prospectivos dificulta identificarmos a real incidência dessas lesões nos pacientes traumatizados.77. Buduhan G, McRitchie DI. Missed injuries in patients with multiple trauma. J Trauma 2000;49:600-5. Observamos que as lesões negligenciadas incluíram diagnósticos perdidos tanto por exames clínicos como por imagens radiográficas. Essa constatação sugere que a prática da avaliação terciária é valiosa para diagnosticar precocemente lesões negligenciadas. Permite inferir que aperfeiçoando a qualidade dos exames clínicos nas avaliações às quais os pacientes são submetidos, e avaliação por especialistas dos exames de imagem, determinariam alto índice de suspeição clínica das lesões negligenciadas.

Nosso estudo demonstra que as lesões não diagnosticadas ocorreram em pacientes vítimas de traumas de alta ou baixa energia, ou seja, desde pacientes que sofreram trauma torcional do tornozelo até acidentes motociclísticos. Apesar de ocorrerem em maior número nos pacientes com mecanismos de maior energia, os resultados não foram significantes estatisticamente. Na nossa amostra predominaram vítimas dos acidentes de alta energia, coerente com os dados da literatura pesquisada.22. Soundappan SV, Holland AJ, Cass DT. Role of an extended tertiary survey in detecting missed injuries in children. J Trauma. 2004;57(1):114-8.

3. Enderson BL, Reath DB, Meadors J, Dallas W, DeBoo JM, Maull KI. The tertiary trauma survey: a prospective study of missed injury. J Trauma. 1990;30(6):666-9.

4. Hodgson NF, Stewart TC, Girotti MJ. Autopsies and death certification in deaths due to blunt trauma: what are we missing? Can J Surg. 2000;43(2):130-6.

5. Janjua KJ, Sugrue M, Deane SA. Prospective evaluation of early missed injuries and the role of tertiary trauma survey. J Trauma. 1998;44(6):1000-6.

6. Kremli MK. Missed musculoskeletal injuries in a University Hospital in Riyadh: types of missed injuries and responsible factors. Injury. 1996;27(7):503-6.

7. Buduhan G, McRitchie DI. Missed injuries in patients with multiple trauma. J Trauma 2000;49:600-5.

8. Houshian S, Larsen MS, Holm C. Missed injuries in a level I trauma center. J Trauma. 2002;52(4):715-9.
- 99. Vles WJ, Veen EJ, Roukema JA, Meeuwis JD, Leenen LP. Consequences of delayed diagnoses in trauma patients: a prospective study. J Am Coll Surg. 2003;197(4):596-602. Podemos afirmar que a relevância dos resultados que encontramos reside no número de lesões negligenciadas encontradas e serem um terço delas de tratamento cirúrgico.

Uma vez que o atendimento inicial - avaliação primária (extra ou intra-hospitalar) e avaliação secundária - visa, fundamentalmente, a tratar as lesões que oferecem ameaça à vida do paciente. Quando buscamos a avaliação clínica completa para estabelecer os diagnósticos das vítimas de trauma, devemos estar cientes de que esses pacientes precisarão ser sistematicamente "revisados" e o primeiro momento adequado ocorre durante a internação hospitalar. A busca por lesões negligenciadas deve ter sua importância relevada nos serviços de atendimento ao paciente traumatizado.

Estratégias que incluam avaliação terciária formal,33. Enderson BL, Reath DB, Meadors J, Dallas W, DeBoo JM, Maull KI. The tertiary trauma survey: a prospective study of missed injury. J Trauma. 1990;30(6):666-9.

4. Hodgson NF, Stewart TC, Girotti MJ. Autopsies and death certification in deaths due to blunt trauma: what are we missing? Can J Surg. 2000;43(2):130-6.
- 55. Janjua KJ, Sugrue M, Deane SA. Prospective evaluation of early missed injuries and the role of tertiary trauma survey. J Trauma. 1998;44(6):1000-6. , 88. Houshian S, Larsen MS, Holm C. Missed injuries in a level I trauma center. J Trauma. 2002;52(4):715-9. aplicada nas vítimas de trauma, com exame clínico padronizado e sistematizado, e revisão dos exames subsidiários sugerem ser benéficas nesses pacientes, independentemente do mecanismo de trauma. Nossa amostra permitiu o diagnóstico de lesões negligenciadas em 21 (11,5%) pacientes, sem agregar morbidade. É método passível de execução fácil, custo financeiro barato e efetivo. Não nos foi possível definir o grau de acurácia do método.

Limitações do estudo

São limitações do estudo: sua natureza observacional, o número reduzido de pacientes incluídos, a feitura em único centro de atendimento e a ausência de seguimento tardio aos pacientes, quando seria possível averiguação de existência de lesões negligenciadas pela avaliação terciária.

Conclusões

O protocolo para avaliação terciária mostrou-se eficaz na identificação de lesões negligenciadas nas vítimas de trauma.



REFERENCES

  • 1
    Alexander RH, Proctor HJ. Advanced trauma life support student manual. Chicago: American College of Surgeons; 1993.
  • 2
    Soundappan SV, Holland AJ, Cass DT. Role of an extended tertiary survey in detecting missed injuries in children. J Trauma. 2004;57(1):114-8.
  • 3
    Enderson BL, Reath DB, Meadors J, Dallas W, DeBoo JM, Maull KI. The tertiary trauma survey: a prospective study of missed injury. J Trauma. 1990;30(6):666-9.
  • 4
    Hodgson NF, Stewart TC, Girotti MJ. Autopsies and death certification in deaths due to blunt trauma: what are we missing? Can J Surg. 2000;43(2):130-6.
  • 5
    Janjua KJ, Sugrue M, Deane SA. Prospective evaluation of early missed injuries and the role of tertiary trauma survey. J Trauma. 1998;44(6):1000-6.
  • 6
    Kremli MK. Missed musculoskeletal injuries in a University Hospital in Riyadh: types of missed injuries and responsible factors. Injury. 1996;27(7):503-6.
  • 7
    Buduhan G, McRitchie DI. Missed injuries in patients with multiple trauma. J Trauma 2000;49:600-5.
  • 8
    Houshian S, Larsen MS, Holm C. Missed injuries in a level I trauma center. J Trauma. 2002;52(4):715-9.
  • 9
    Vles WJ, Veen EJ, Roukema JA, Meeuwis JD, Leenen LP. Consequences of delayed diagnoses in trauma patients: a prospective study. J Am Coll Surg. 2003;197(4):596-602.
  • Trabalho realizado no Departamento de Ortopedia e Traumatologia da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2013

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2012
  • Aceito
    20 Ago 2012
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